17/05/2012

Exercício - a flor

"Júlia chega tarde, tão tarde que nem consegue desculpar-se. Em cima da sua mesa há um vaso de flores azuis e brancas, que a sua avó chamava de forget-me-not. Ela sabe que há um nome em português, mas não consegue lembrar-se.

Desconfia que quem as enviou quer que seja essa a mensagem. Que ela não o esqueça. E Júlia sabe também que o nome da flor em português fala de ouvir, e sua mente embaralha-se querendo lembrar-se, os primeiros sons da palavra brincando de esconder-se debaixo da sua língua. E Júlia sabe que não deve esquecer as palavras que ouviu, e que esse forget-me-not cantando azul em cima da sua mesa significa que aquilo tudo que ouviu, tudo aquilo que se gravou em sua mente e que não a deixa sossegar e que ele disse junto a seu rosto quando achou que ela dormia, são palavras para não esquecer, para serem guardadas dentro do seu ouvido, em algum recôncavo que as amplifique de vez em quando. Quando ela arriscar esquecer-se, por exemplo, e arriscar perder-se entre casa e trabalho, e arriscar pensar que talvez nada valha a pena e que talvez apenas o nada valha alguma coisa, pouca pouca coisa.

Júlia desvia seu olhar dos papeis à sua frente para as pequenas flores azuis. Tenta lembrar-se do nome outro, que lhe traz a Grécia mas não sabe a razão. Apenas a Grécia, o branco das colunas projetado no céu tão azul quanto o mar atrás de tudo. Mas nenhuma palavra, só imagem e azul. Por que de repente a sua memória fica tao arredia? Por que se esquece de coisas banais, tão banais como o nome de uma flor? E de repente vem-lhe uma necessidade imensa de correr até onde ele está e pedir-lhe colo. Talvez tenha sido o azul. Ou a pequenez de cada flor. Ou o sentir-se desprotegida, a pele nua diante do aço da manhã. Colo, ela pede entredentes. Baixinho, apenas o suficiente para se ouvir dizendo a si mesma a palavra, duas, três vezes. Colo, naquele sentido de ainda verbo latino, e de novo a sua avó segredando-lhe a vida por trás das palavras. Colo no sentido de cultivar, de constituir morada. No sentido de ser cultivada, preparada, o amanho da terra que são os seus ossos, o passar do arado por entre os espaços das suas costelas, o lanço da semente em suas covas, a chuva que faça brotar o plantio. E a colheita, o corte, o arrancar: colo em que ele a cultive e colo em que se abaixe para recolher os frutos quando for hora. E, tendo-a plantado e colhido, que forme sua cabana junto às dunas de areia quente, e que aí estabeleça a sua morada. Sem que os ventos a demovam nem o removam. Dentro de si, que nada precise ser aparência, apenas essa sensação de ser e pertencer, de morar em algum qualquer canto.

O chefe observa-a do outro lado da mesa. Júlia endireita-se na sua cadeira, ajeita-se diante da mesa e coloca seus fones de ouvido. Recomeça o trabalho abandonado a meio, atrasado como ela. Farejando as possibilidades de fuga, como sempre. As flores olham-na com seu olho amarelo. E a palavra surge-lhe leve e sonora dentro da boca seca, fazendo com que seus olhos se fechem como se lhe sentisse o gosto entre os dentes e as gengivas: miosótis."


15/05/2012

A cidade nova XI - os ovos

Dona S. abordou-me há alguns dias na porta de casa, quase eu entrava, quase ela saía. Costume seu, não me incomoda. Gosto de observar os costumes alheios, pensar quem seria eu fossem meus esses hábitos que preenchem os outros. Com um psiu acompanhado de um movimento sutil da mão magra e rugosa, aproximou-se de meu ouvido para cochichar um conselho. Sobre comprar ovos. É um nunca parar de espantar, esta minha vizinha.

Diz-me, mais do que pergunta, que (logicamente) comemos ovos. Respondo-lhe que sim, achando graça que presuma em vez de perguntar, fazendo de conta que perguntou. Contente, aperta os lábios e meneia a cabeça, confirmando-me que de fato já sabia.

- "Pois então, não sei onde que você anda comprando... mas os ovos que valem a pena são os do Wanderley". E sorri um daqueles sorrisos satisfeitos sobre os quais algum poeta já escreveu: não é possível saber se a satisfação lhe vem de si mesma, do que diz ou do fato de ter podido contar a alguém. Eu rio-me, mas só por dentro que não a quero ofender. E pergunto, como que confirmando, como que querendo que diga mais: "Do Wanderley, dona S...?". E ela: "É, filha: são um pouco mais caros, mas são grandes. Ovos? Pra mim, só os do Wanderley".

E aponta o barzinho do fim da rua com o dedo esticado, e o Wanderley varrendo com vagar e método a calçada da sua esquina. Wanderley é um ser cheio de fleuma. Abre o bar quando quer, se quer e se lhe der na telha. Há uns horários escritos na parede, mas não representam a realidade, são só um norte, conforme me explica. E há alguns horários sagrados, em que nem ele nem o bar são de ninguém: entre as 13h e as 15h, não me chamem, não me peçam, não me incomodem. No resto do dia, vê tudo do seu posto avançado de observação da rua, o banquinho alto atrás do balcão antigo, de azulejos velhos trincados na beirada, a pedra de mármore rugosa de tão velha cobrindo a superfície, abrindo espaço para a estufa onde se encaixam uns nos outros os melhores torresmos da cidade. Wanderley vive atento, cumprimenta todas as vezes em que eu passo na sua porta, como se fosse a primeira do dia. E quando paro, um dia ou outro, sorri e diz: "Hoje seu dia foi cheio, hein?". Assim, como se soubesse muito da minha vida.

Dona S. não me larga. Quer garantias de que também eu, a partir de agora, farei jus aos ovos do Wanderley. E a sua maneira é peculiar, como em tudo é peculiar esta minha vizinha:

- "Mas, viu? Você é quem sabe... quer pagar mais barato, pra ter ovos menores? Problema seu. Agora, se me pedir ovo emprestado, faz favor de me devolver dos bons, é só pedir pro seu menino correr na esquina e comprar do Wanderley."

14/05/2012

Exercício: as cartas

"Armindo,

Tudo isto que abres em mim, nada mais é do que pura entrega. Porque não cabe em mim tudo o que sinto, preciso entregar-te. Porque não há espaços vazios. Porque as superfícies todas que trago em mim são o teu corpo, o ar em volta é o teu hálito e eu mesma não respiro senão o líquido dos teus olhos. E porque a distância invade-me como as ondas do mar, como a areia da infância a arranhar-me as costas às margens da lagoa, a corrente na direção do mar a querer arrastar-me, e a areia a querer-me manter à margem, na margem, num destino fixo. Como se tivesse combinado algo comigo, mas eu não me lembrasse.

E eu mergulho, e eu deixo-me levar, como folha desfeita, molécula de entregas secretas expostas à água salgada. Todos os dedos que me vibram recobrem-se da tua pele, e nem grito, nem me debato, porque sou em mim o que és. E não sei como conter esta avalanche, e nem quero, e a vida que vivo acena-me de outra cada vez mais longe margem, um eco do que deixo de ser desde que as tuas mãos me erguem cavernas desde então meu refúgio. Diz-me: quem é esta que afloras e não conheço, esta pedra escavada e atravessada de sangue, granito líquido?

Tua,
Isaura"


(Tempestade de neve no mar, William Turner)

Amigos no feriado


À Vera e ao André

Visito um casal de amigos, no último feriado. Amigos antigos, com aquela qualidade rara de nos olharem nos olhos e nos verem as pontas da alma. De perceber nuances que outros, mais recentes, podem nem ver passar. De sentir as intranquilidades que assolam os barcos antes do embate nas rochas. Por isso, não é preciso dizer nada, e em um instante, como em volta de uma fogueira, um céu de estrelas iluminando as ideias, é dito o que precisa ser ouvido, e é só.

Olho meus amigos e penso no quanto a maneira como a vida se escolhe se modifica ao longo dos anos; o quanto depuramos e transgredimos as certezas de um dia para vivermos o seguinte; o quanto nos afirmamos a partir de negações internas; e o quanto gostamos, ou não, do caminho que seguimos. As escolhas modificam-se, assim como a maneira como olhamos em volta para o outro, para nós mesmos; a maneira como consideramos a entrada do outro na nossa vida, o como nos abrimos em espaços que sequer sonhamos antes para que ele se faça em nós. Esse outro que nos reconstrói, que nos oferece com um sorriso de ternura a sua visão de mundo, completando e melhorando a nossa; esse outro que é nossa possibilidade de reconstrução da própria humanidade, nossa salvação, renovação da capacidade de amar, enriquecimento mútuo.

Com todos os rombos, todas as tempestades, todas as marés que sobem e descem, é um alento passear no passado e encontrar antigos futuros transformados em presente real. Mesmo com as rugas, as marcas, as dores todas do corpo que não se reconhece, somos mais que um simulacro do que éramos antes. Olhar para amigos antigos, perceber dentro dos braços o mesmo abraço, dentro dos olhos o mesmo sorriso, rir das aventuras passadas e perceber o quanto vive de ingenuidade dentro das nossas certezas: em tudo, formas de reviver e olhar a própria presença, acendendo a essência que dormia.

(Foto: Estância Ecológica Canto da Garça, em Juquitiba, onde moram a Vera e o André.)


Exercício - no analista


Júlia precisa inventar-se, nos últimos tempos, várias vezes por dia. É o que diz a seu analista, nessa sessão que começa a meio de um dia de névoa que parece não se desfazer nem na água do rio que corre ao lado do prédio do consultório. Júlia levou consigo, para dentro do elevador, uma alma enevoada, com ela subiu os 6 andares nessa máquina lenta de ferro, e com ela entrou na sala estreita. Inventar-me olhos, pele, percepções do mundo que de repente não se referencia a si mesmo, diz ela. Porque abandono seguranças antigas e nesse de repente do mundo mudado, pergunto em volta onde o apoio do pé? Não sei se um começo de queda ou se um braço estendido agarrado à outra margem do abismo. Que momento é este? Não sei se corro no vazio, alimentando meus passos da esperança (a doce ilusão) de correr em terra firme, e estou prestes a cair e não sei, e de repente de novo cada vez mais longe dos galhos sobreviventes das árvores, aqueles estendidos desde a margem aos náufragos de passagem. Que momento é este?

E seus braços fazem os gestos dos galhos quando perguntam ao rio e seu rosto molhado de lágrimas é o próprio rio na passagem desse destino desconhecido. Júlia afasta o cachecol mas o frio diz-lhe que mantenha o casaco junto ao corpo. Não está frio, mas ainda assim Júlia sente frio.

E o analista intervém. Inventar no sentido que lhe confere a palavra raiz: criar a partir dos restos do que morreu. Mas Júlia diz, não reconheço com facilidade as mortes à minha volta; nem com facilidade lhes levo as velas de defunto, as ladainhas das carpideiras, o caixão, os olhos fechados, as mãos contritas unidas no centro do peito oco. Olho para dentro delas e devolvo-me um vazio, um não ser que não sei se alívio se tormento. Se não estão aqui, para onde foram, essas mortes? E um vazio de silêncio opaco estende-se entre o divã que é poltrona e a cadeira que é cadeira, onde o corpo vestido de cinza do analista a olha com compaixão.

Eu sei, diz Júlia antes de levantar-se e desistir da sessão e dizer que não sabe se voltará um dia, ou se essa noite será o seu último passado, eu sei: crio-me a partir dos restos do que morreu em mim, e nessa arqueologia da alma, vejo que outras coisas morrem, e quero correr com elas para a reciclagem, mas elas dizem-me que querem-se mortas e enterradas, e que eu obedeça o escorpião que me rege e lhes dê o que é da sua natureza. A morte. E o desenho dos seus dedos na maçaneta ainda está lá de manhã, quando o analista desce as escadas para comprar pão e leite. Quando voltar, dentro do elevador, sentirá a presença da névoa, e os menores cabelos da sua nuca se arrepiarão de frio. E a maçaneta devolverá o calor à sua mão, ao entrar na sala estreita e sentar-se na cadeira que é cadeira, vestida de cinza como ele próprio.

(Desenho de Ale Félix, que não tem nada a ver nem com a Júlia, nem com seu analista.)

12/05/2012

Dos diários III


"As coisas que estão mortas aliviam-me as próprias curvas, os abismos em que se precipitam os cada vez mais cheios rios que escorrem sem tempo por dentro das minhas veias. A cada cair, aumentam o seu caudal, o tamanho da sua força. A minha alma, suspensa na margem, está toda molhada da sede que avança.

As coisas que estão mortas são silêncio. Nada as interrompe nem altera. Jazem parecendo quietas, invisíveis debaixo do chão, sem ar, sem tempo, sem escolhas.

As coisas que estão mortas só foram, e as marcas que deixaram são tão invisíveis quanto elas, agarradas à terra debaixo do chão.

As coisas que estão mortas não se ferem, não se movem, já não são, e ainda assim sente-se a maciez do toque do que foi e permanece no que é."
(Dos "Diários de Hope", a personagem em busca de contorno)

11/05/2012

Exercício - o sonho


A mulher acorda com uma palavra entre as pálpebras. Lezíria. Vê as letras através dos cílios, dentro daquele tempo diminuto que vigora entre sono e vigília. Nem sabe exatamente se é assim que se chamam as margens transbordadas dos rios das planícies quando chove além do previsto. Ou quando chovem as águas certas no tempo certo. 

Lezíria. Há um traço de infância por entre os espaços das letras.

Deixa-se estar na cama, cortinas ainda fechadas, um azul filtrado pela cambraia branca. Dentro do seu sono há um árabe campino por trás da palavra – a galope, barrete vermelho, sua vara de tocar o gado erguida como lança preparada para a guerra. Não se lhe veem os olhos, nem a boca, transida num esgar amargo de vida mal preenchida. Atravessa o campo alagado, os cascos respingando água nos olhos entreabertos da mulher que ainda agora dormia. As margens do rio não param de transbordar, a lezíria inundada, o rio escorregando pra dentro da terra, sem força, sem peso, sem pressa. O mais fértil dos mundos debaixo d´água.

Quando as águas refluem, a terra encharcada abre-se à semente. Sua e contrai-se, a água em si que se seca, a terra magra, escura, como ossos que se desenterraram e secam ao sol. O campino toma emprestado o vigor que o rio lhe concede, e atravessa os campos cultivados com tranquilidade e orgulho, seu cavalo de cabeça baixa sem nada respingar.

A mulher vê-se atravessando a ponte de ferro por cima da lezíria e do rio. É ela, mas está magra e ossuda como a terra. Reduz a velocidade a meio, os campos alagados a seu lado virando-se sobre si mesmos para vê-la passar. A mulher freia e para. Desce e anda pela margem; a chuva que já se sente inchando o caudal do rio, as beiradas de bocas abertas à água que se anuncia. A colheita está feita e no campo só sobra o restolho amarelo queimado de sol. A mulher anda sobre ele, e ele estala sob seu peso. Fios de água escorrem por entre as hastes quebradas; molham-lhe as pernas e fazem-na voltar à ponte.

As cortinas ondulam na janela, abandonando a sombra do campino que já é passado. A mulher levanta-se, o lençol em desalinho, os olhos encharcados como lezíria em flor. Como um dia após o outro, a chuva, a semente, a colheita.

08/05/2012

Notícias do canteiro

Perguntam-me sobre a obra. Aliás, perguntam como ficou. Como se alguma coisa por estas bandas estivesse no ponto de "ficar". Só rindo, mesmo! Não: tudo movente, nada fixo, como queria David Mourão Ferreira, o poeta português perito em lapidação de palavras e formas. Lapidar a vida: deve ser essa a lição que preciso aprender.

O ponto da obra, então. Ontem o céu se entalou entre os palitos de laje. Faltaram as escoras, por isso mais um atraso no advento do fim. Em breve (espero) haverá um teto, mas por enquanto o que nos cobre é esse céu azul pleno, semeado da esperança de que não chova. Roupa? Não se lava mais, perdeu-se o varal, a tomada... Lavar o chão? Sem sentido, igual lavar calçada. Deixam-se as coisas como estão. Assim como a alma, atropelada pelos carrinhos de cimento que circulam até mesmo de noite e até mesmo quando o pedreiro não vem, espremida por todos os lados da vida.

Estranho viver num canteiro de obras. Mesmo sem mania de limpeza, irrita o pó por todo lado, brincando de esconde-esconde com o bom humor, atrás dos tijolos que aguardam a parede que não vem, a fome, a sede, tudo agoniado do lado de dentro da gente. Um teste de paciência para o tempo que passa tão devagar, o dia de amanhã custando a chegar.

05/05/2012

A cidade nova X - o presente

Dona M. fez aniversário dia 25 de abril. Achei tão simpático (e revolucionário) fazer aniversário nessa data que resolvi visitá-la e levar-lhe um presente, e ainda umas flores. Flores, por aqui, é fácil encontrá-las; a duas quadras do cemitério, não faltam floriculturas em volta. Dia bonito, vou a pé escolher uma orquídea chocolate, suas flores miúdas delicadamente traçadas a marrom escuro. Bonito demais. E grande. Sorrio satisfeita, não tem coisa melhor do que dar presentes aos outros.

Volto para casa e embrulho um de meus livros. Não tenho papel, então o embrulho será invisível, mas a fita que o amarra fará as vezes do movimento de abrir que um presente demanda. Presentes abrem-se, deixam-se entrar, percorrem-se com os olhos, com as mãos, com a vontade. Deixam-se ficar ali, empoleirados em algum lugar da sala, e a cada vez que a vista pousar neles, quem fez a oferta materializa-se. Oferecer multiplica-se em quem sabe receber.

Dona M. espreita de dentro de casa com um sorriso espantado, e só então me dou conta de que talvez o presente em uma das mãos, o vaso repentinamente descomunal na outra, a visita a essa hora em que ninguém se visita, tudo isso junto, seja demais. E coro, vermelha de súbita vergonha de ter-me preenchido tanto da vontade de agradar ao outro que de repente tenha me perdido dos limites que se respeitam em situações assim. Mas o sorriso estampado de Dona M. não é desse tipo de espanto, mas da vida não lhe trazer presentes e flores todos os dias para diante de seu portão, que ela nem consegue abrir de tão atrapalhadas ficaram as suas mãos. E eu, que tinha pressa, e precisava só dizer-lhe com um gesto o quanto me alegrava e confortava a sua presença na minha vida, vejo-me rebocada para dentro dessa casa desocupada de quem já morreu. Passeio pelos quartos que se mantêm como se seus ocupantes fossem voltar a qualquer momento, como se os filhos que se foram pudessem sonhar ainda nesse travesseiro macio à meia luz, como se o marido morto pudesse perambular ainda e criticar-lhe as compras feitas sem raciocinar, diria ele. Dona M. conduz-me pela mão e eu deixo-me ir, porque eu não gosto de não deixar-me ir. Permito que entre em meu tempo e o desalinhe, que agarre a minha mão e a faça percorrer a sua vida, o seu passado, a colcha de presente que ganhou da nora viúva e de que não gostou, mas usará porque não importa o seu gosto, importa retribuir. Porque presentes, diz-me ela, são pedaços do outro, e pedaços do outro guardam-se para que o outro não se falte. Filósofa, minha vizinha.

Dona M. gosta tanto de receber presentes quanto de os dar. Mostra-me um freezer cheio de doces que não pode comer por causa da diabetes, e que faz para dar aos outros. Um armário cheio de panos de prato debruados a crochê, para quando perceber que alguém pode gostar. E conta-me tantas histórias que perco a hora, perco o compromisso, chego atrasada. Mas passo o dia sorrindo, pensando em Dona M. que pensará em mim no seu caminho da sala pra cozinha, e tropeçar nas flores, e da cozinha pro quarto, quando se deitar à noite, colocar seus óculos e me deixar embalar-lhe os sonhos.