29/07/2012

A quatro mãos

"Instável, mas com coragem", diz-me o amigo ao longe. Quase posso ver-lhe a alma inteira à escuta, na beira do caminho, recolhida atrás das pedras das escarpas, sempre à espreita, esperando ver se a ponte soçobra debaixo do peso das rodas de cada dia. 

Talvez seja mais fácil ter coragem ancorado em algum lugar, penso. E escrevo-lhe. Ele responde, lá no longe onde está: "o bom da âncora é que o barco pode deslizar um tanto...". Sem perder o foco, digo-lhe eu, o foco de onde está a rede que contém o peixe que alimenta o povo - mas eu queria mesmo dizer era da rede que contém o peixe que alimenta a sua alma. Mas fiquei tímida (inibida, se usasse as palavras que ele gosta de usar), mudei o fim, talvez fosse intimidade demais. Como é que se pode ter certeza de coisas assim? Ando receosa das palavras que escrevo aos outros.

Agora, aqui, ele fica sabendo. Que com ancoragem a coragem da alma se fortalece, nas âncoras em que cada um pode se segurar, cordas grossas e seguras onde se apoiar e descansar o peso quando a própria coragem faltar, manca como são todas as coragens quando o dia se põe. Âncoras em que confiar quando a maré levar o peixe pra longe, certo de lá estar quando ela de volta o trouxer. Âncoras que se agarram ao chão que não se vê, tão turvas são as águas que parece não haver mais lugar onde pisar sem cair. Âncoras que parecem nem ter peso quando descem ao fundo do mar, levando consigo a própria carga, trazendo consigo a vida alheia.

"Mas chega o dia em que se deve tirar a âncora, e retornar com as ondas à praia", diz ele, quase parece que me ouviu escrever nesta tela que não vê. A coragem que emerge, é ela quem fala através dos seus dedos que escrevem. Digo-lhe que não se esqueça de guardar a âncora dentro do barco. Porque sei o quanto a coragem se camufla e decide dormir quando menos se espera - quando menos se precisa. Assim:

Atravessa-se uma ponte, com a disposição certeira e a mente lúcida, a vida toda em forma de brilho, nítida e óbvia. Mas há uma curva, uma curva dentro do peito, tão igual à curva do braço de rio que revive na praia, tão do mesmo tom de verde dos lagos que não se mexem há muito. E a curva move-se, e num movimento de quem recolhe o lanço do trigo que afinal não se semeia, a curva recolhe a coragem daquilo que era tão certo, tão claro, tão firme. E aí a âncora. Aí retorna a âncora. Como um porto seguro. 

Há uma gaivota que veio entretanto sentar-se-lhe em cima - meu avô diria que para que me lembre de que há sempre quem nos cobice a fortuna (ele não gostava desses pássaros que roubam peixe aos pescadores). E o amigo diz "gaivota"; e a palavra primeiro não lhe desce, diz, agarrou-se ao cordame do barco, aos seus mastros, aos remos que usa para se manter à tona. E talvez porque lhe pressinta o tom enganador, a palavra não lhe desce, e a gaivota quase levanta voo. Mas não: meu amigo é um poeta em estado latente, e a gaivota dele vai na frente e a traineira atrás, pescadores de binóculo atrás da ave que sabe em que ondas se escondem os peixes. E assim a gaivota fica onde está, ornamento a preto e branco de uma âncora que permanece firme, ancorada no coração desse amigo que já foi, já dorme o sono dos justos e dos corajosos. Amanhã, que é sempre outro dia, lerá.


Da saudade, em estado bruto

Desloquei a minha vida de continente, várias vezes, e deixei perdidas, por entre idas e vindas, pessoas que não encontro mais. Um desterro perpétuo, uma inadequação absoluta por entre os passos dados.

Estou acometida do mais português dos sentimentos: saudade. Saudade específica, do que foi e já não é, de quem foi e já não está, dos que se foram sem despedida, dos que se despediram sem anteciparem o caminho do reencontro. Flutuam ao meu redor todas as Lailais, as Vanis, as Xinhas, as Anas, os Pedros, os Antónios, os Paulos, os Carlos, os Laranjos, os Césares - seres que a cada dia se tornam mais ficção na memória que lhes guardo. Não lhes encontro o rastro - ou é ténue como uma sombra.  E talvez seja melhor assim, porque serão outros, se porventura os encontro. Enquanto isso, enquanto adio a vontade quase incontida de revê-los, reedito-lhes as presenças, sinto-as lado a lado, com as tantas milhas náuticas exaustas de distância de por meio que me impedem um passo, um movimento, um ir ao encontro.

Entenderá o que digo quem se ausentou do próprio passado, quem se absteve de ficar onde estava e se decapitou para novas e longínquas paragens. É preciso inventar-se a si próprio, nessas mudanças, e a reedição nem sempre equivale ao que se perde, nem ao que se pensou que se era. E por isso a saudade, esse sentir atávico da alma que se desprendeu do seu substrato e que ao mesmo tempo sobrevive naquilo que reedita, como um arqueólogo numa expedição das coisas mortas. Em dias como os de hoje, de céu luminoso que não encontra similar dentro do peito, sobrevivem as células que se lembram. E todas elas doem, engolem-se a si mesmas procurando incessantes o que jamais conseguirão encontrar, diluindo ao mesmo tempo as saudades imediatas do que ainda é,  mesmo incompleto. E o amanhã, que não nos pertence e obedece à lei do tempo, de que cor tingirá o oceano quando amanhecer?

Foto do Carlos Marzagão da casa da rua Monte Olivete, em Lisboa

28/07/2012

"Do que em si não se conhece"


“Cada dia de filho que eu tenho descubro dois pais que não tinha.” 

Nem lhe pergunto o que quer dizer com isso, mas um dos filhos além-oceano escreve-me assim, um dia desses. E reconheço o quanto é verdade, porque eu mesma, ao espelho, descubro-me várias que não sabia. Às vezes, reedições. De vazios que imaginava puro preenchimento, espaços que pensei haver deixado atrás de mim, quem sabe resolvidos. Mas não: eles voltam, fantasmas feito plumas que insistem em acordar-me a meio da madrugada. Às vezes assumem nomes, transformam-se em pessoas de ficção, falam e falam e irritam-se porque não lhes entendo as intenções. E aos poucos, conforme me vejo descoberta nessa que pensava não ter mais em mim (essa que de repente meu filho intui existir), eles acalmam-se e deixam que durma. Quando já é dia claro, e os vivos e de carne e osso arrancam-me da cama porque é da sua natureza a fome e a vontade de me ver de pé. O sono, esse alívio, atrela-se com força aos dias em que o universo conspira que assim seja. 

É assim que uma destas noite, em meio à chuva que cai no rio logo ali embaixo, quando me decido a atravessar a ponte estreita que conduz à praia, procurando o sono que me foge, reencontro-me no pavor noturno de ser engolida pela profundeza marítima, no abandono insuportável de quem se esqueceu de me estender a mão. Coisa antiga, de menina ainda sem memória. Eu sequer conhecia, penso, e quase não sei para onde correr o pensamento, sou uma só inspiração aflita, buscando escapar dessa mim mesma desconhecida, em voltas desgovernadas em torno de um qualquer centro.

Aplaco o pânico como sei: dou-lhe palavra. Nome. Escrevo-lhe a história, em meio à chuva e à escuridão densa, à solidão absoluta de um mundo despovoado. E me desdobro em outra, que carrega as várias outras de mim, todas já acordadas e inquietas, para dentro de casa, e lhes dá banho quente para que parem de tremer diante da própria sombra. É assim que nasce, nestas noites de julho, a nova pessoa que andava escondida, que não se mostrava, só difusos sinais noturnos, sopros de partes desagregadas desintegrando-se em ar na noite. Metade do tempo que o sono não atravessa, ocupo-o com palavras, porque de repente ela quer dizer-me tanto, e diz-me, e eu preciso registrar para entender e voltar a dormir.

Quando acordo, dia seguinte, nada disso foi: só um sonho a meio de uma noite mal dormida. As anotações, ainda assim, estão a um lado da cama; ao outro, um espaço imenso vazio, ainda quente e moldado na forma do corpo longe e ausente.

Foto: Tai Ribeiro

25/07/2012

Exercício: uma explicação

Minha cara Júlia

Os móveis do meu consultório parecem ressentir-se da sua falta; quase me perguntam para onde você foi, que não volta.

Tenho recebido notícias de quem agora a acompanha, e gosto do que ouço. Talvez seja isso o que me faz sentir mais a sua falta: o sentimento de incapacidade de não tê-la ajudado quando pude. E perceber o quanto outros o podem fazer, e fazem. Agora, parece, nossos caminhos se bifurcaram e avançam cada qual em retângulos de traçados divergentes.

Sim, leio todas as cartas que me envia. Se não as respondo, é por um impulso imediato de não interferir no seu processo, de não saber de que forma guardaria as minhas palavras dentro de si, e do que elas poderiam fazer-lhe, se se aninhassem em algum lugar sem serem convidadas. Por isso, o silêncio. Como vê, nada mais distante do que a falta de interesse.

Pus a fotografia que me enviou diante de mim, à minha mesa. Gosto de olhar a serenidade de seu perfil e o mar ao longe. Quase ouço seu sussurrar e sinto a brisa marítima agitar meus cabelos como imagino aconteça com o seus, conforme os vejo agora, capturados por essa imagem estática a duas cores. Ao lado de seu retrato, nada além de uma cornucópia, de onde escorrem os meus dias, um a um, atravessando calabouços de brilho de pérola. Como se a sua imagem pertencesse também a esse mundo que escorre, serena e absorta dentro de si mesma. Tão diferente dos dias em que batia à minha porta com o desespero da insatisfação angustiada estampado em seus olhos difíceis.

Assim são os meus dias, quando penso em você: uma espécie de alegria tênue pelo encontro que vejo realizado nesse seu olhar tão distante a preto e branco; uma espécie de alegria entristecida, pela distância que se interpôs entre nós. Distância benfazeja, bem vejo. Necessária. Mas distância, assim mesmo.

Com amor e saudade,

P.

07/07/2012

A cidade nova XIV - Do telhado

Dizem-me que tome cuidado. Rio por dentro. Gosto dessa palavra, cuidado, parente tão próxima do verbo cuidar. É daquelas que não se sabe muito bem de onde vêm. Pode ser que seja de cogitare - quando pensamos, refletimos, consideramos. E pode ser que venha de agitare - quando conduzimos, dirigimos, instamos. Prefiro achar que seja uma mistura das duas, como se todo pensar levasse a uma direção precisa.  Cuidar  e tomar cuidado como formas de pensamento em estado de ação.

Em dias como os de hoje, que escorrem leves por cima das pedras que forram a vida, é fácil cuidar de quem está em volta. Pensa-se um pouco, a ação vem fácil. As horas passam como brisas de fim de tarde à beira do mar, diluem-se no que está em volta, as tarefas cumpridas sem sacrifício e, súbito, o dia acaba.

A meio da manhã, um estranhamento por dentro. Faço o que manda um dos mestres, Rubem Braga: subi aos céus. Quando tudo parece parado e os homens não se entendem, diz ele naquela crônica deliciosa que intitulou de "Torre Eiffel", o melhor é subir aos céus. Lá fui. Não porque os homens não se entendam, mas justamente porque parece que tudo pára. E eu subo aos céus antes que os homens se desentendam.

Meu céu é o telhado. Acesso fácil, graças à população de andaimes e escadas que nos rodeia por aqui. Logo me acompanham -  em pouco tempo somos 5 em cima da laje recém nascida. Dou mais uns passos, e passo ao telhado desta casa antiga, as telhas quebradas atestando os maus tratos dos seus últimos anos, os líquens desenhando os contornos do passar do tempo.

Nada como mudar de perspectiva. Não fosse a crônica do Rubem, e as aulas que o terão no centro na semana que vem, talvez não tivesse aliviado o coração desse dia tão leve que quase pesa. Talvez esquecesse que, de cima, afinal, tudo se parece bem mais com aquilo que o coração deseja. E de repente me acenam, para que tome cuidado. O sol nas minhas costas diz-me que é exatamente isso que faço: cuido para que a vida possa continuar leve assim, pelo menos de vez em quando. Por isso penso, e  me movimento. Com todo o cuidado que sei e posso.

03/07/2012

Do Carmo


Encontro a Maria do Carmo agorinha de tarde, ao virar uma esquina. Reconheço-a pelo andar oscilante, o mesmo que usava ao perambular por casa sem saber exatamente por onde começar o que. Seus métodos de limpeza primavam pelo radical; tudo a água limpava, ainda que fossem coisas nascidas para viver longe dela, como livros, essas entidades que ela insistia em guardar nas prateleiras com as lombadas viradas pra dentro, “para que se vejam as folhas todas”, dizia a sua lógica. Não foi um entendimento fácil o nosso, mas durou muitos anos. E deixou marcas em ambas.

Maria do Carmo sempre me pareceu bonita. Seus olhos, um deles abalroado pelo punho do marido num dia de desatino, eram bonitos justamente por causa dessa imperfeição. Conheci-a num ponto de ônibus, já se vão mais de vinte anos, sentada com os dois filhos e uma mala perdida entre eles. Jurava que aquele tinha sido o último soco. O olho esquerdo sobressaía-lhe da pele negra, um roxo azulado que tremia cada vez que falava. Senti-a tão próxima da minha humanidade que a levei para casa, a ela e aos filhos. Trabalhou comigo anos a fio, viu filhos meus nascerem, sempre com aquele olho desconjuntado arregalado diante da inconformidade de eu não querer visitar hospital. Falava pouco, quase nada; qualquer conversa que eu tentasse puxar, recebia uma gargalhada histérica em resposta, as paredes tremiam. Até que eu desisti e decidi comunicar-me só com os olhos e o sorriso. Deu certo.

Maria do Carmo parece igual, como se todos os anos se evaporassem no espaço pequeno que ocupamos na rua. Abraça-me com a força de sempre, seus braços longos em torno da minha alma à flor da pele. Estamos tão felizes de nos vermos que nossos olhos todos enchem-se de lágrimas, uma água rasa que não rola nem cai, tantas lembranças de tudo o que nos juntou em duas realidades tão diferentes. Quero contar-lhe, mas contar-lhe o que?

Esta cidade nova tão velha faz-me encontrar fantasmas todos os dias, tempos extintos, pessoas passado. Postam-se de repente à minha frente, lembram-se do meu nome, como se tivesse sido ontem e não outra vida. A umas, não consigo localizar-lhes nem tempo nem espaço. Mas a outras, como a Do Carmo, localizo-as dentro da alma, retrocedo anos, provo-lhes o travo de simpatia e calor que as fizeram criar raízes em mim.

Nunca mais fugi na vida, diz-me ela. Aprendi a fincar os pés no chão, mesmo que tenha de baixar a cabeça pra isso. O brilho de seu olho bom é o mesmo, e o outro é triste como sempre. Leva a mão ao rosto, sorri um sorriso desdentado e diz que é bom que continue assim, senão arriscava esquecer. O mesmo desamparo a acompanha, a mesma tenacidade desajustada que a faz atravessar a rua descuidada. Não sei como ainda não morreu atropelada. As crianças estão bem, cresceram, cada qual a sua vida. Eu estou a mesma, garante. Mas não é bem a verdade. Agora que a vejo de costas, descendo a calçada do outro lado da rua, há curvas a mais em seus passos, cicatrizes que marcam as suas costas encobertas, novos fardos densos que carrega sem que os outros precisem perceber. Quero correr ao seu encontro outra vez, mas é o passado que me acena lá de baixo, quando ela se vira tão lenta para me dizer adeus. E, de repente, acho que não a verei outra vez.


Imagem: "Canavial", Sérgio Torretta

29/06/2012

Dicotomia e incongruência

Gosto quando me perguntam sobre palavras. Às vezes, a resposta vem, lépida e faceira, simples, convincente. Outras, as palavras perguntadas ficam perambulando dentro de mim, abrindo espaços, forçando-me em direções que preciso, ainda que não queira. Reviro-as e reviro-me de todos os lados. Essas palavras perguntadas são coisas sérias, coisas que chegam sem motivo para nos darem motivo.

Ontem perguntaram-me o que é dicotomia. Tentei a explicação etimológica: tomia significa cortar, portanto dicotomia é cortar em dois, algo que era um subdivide-se etc. Mas não: o que a pessoa quer saber é o que é uma falsa dicotomia. Como saber quando algo se insinua dividido, mas não há divisão? As coisas, quando se dividem em duas diante da janela mais danosa, a da incongruência. E essa é a segunda palavra que me perguntam - incongruência - e assim são duas a que preciso dedicar-me. Não consigo respostas, eu própria a dicotomia em estado bruto.

A prateleira dos livros logo ali. Lanço mão dos poetas. Lembro-me de dois, assim já, de repente, como chegam as coisas que precisamos ler. Luiza Neto Jorge e Eucanaã Ferraz, que uma amiga ressuscitou da minha memória há poucos dias. A cair e a estar de pé: tudo isso o poema ensina. O que é preciso é aprender a ler - as letras e os livros, tal qual as pessoas, as coisas, o ar rarefeito em volta. Por isso, como resposta tardia a quem perguntava, aí estão os poetas, seus poemas, suas verdades, o diálogo instaurado entre dois seres. Talvez seja aí, no diálogo, que as dicotomias se resolvam, as falsas e as outras, as talvez incongruentes.


O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada sutil
uma vênia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
Luiza Neto Jorge



O poema ensina a estar de pé. Fincado
no chão, na rua, o verso não voa,
não paira, não levita.

Mão que escreve não sonha. Em verdade,
mal pode dormir à luz das coisas
de que se ocupa.
Eucanaã Ferraz


Imagem: escultura de Raquel Zocco

28/06/2012

Exercício: As razões de Armindo

Armindo desce do ônibus com as pálpebras coladas de sono. Isaura espera-o na plataforma, batendo os pés no chão como se quisesse espantar a ansiedade junto com o frio. Seus olhos sorriem quando o vê; adianta-se para envolvê-lo. Armindo retribui, tenso e a contragosto, num esticar de longas costas como abraço que não se quer entregar.

‒ Não tinha certeza de que você viria. ‒ Isaura encolhe os ombros e não lhe diz nada. O que faço deste homem que duvida tanto?

A cidade está cheia; gente que sobe, desce, avança, caminha com os olhos voltados para dentro sem realizar para onde a levam os passos. As duas figuras andam vários quarteirões até chegar à sala de concertos. A caixa do instrumento pesa, Isaura insiste em levar-lhe a mochila. Está leve, não tem quase nada dentro. Percebe que Armindo ficará pouco. Guardam os volumes no saguão e saem para sentar-se em algum qualquer lugar.

A carta de Isaura no bolso do sobretudo de Armindo é uma brasa que arde. Saiu de casa decidido a explicar-lhe. A dizer-lhe. Aceitou essa aula aberta só para poder terminar o que sequer começou. Uma desculpa conveniente para viajar. Quer arrancar-lhe toda sombra de esperança. Mas cada minuto caminhando ao seu lado esvai-lhe a vontade. A proximidade tépida. O som dos seus passos na calçada. O braço que esbarra. As palavras que ensaiou ficaram dentro do ônibus, grudadas e impassíveis nas paredes azuis. Palavras sem recheio, mera formalidade de quem tem medo. Para onde foram todas as razões que viviam tão claras dentro de mim?

Isaura já almoçou, Armindo não tem fome. Pedem dois cafés e qualquer coisa que mastigar. Para ocuparem as bocas quando faltem as palavras. Jamais falam sobre amenidades. Armindo não sabe o que é isso, Isaura prefere os silêncios expressivos às palavras vazias.

‒ Não consegui responder sua carta ‒ diz Armindo finalmente, abrindo uma fresta na neblina que os mantém invisíveis.

‒ Armindo ‒ seu nome em sua voz é uma nota grave e frutada evaporando-se no ar em volta ‒ Armindo, eu não esperava resposta sua. Eu precisava dizer-lhe, precisava que você soubesse. Quem sabe entendesse. Mas não esperava que me respondesse.

Seus olhos estão úmidos, Armindo não sabe se neblina ou lágrima. Isaura sente a falta da frequência, das aulas, dos momentos em que dividiram harmonias, dos dedos que se encostaram e não conseguem desprender-se da sua pele. Pensou que uma cidade desconhecida e longínqua a manteria à tona, mas a vida desmorona à sua volta, traçando o fio da fuga. 

‒ Você leu. A minha carta diz-lhe tudo o que queria dizer-lhe.

Armindo procura dentro de si todas as razões que o mantiveram firme na recusa do que Isaura oferece. Precisa fechar os olhos, apagar a imagem dessa mulher plena, pronta a dedicar-lhe todo o amor. Se ele a deixasse. Mas eu não posso, Isaura. Não posso. Não quero magoá-la, mas não posso dizer-lhe esse sim que você me pede de olhos enevoados. Ele sabe: esse é o lugar comum fácil e batido. Para escapar de si mesmo.

Mas Isaura está disposta a ir até o fim. E confronta-o. Estende a sua mão e encosta-a aos dedos longos, as unhas cortadas rente à ponta dos dedos, a pele curtida e suave, a temperatura quase a mesma. Armindo perde as últimas palavras que tentavam organizar-se em sua mente, e só sente. Só sente. E sabe que o sim é a única palavra que ela aceitará e a única que ele, bem no seu fundo, tem para lhe dar. Ainda que ponha a perder tudo o que construiu em sua vida, essa estabilidade serena que lhe acorda as manhãs sempre no mesmo tom cinza. Fecha os olhos e escolhe a entrega.



24/06/2012

Bom Retiro 01122-040

À Karla

Neste domingo, começa tudo dentro do Museu da Língua Portuguesa. Disposta a ver a exposição de Jorge Amado, e já preparada para as mirabolantes instalações do Museu, lá fui. Fomos. Que com companhia tudo é melhor porque divisível. Bahia pura por todas as paredes, um deslumbre de capacidade imaginativa de quem projeta essas exposições temporárias do Museu. As palavras dos  quase 5000 personagens criados por Amado por todo lado, datiloscritos animados mostrando a forma e a ordem das correções a cada revisão, um luxo só. Não se esgota nada: são caminhos, pistas, material que instiga e cria vontade de voltar a Pedro Arcanjo, a Santa Bárbara, a Antonio Balbuíno. Até 22 de julho, quem puder que venha.



Mas na verdade verdade, só há um motivo que de fato me faça ir até lá. E é o terceiro andar. Ainda por cima quando posso compartilhar com outra pessoa esses momentos cheios de palavras, quem dera pudesse mais e muito. É começar a projeção e os olhos comicharem. E é a voz do Nachtergale instaurar o convite "penetra surdamente no reino das palavras" e lá me desaguo inteira até o fim da projeção. Toda vez. E olha que esta, salvo erro, é a quinta. Fico com a sensação de que é ali onde mais me pertenço, no meio de um mundo feito palavra, imenso, semântico, sintático, mastigável, onde a vida faz sentido e é maior que si própria e as minhas entranhas todas vibram. Vale a pena o Jorge Amado, é claro que vale - mas o museu inteiro vale, tanto faz o resto, pelo terceiro andar. Salve Nestrovski e Wisnik pela idealização deste presente.

Atravessamos o Parque da Luz, o mais antigo de São Paulo, em direção ao Bom Retiro. Gosto desse bairro multicultural, cheio de cheiros e pessoas tão obviamente distintas umas das outras - judeus, italianos, gregos, coreanos. O Parque está cheio de esculturas, o dia está cheio de sol e as pessoas estão cheias de luz. Atravessamos a rua e chegamos à esquina da Samuel Brenner, bem em frente ao bar onde sentamos pra tomar uma cerveja - torresmo na vitrine, sarapatel com feijão de corda no cardápio do dia pro almoço. Mesas pequenas, todas ocupadas por homens sozinhos.

Samuel está em uma delas. Nacib (sem Gabriela, que ficou no Museu) em outra. Ninguém fala com ninguém, é um prato cheio pra observar a vida alheia ensimesmada. Samuel é baixo, magro, tem dedos longos e finos; usa óculos de armação estreita arredondada e, mesmo à distância, desconfio que seja de ouro. Já passa dos 60. O casaco azul grosso e as costas curvadas denunciam-lhe a ocupação de sentar-se horas a fio, provavelmente atrás de um monóculo de ver diamantes; perdeu tudo para o sócio há uns anos, foi-se para outras bandas e deixou-o só com as contas a pagar. Hoje almoça sozinho, entristecido, pensando que gostaria de estar acompanhado. Suspira na direção da porta entre uma garfada e outra.

Nacib, na mesa ao seu lado, enfarta-se com o sarapatel e a segunda garrafa de cerveja. Olha em volta e sustenta-se sozinho. Rosto vincado, olhos azuis afundados, tem os dedos grossos, as mãos grandes, agarram o garfo como se o fossem engolir. Está sozinho, mas é porque quer. Mandou a mulher embora porque não permitia que fizesse com ela o que quisesse, e Nacib quer da vida tudo. Não quer lhe dar? Vá passear. Estou melhor sozinho do que acompanhado com quem não quer me servir como quero.

Marquinhos chega depois, afobado porque tem compromisso logo a seguir. Engole o prato feito, toma o suco pronto servido no copo, palita o dente a caminho do caixa e desaparece atrás dos braços compridos que usa para equilibrar o corpo. Nem dá tempo de que se lhe observem as mãos.


Suse, a dona do estabelecimento, é mineira da capital, mas já tem 32 anos de São Paulo. De Bom Retiro, pontua com orgulho encostada ao fogão aberto. Seis filhos. Um deles vive em Londres, e ela conta em altos brados que achava que esporte de macho era futebol, e precisou ir lá fora pra descobrir que macho mesmo é outra coisa. Foi ver uma partida de rugby, na fronteira com a Escócia. Entusiasmou-se tanto, mas tanto, que ainda hoje aumenta a voz quando grita "Brandford Bulls!!! ". Aquilo que é jogo de macho, o resto é conversa. Deve ter sido a mais animada da torcida, num jogo a menos de 5 graus negativos. Grita com o marido, o Fernando que fica no caixa, o tempo todo, e quer saber quem que vai levá-la ao jogo do Corinthians. Estamos no bairro da Fiel, é bom lembrar. 

São tantas palavras em volta, que saltam dos lábios e dos gestos, que me perco, não quero ir embora, ficaria ali horas observando o entre e sai de clientes. Como essa moça que entra agora, de rosto recém acordado, sozinha, e se senta atrás de mim, pernas de fora de uma saia curta e azul e justa, e pede um prato que eu não conseguiria comer o fim de semana inteiro.

Mas é preciso ir, e deixar para uma outra vez. Volto com a humanidade toda à tona, humanidade feita palavra, feita desenho de sons num papel etéreo que não se deixa prender entre os meus dedos. As pequenas misérias da vida insinuam-se, mas perdem força. Os outros são sempre mais do que nós.