13/03/2012

Curar panelas: dicas para quem esqueceu


Ao Daniel e à Betina, através das conversas de um dia bom

Quando se compra uma panela de barro ou ferro ou pedra, é preciso curá-la. Prepará-la para ir ao fogo e cozinhar a comida. Há várias maneiras disso ser feito, mas hoje, quando me perguntaram por aqui mesmo como era que se curavam panelas de barro, precisei avisar que há um procedimento básico, sim, mas que cada panela é uma panela. Cada forno é um forno. Cada dia é um dia. 

O básico, conforme já aprendi em mais de um lugar, com variações que percebi serem bastante irrelevantes, daquelas coisas que se inventam e depois se apelidam de “tradição”, é: unta-se com óleo por dentro e por fora e põe-se no forno bem quente durante uma hora. Mais ou menos uma hora. Mais ou menos óleo. Mais ou menos fogo forte. Porque é preciso observar o comportamento das coisas para saber como lhes pôr a mão. Nada é igual a nada. Cada panela pede um amparo diferente. Como as pessoas.

Existem até, por aí, panelas que não precisam de cura – vêm prontas da loja, é lavar e usar. Quase como comprar roupa pronta, sem precisar ver medidas, provas, saborear aos poucos a saia nova que se vai vestir. Há as de alumínio – mas fazem mal à saúde, mesmo aquelas pesadas sem polir, que sujeitos que gostam de conversar vendem pelas ruas nuns carrinhos que equilibram dezenas delas. Há as de inox, também, mas são caras, não é qualquer um que se aproxima. As de ágata eram boas, mas só antigamente, agora vem tudo da China: espirrou, lascou. Todas elas (menos as de ágata, já se vê) duram para sempre, as propagandas frisam bem essa peculiaridade, o que pode ser uma eternidade ou o sopro de um minuto, uma vantagem ou um tremendo de um incômodo – depende muito da relação que se estabeleceu com elas. Como chegaram às nossas vidas. Pelas mãos de quem. Com quais intenções. Como as pessoas.

As de barro, as de ferro, as de pedra não chegam assim tão facilmente, tão óbvias. Tive um caldeirão de pedra por quem me apaixonei certa vez que demorei pra curar: não cabia no forno, de tão grande! Encontrei-o em Varginha, a caminho de Carmo da Cachoeira, escondido atrás de uma estante escura e empoeirada. Fui usando-o bem de levinho; untei-o de óleo dias a fio, fui fervendo um tantinho de água aqui, outro ali, sem chamar muito a sua atenção, pra não acabar trincando. Pesava muito, mas muito; era difícil a operação limpeza. Mas fez muitas sopas boas, generosas, profícuas. Por fim trincou, e ganhou uma planta  verdejante e ampla para recheá-lo. Ficou pra sempre ao meu lado – mas de outras formas, mais sutilizadas, sem a obviedade do cotidiano. Como as pessoas.

Com mais de metade das panelas ainda encaixotadas pela mudança, às vezes sinto falta de algumas delas, e não faço ideia de por onde andam. Gostaria de tê-las por perto, ainda que sequer as usasse porque a cozinha a rigor ainda só existe pela metade. Mas seria bom podermos olhar umas pras outras, respirar o ar de promessas gastronômicas, lembrar das boas coisas que se compartilharam de dentro delas, rir das bobagens que se disseram enquanto se espreitava o que se mexia com a colher de pau. Como as pessoas.

O engraçado é que, às panelas, precisemos curá-las antes de nos tornarmos íntimos. Cuidá-las num antes para que num depois não trinquem. Não percam a sua função suprema. Não nos deixem na mão, deixando derramar seu conteúdo precioso no tampo do fogão. Não queimem tudo o que lhes pusermos dentro. Porque, às pessoas, costumamos na maioria das vezes precisar curá-las depois de as termos descoberto, depois de nos termos aproximado e entrado nas suas vidas, das maneiras mais insuspeitas, depois de as termos usado no bom sentido, permeando-as com os nossos sentidos e os nossos significados. 

Precisamos curá-las porque às vezes elas trincam, elas se ferem, lascam, perdem pedaços entre o armário e a pia, o fogão e a bancada. E nem sempre nos damos conta, e quando percebemos já elas estão a caminho de outra função, porque nos esquecemos ou não conseguimos curá-las a tempo. Bom é quando se encontram pessoas que cuidam da cura e protegem o tempo, alicerçam a aproximação com sutis camadas de óleo, essa matéria densa que flui escorregando, untando - como gostam alguns de dizer, "temperando a vida", com coisas que só a vida dá.

12/03/2012

Questão de entendimento

Tem gente que entende as coisas errado. Ou as traduz sem saber primeiro falar a língua do outro. Ou, pior: decide interpretar o mundo através só e apenas do seu prisma, esquecendo-se de que talvez na língua dos outros as coisas se processem diferentes. Se encontrem diferentes. Tenham significados diferentes. Tanto faz se mais ou menos profundos por trás de palavras que parecem coisas tão simples: são sentimentos que ultrapassam as fronteiras do país da simplicidade. Seja isso bom ou não.

Acontece por todo lado, nos espaços mais insuspeitos. De certa forma, é um alívio, porque afinal constata-se que está arraigado o costume, não é coisa apenas da própria vida ou do próprio círculo.

Basta sair de casa pra ver o fenômeno acontecer. Acho até que saio justamente para que isso aconteça,  e meu coração se aquiete. Só pode ser isso: não é possível que em tão pouco tempo se esparramem exemplos tão palpáveis.

Primeira parada: supermercado. Cai-me um exemplo no colo: é óbvia a boa intenção de quem escreveu, nem é possível achar que foi falta de atenção, percebe-se o capricho. Morri de rir quando li. Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. E às vezes confundem-se as coisas, troca-se uma letra na leitura, outra na escrita, e o resultado não é o esperado. E, aqui, a ordem dos fatores incomoda o resultado. Ainda que a primeira reação seja o riso.
















A seguir, passo no restaurante da esquina. Tradicional, arejado, com cara de estabelecimento antigo onde se comia antes de comer fazer mal. Seus pratos, generosos, servem fácil até 6 pessoas, e ainda se leva marmita porque sempre sobra coisa! O cardápio quer ser internacional, provavelmente porque o dono deseje acolher também os de outros lados do mundo, o que é louvável, aplaudível, uma dose de simpatia extra que se constata assim que se bate um papo com o próprio. Mas lá vem mais um exemplo pra me cutucar e fazer escrever estas linhas, confirmando que a intenção se afasta às vezes (quantas vezes!) do resultado que se deseja. (E mais um ataque de riso.) Porque não se sabe, porque não se perguntou, porque se chegou a conclusões apressadas sobre a forma como os outros dizem (ou seja, sentem) as coisas. Com a melhor das intenções.






Mas pior de tudo, penso conforme desço a escadinha do restaurante, é quando se deve dizer alguma coisa e não se diz. Quando se guardam as medidas e as proporções e se escondem as próprias falhas e mazelas e desejos e dúvidas atrás de um silêncio que é o que menos respeita o outro e as suas diferenças. Porque as toma por incompetentes, incapazes (ainda que a intenção não seja essa). Subestima quem está ao redor. (idem) Desrespeita aquele princípio básico que já a Declaração Universal dos Direitos Humanos consagrou, de que todos nascem iguais (ibidem). Para provar, afinal, que todos nascem iguais, sim - mas uns tornam-se mais iguais do que outros, que assim ficam diferentes e não por isso podem (ou precisam, qual a diferença?!) ser entendidos, ou seja, considerados. Mesmo com a melhor das intenções.

Afinal, sol alto a queimar tudo ao redor, decido guardar a máquina fotográfica e voltar para casa. Antes que fique tarde. Antes que desanime da caminhada que me falta. Antes que decida pedir uma festa de um só e acabe dançando sozinha.

11/03/2012

A saudade


Lembrei-me da Cornélia um destes dias. Uma jersey de olhos quietos e meigos, como os das vacas são normalmente. Um amigo espanhol que me visitou anos atrás fez-me parar vezes sem conta diante de qualquer vaca que nos atravessasse o caminho, fascinado pelo seu olhar tranquilo, paciente, compreensivo. Parado e alheio, de certa forma. Ele não conheceu a Cornélia, mas quando ela veio morar conosco, parei um bom tempo diante dela, e pensei que ele gostaria de tê-la conhecido.

Durante um tempo, Cornélia ficou solta pelo quintal, agoniada que estava com a gravidez no início. Eu também estava no mesmo estado, e talvez por isso tenha ficado sensível ao significado do seu olhar. Acordava-me de manhã dando cutucadas na janela, para que eu levantasse e a ordenhasse. E depois a levasse, pela corda, para pastar em algum terreno onde hoje se construíram casas. Era um mundo de pasto, que eu estaqueei profusamente, para que ela pastasse sem fugir. Ao final de algum tempo, o campo estava todo desenhado de círculos.

Se fecho os olhos, vejo Cornélia diante de mim, ainda noite. O sol querendo levantar-se na minha frente, enquanto a ordenho sentada, o momento mais privilegiado de meditação que me lembro de ter tido, mês após mês, em silêncio. Precisando segurar a minha aflição (quando a havia) para não atrapalhar a descida do leite. O céu tingido das cores do dia a nascer e Cornélia mugindo baixinho e o leite espumando no balde de folha de flandres entre as minhas pernas. Cornélia salvou-me várias vezes do torpor da manhã; fez-me abrir a própria vida para acolher a dela; ao ordenhá-la, é como se ordenhasse (e ordenasse) a minha própria alma, nem sempre leve como a espuma do leite.

Tenho saudades dela. Saudades do levantar do sol no morro da frente. Saudades de ouvi-la mugindo baixinho com a certeza que só as vacas têm de que todo dia amanhece e anoitece, coisa que independe de podermos ou não assistir. Saudades de recolher o leite e transformá-lo em queijo e levar um deles à vizinha do lado. Saudade do cheiro cheio de verdade do estábulo pequenino onde dormia.

As saudades são terreno alagadiço, movediço. Já me afastei e fui afastada de tanta coisa na vida, oceanos pelo meio do caminho, mundos paralelos que se interditam um ao outro, que poderia ter aprendido. Saudade não é terra segura, nem alívio de nada. É condição que aperta o peito e estala as comportas dos olhos – quando estala. Quando não o faz, fica só a agonia, a falta do que se foi, e não volta, e tanto faz se é para sempre ou por algum tempo que o calendário meça. Porque o dia de hoje é o único que compete, e quando o dia de hoje se levanta sombrio, tingido pela saudade do sol que nasce mediado pelos olhos da Cornélia, que já se foi e se voltar não sei se a reconhecerei, resta o que não é lágrima, uma substância densa que amarga o céu da boca. 

Por isso se canta, e por isso se escreve. Para que a saudade, essa traiçoeira companhia daqueles que já viveram, possa ficar liberta no espaço, possa mostrar-nos para onde nossa alma quer voltar, como diz Rubem Alves, ainda que o lugar não exista mais, a pessoa tenha partido, a relação tenha se apagado, o mundo tenha deixado de ser aquele que era até ontem, a vida esteja dividida em duas metades desiguais. Talvez a dor seja essa: a incapacidade de ver através dessa vidraça embaçada que é a saudade sem lágrima, à deriva sem saber que lugar é esse que podemos chamar de nosso. Assim que o choro lavar os vidros, a visão ficará mais clara, e as minhas pernas sairão de onde ficaram presas, emperradas, com uma vontade urgente de se estrelaçarem, e sem o poder fazer. Nessa hora, Cornélia virá ao meu encontro para me puxar pela corda, nós duas em situação invertida, ela sabendo onde estão os prados mais verdes, eu seguindo-a em paz com a sua condução e o sol nascendo à nossa frente, anúncio de dia bom pela frente.

08/03/2012

A cidade nova V - As colunas


Como se fosse a minha própria sustentação, levantam-se quatro colunas nas laterais do que virá a ser a sala de casa – ou melhor, ergue-se a sua dura e rígida estrutura, férrea e oxidada. Olho-a de baixo e fico impressionada com a sua vaziez, a sua paciente espera pelo concreto que a sedimente na sua função e no seu tônus correto. Metros e metros enterradas abaixo do nível em que piso, são as responsáveis pela terra espalhada por todo canto. A mesma terra roxa que coloriu nossos pés como se fôssemos pra guerra e o chão de casa como se cenário antropólogo.

Paro o que faço para observar o esqueleto da coluna. Imóvel, extático, tão alheio a tudo o que parece a vida. Falta-lhe o tendão do cimento, a carne da pedra, o sangue da água que a tudo amalgame. O céu lá em cima assiste impávido, e o ferro sobe, cresce, galga degraus inexistentes e finalmente alcança a laje da casa que já existe. Um novo membro em estado de acolhimento. Dói em quem já estava aqui – há furos pela parede que já existia. Mas não há lamento, tudo é silêncio agora que a marreta, a pá, a enxada se foram. Apenas um incômodo visível, cheio de dores e marcas. Mas a coluna veio pra ficar, para se tornar mais sólida até, para permitir que a vida se amplie e abrace mais espaços, mais seres, que o sol que nasce para todos aqueça também todas as peles.

Valdete demora pra voltar – e as colunas ficam onde estão, à espera desse pedreiro que só vem aos sábados, pacientes e indomáveis como o tempo, resistentes e quase parecendo insensíveis. E eu continuo sentada, olhando a singeleza dessa construção de barras de ferro e arame, querendo ver a obra terminada, a casa limpa, as colunas incluídas para sempre no corpo da minha casa. Ainda que saiba que o sempre é uma categoria relativa, reconstruída a cada dia, cada dia um novo dia.

07/03/2012

"Literatura é palavra"


Só as palavras, dando os nomes, penetram até o fundo e perfuram a casca da nossa consciência?
In Tapete de silêncio


Menalton Braff fez-me pensar, ontem. Gaúcho morando no interior de São Paulo há anos, escreve a tempo inteiro. Vem a Araraquara, entre outras coisas, para lançar seu 18º livro, “Tapete de silêncio” - que eu li hoje de ponta a ponta. Encolhe os ombros se lhe perguntam para quem escreve: “escrevo pra mim, pra meu deleite, porque preciso”. Escreve porque é a sua maneira de problematizar a vida, representar numa história que é sempre a mesma diferentes maneiras de dizer. Porque literatura é palavra, diz. E palavra é linguagem.

Gosto dessa simplicidade nada simples. Faz com que me pergunte, incomoda-me a própria escrita, faz-me remexer na cadeira e querer escrever. Tiro da mochila um dos cadernos-de-anotar-coisas e a caneta: estão chegando ideias, posso senti-las descendo os degraus.

Perguntam-lhe se seus livros se baseiam em fatos reais. Ri-se – vejo-o não tão de perto quanto gostaria, estou sentada a meio do anfiteatro, mas percebo-lhe os olhos vivos que se divertem. Claro, como poderia ser diferente: “você queria que eu me baseasse em fatos irreais?!”. Com o tempo e o andar das perguntas, começa a impacientar-se: “você não acha que o escritor precisa estar a serviço da sociedade?”. “Não, não acho”, e olha para o mediador, encolhe os ombros e arremata: “O que posso fazer? Não acho mesmo.” O inquiridor senta-se, imagino que desalentado, poluído pelos manuais de seu (provável) curso de Ciências Sociais. Menalton sabe o que diz. Presidente da União Brasileira de Escritores, não se afasta da discussão política – e por isso sabe que nunca jamais o escritor pode ou deve estar a serviço de qualquer outra coisa que não seja a própria arte. Nem que seja a sociedade. Oxigênio oxigênio oxigênio.

Mais uma pergunta: “como o senhor fala de alta e de baixa literatura? Isso não é julgamento?” – 1º anista de Letras, desconfio. E lembro-me da resposta que ouvi de Zina Bellodi a uma aluna que fez a mesma pergunta em 199e/alguma/coisa: “falo porque sei, minha filha, quando você tiver lido o suficiente para pensar nisso, também saberá”. E pronto. Nem se respirava mais naquela sala. Menalton é mais brando, mais suave – mas diz quase que a mesma coisa. Eu acho que ele não vê a hora de terminar.

Quando chego a casa, tarde de tudo porque depois do bate papo continuam outros papos, nesta cidade quente onde a noite é uma bênção para degustar fora de casa, espreito a minha própria escrita. Logo vejo tantas coisas que preciso mudar, tantas coisas que de repente me incomodam, porque Menalton disse o que era preciso: as elipses são necessárias. O silêncio significante. Não se pode revelar tudo. Não se pode mostrar tudo. Não se pode antecipar o que no fundo nem se sabe que virá, porque a escrita é rebelde e se realiza de formas diferentes das que se queriam pretender. Sei o que problematizo, se Menalton me perguntasse - na escrita e na vida. Mas calo, porque o que problematizo fala de si sem precisar de mim. E onde de repente eu me descaio e revelo, é aí que a faca precisa cortar a carne.

Olho para as caixas de papelão forradas de esquemas, de desenhos, de rascunhos, descrições de personagens e lugares, de elementos que uso para estar dentro do que escrevo, a ficção tomando conta da minha vida, alterando-me o fôlego quando alterno entre o que sou e o que escrevo nesse terreno ficcional, abrindo-me portas dentro das portas que abro. E sei onde preciso cortar, finalmente. Só não sei a que horas irei dormir, a lua já cheia me alumiando pela janela aberta.

A cidade nova IV - O entulho


(Perguntam-me que história é essa dos morros 1 e 2 de entulho. Além de acrescentar que há um terceiro, incluo duas fotos que os ilustram a todos, para que se entenda, inclusive a evolução dos ditos cujos. Aí estão.)


É um pouco como aquele conto judaico, do bode na sala, sabe qual? Em vez de bode na sala (que por sinal ainda nem existe), tenho morros de entulho que preciso quase que galgar para entrar e sair. Quando chove, então, depois deste último que é só só feito de terra, é uma beleza. Fico imaginando quando tudo isto for um lugar habitável, daqueles que se varrem e limpam e permanecem limpos por pelo menos uma hora – e dá-me um certo prazer antecipar essa visão.

Essa história do bode na sala, conselho de rabino sábio, é uma das preferidas da minha filha mais nova. Passou meses do ano passado pedindo que lha contasse uma e outra vez, e eu cansada querendo avançar para outras histórias, e ela insistindo como só ela sabe fazer, até que eu cedia e contava-a de novo. E de novo. E de novo. Essa minha filha tem um dedo lá na frente, é bom ficar atenta ao que sente. Sobretudo quando insiste.

São coisas assim a que chamam premonições. Quem as tem, diz serem um fardo. Passa-se a vida antecipando o que já se sabe irá acontecer, e depois perde-se tempo decidindo decidir... o que já se sabe. A bem da verdade, um terrível de um contra senso, uma perda de tempo homérica. 

Uns perguntam-me pelo entulho, outros dizem-me que entregue – que na entrega não há sofrimento. Que não tenha medo. E eu nada posso a não ser entregar, e entregar-me, com menor ou maior capacidade dependendo do dia, da hora, do momento; assim que consigo, acontece: um fluxo de escrita percorre-me de cima abaixo, preciso urgentemente sentar-me aqui e destilar todas essas palavras aflitas por saírem de mim. Querem fazê-lo de qualquer jeito, e a minha tarefa é ordená-las. Num todo que despareça caótico, que simule lógica, que faça com que eu mesma leia e me acalme, respire mais sossegada e chegue à conclusão de que tenho algum domínio sobre mim. Só por uma questão de tranquilidade e foco - eu já sei que domínio é outra coisa.

Às vezes, dá-se através da escrita, a premonição. Como uma onda que viesse do futuro, e se captura no presente, indecifrável mas precisa. Como um feixe luminoso, milhões de nós puro brilho, súbito rasgar do véu em que se refugia o Tempo. Como uma rede lançada ao mar, na volta cheia de peixes prateados, que refulgem enquanto estão dentro d’água e assim que saem são espuma a dissolver-se no papel.

De tempos em tempos, relê-se o que se escreveu e descobre-se que já se sabia. E aí é a dissolução num oceano de encantamento, surpresa, incredulidade plena e completa. Ainda assim, os que têm esse dom mantêm que é terrível. Porque a vida vai carregando-os estrada afora, sem que se deem conta, apesar de todos os sinais que recebem. As premonições todas ao alcance, e eles alegres e saltitantes, desavisados como deve ser, para que nada pareça mesmo normal. Porque não pode mesmo parecer normal, senão como administrar, pergunto-me eu?

E é dessa forma que estes morros olham pra mim, e eu pra eles, interrogando-nos mutuamente qual a extensão do que eu já sabia, do que minha filha já sabia, do que todos já sabíamos antes de começarmos novas jornadas, sem saber mas sabendo exatamente aonde nos conduzem. Pisco-lhes o olho, feliz de estar a caminho, de mãos dadas com o destino, entregue e inteira como me pedem que seja e eu mesma desejo, mais do que qualquer outra coisa.


06/03/2012

A cidade nova III - A porta


Minha vizinha, dona S., vem visitar-me. Fez pão de torresmo e aparece quando estou sozinha: “só sobrou um pedacinho, e aqui na sua casa é gente demais. Da próxima vez faço uma receita inteira só pra vocês!”. Curiosa como ela só, transpira vontade de conhecer o lado de dentro desta obra que não acaba, destes vizinhos que lhe caíram na sorte. Cheia de opinião, não entende porque troquei as janelas da frente, menos ainda por que a entrada é por trás. “Mas filha, por trás?!”. E abana a cabeça sem compreender. Nitidamente, a maior desaprovação.

Chegamos à porta e ela estaca. “Linda, sua porta.” E é, de fato, lixada por mãos que a tornam, aos meus olhos, além de linda, preciosa. “Pena essas janelinhas, não?” E eu olho-a incrédula, com uma súbita vontade de que volte rápido rápido pros seus domínios, sua casa, do outro lado do muro. Mas ela já deu a volta ao morro número 2 de entulho e terra e entra pela outra porta, a que um dia será a da lavanderia quando esta última existir e pudermos abrir a outra porta, aquela mesma bonita das janelas, por enquanto interditada pelo morro número 1 de terra e entulho. E entra toda feliz, reparando em tudo. Não me incomoda o seu interesse. Mostro-lhe a casa toda, tarefa que se cumpre de forma bem rápida, e ela tem tantas opiniões fáceis que me deixa zonza. Se a deixo dois milímetros mais à vontade, é capaz de abrir e inspecionar as gavetas!

Assim como chegou, foi-se. E deixa-me olhando para a porta, intrigada com a sua desavença com as janelas. Tão bom, uma porta com janelas. Posso abri-las quando chove. Posso abri-las pra ver o pé de canela lá de fora (aliás, do quintal da dona S., caindo pra dentro do meu com toda a sua opulência). Pra ver a chuva. O vento. O granizo, como o que caiu no sábado, furioso. Olho de longe por entre as aberturas e fico em paz. Provavelmente porque me dê a sensação de que uma porta fechada com janelas permite que espere com mais sossego pela abertura dos portões quando as portas se fecham. Aquelas da vida, pra cumprir a metáfora.

É uma porta sem convicções, talvez: está fechada, mas abre-se. Está aberta, mas fecha-se. Dá-se a todos da maneira como a queiram receber. Só é preciso estar aberto a que as coisas não precisem ser apenas o que parecem, mas possam transcender-se e não se limitar – pra que ser apenas porta, se é possível ser janelas também? E que possam ser aquilo que são, tudo o que são, sem os rótulos que as fechem e prendam, aferrolhem quase. Como acontece com as portas sem janelas, por onde não se pode espreitar as promessas lá de fora, a não ser que se escancarem e assumam a sua única identidade. E, a essas, não é dado o prazer do olhar através – atravessa-se, sai-se ou entra-se. O máximo, máximo, é poder sentar-se na soleira, apreciando o fim de tarde e pensando em como será bom quando se puderem abrir umas janelas e dar a essa porta olhos de ver.

05/03/2012

A cidade nova II


Por pura falta de inspiração, vontade e capacidade de me concentrar no que quer que seja, decido hoje de manhã lavar a calçada – a entrada inteira de casa, na verdade, por onde caminharam carrinhos e carrinhos desta terra roxa que Araraquara celebra e que jamais desaparece das meias que a pisam. Claro que acho um desperdício de água, mas logo vi que a vizinhança respirou aliviada. Ao menos alguém se alivia.

A maioria dos meus novos vizinhos mora nesta rua há mais de 50 anos, o que já dá uma ideia da faixa etária dos mesmos. São quietos e observadores, e aos poucos vou percebendo por onde observam o movimento desta casa que parece não parar sossegada. Cumprimentam-me educados na rua, quando lhes desejo bom dia, e olham com uma forma curiosa de interesse para o monte de entulho que não some, as pilhas de tijolos que não diminuem, a areia, a terra, a pedra... balançam a cabeça (antes era imperceptível, hoje percebe-se claramente) mas não dizem nada. A mim, ao menos.

Assim que saí para a calçada armada de mangueira, perto das 8h da manhã, uma vizinha logo abriu o portão do lado esquerdo, outra atravessou a rua toda alegre e ainda uma outra espreitou por cima do muro e logo veio também juntar-se à animada conversa. Parecia que estavam à espera, cada qual atrás da sua vida. A animação tinha motivo: todas estavam preocupadas de eu não ainda não ter lavado a calçada. Nem um dia sequer! Dona S. era a mais exultante: “Mas que bom, Ana, assim eu posso lavar só a minha, não preciso mais lavar a sua!”. E eu com os meus botões pensando na minha pouca intenção de repetir o feito. Ela sorri piscando os olhos, querendo garantir que eu sei exatamente do que ela está falando. Dona M., vizinha da frente, não diz nada – e me dá a impressão de que no fundo critica o jeito todo franco de dona S., mas jamais diria nada, porque afinal a calçada ficou lavadinha. Passados uns minutos arrisca bem baixinho um “é, os paralelepípedos também podiam ganhar uma aguinha, né mesmo?” mas eu juro que escolho e prefiro não a ouvir, e seja lá por qual motivo ela não repete. Lavar a rua já é um pouco demais. Ainda assim, volto meia hora depois de vassoura e pá e recolho o que caiu da caçamba que levaram embora atulhada de entulho até a alma. Acordei com vontade de agradar a vizinhança. E mesmo rindo da situação, volto com a pá cheia pra dentro de casa.

No fundo no fundo essa meia hora de prosa devolveu-me uma espécie de pertencimento perdido – pertencimento a mim mesma, que dificilmente me percebo sozinha, preciso do outro pra me cutucar e dizer que eu sou de carne e osso, não só sangue escorrendo por dentro das veias. Pertencimento ainda que seja no reconhecer da minha capacidade enquanto lavadora de calçadas. Volto para dentro com mais forças para sentar-me ao computador e dar conta da tarefa diária, laudas que não avançam porque eu não permito, petrificada diante das folhas que preciso ler para reescrever e reescrever e reescrever. Sem parecer que avanço. Igualzinho à vida. Agora, alma e calçada lavadas, ponho-me a caminho novamente, menos ocupada com as curvas, as ribanceiras, os túneis, as tempestades todas que estão a caminho também.

03/03/2012

Entre sentir e pensar


Mestre Caeiro ensina que pensar é estar doente dos olhos. Concordo com ele em gênero, número e caso na maioria das horas. Mas hoje, como em outros dias, acordo pensando, pensando, pensando, e não há o que fazer. Tento livrar-me dessa angústia, dividi-la com os outros, mas nem telefonar para amigas queridas e distantes me ajuda: no final, estou pensando em dobro, com mais sementes brotando e incomodando o passar das horas.

Pensar tem uma estreita relação com pagar – etimológica ao menos. Embora a raiz mais aceite de pagar seja a palavra pax (ou seja, pagando nossas dívidas ficamos em paz, nada mais verdadeiro), existe um outro “pagar”, aquele que se refere a punir por alguma coisa, que tem com o pensar uma proximidade – a mesma raiz pensare. Portanto, se pensar é (também) punir(-se), só pode mesmo angustiar. E mais: pensare ainda adverte que pensar pesa. Pesa. E muito.

Para tornar tudo isso mais leve, escreve-se. Eu, ao menos, escrevo. Assim que me sento aqui e me desperto para o mundo da palavra, algo em mim se distende. Apreendo-me com outra consistência, permito-me até mesmo o que, fora do mundo da palavra, não é espaço. Volto às palavras que nas madrugadas, sem sequer acender a luz ou abrir os olhos, escrevo aqui e ali, no primeiro papel que encontro. Um manancial de olhos para dentro do que sinto, no momento em que sinto – antes de me pôr a pensar e atrapalhar a vida.

E por isso os dias em que acordo muda e pensante me pesam tanto, tanto e me fazem pensar tanto, tanto. Dias em que caminho rasteira. Quando, por mais que respire, não consigo encher-me de ar. Como se um tormento me acossasse por todos os lados, quebrando-me uma a uma todas as costelas. Como se o papel me devolvesse o mesmo olhar vazio com que olho para ele.

Há ainda um outro ancestral da palavra pensar: pendere. Que também se usava para pagar – assim como para pendurar, pender, jogar o peso para fora. O que, claro, rapidamente faz pensar que pensar nos livra do peso que o próprio pensar provoca. O que é uma charada que dificilmente conseguirei resolver neste dia, quando pensar me coloca diante do que sinto sem que o sentimento possa acolher-me, e me põe à prova, me coloca em cheque, me pergunta uma e outra vez de que lado estou e de que lado quero estar. Como se eu acreditasse que a vida tem lados em vez de espaços.

(E, quando já tinha terminado e quase me dado por satisfeita, Simone de Beauvoir vem em meu auxílio: “Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância.” Amem.)