27/10/2011

Provas para pinguins

Fiquei particularmente tocada pelo pinguim do cartum ao lado. Enquanto os demais, apesar da expressão atônita, tentam entender o que lhes diz o senhor sentado atrás da mesa, o coitado nem olha pra ele, tão interessado está no seu colega paquiderme ao lado, doido pra puxar uma prosa. A cena seguinte, se houvesse, certamente incluiria um sobrolho franzido (do senhor atrás da mesa) e o pinguim remetido ao fundo da sala, perdão do campo, sozinho ele com o ar em volta. 


Ao final da 4ª classe primária, em 1974, eu estava tal qual o pinguim aí em cima. Para progredir para a classe seguinte, e ingressar no então ensino secundário, era preciso que, metaforicamente, escalasse uma árvore tendo como ferramentas duas nadadeiras, imensa curiosidade e essa vontade de mais conhecer os colegas sentados ao meu lado do que qualquer outra coisa. Já se percebe onde eu fui parar naquela sala.

Os exames de admissão em Portugal, assim como no Brasil, eram fundamentais para o caminho escolar. Se bem me lembro, esse foi o último ano em que aconteceram por lá. Constavam de uma prova de aritmética e geometria que devia ter uma duração de uns quarenta e cinco (longuíssimos) minutos, seguida de uma outra, de ditado e redação (a parte fácil). Terminada essa sessão, o júri se reunia e promulgava a sentença: "mau", "suficiente" ou "bom". "Mau" significava que podia voltar pra casa naquele instante mesmo; os “bons” e os “assim-assim” ficavam e precisavam encarar a prova oral. Suplício completo: uma banca na frente; dois professores perguntando, outros dois tomando misteriosas notas – que em pouco tempo se convertiam em mau, bom ou suficiente. Não me lembro nem das notas nem das perguntas, mas no ano seguinte estava uma classe adiante.

Tínhamos todos 9 anos de idade – um ótimo momento para descobrir que o mundo é uma coisa e você outra. Um desconforto imenso. E enormes aprendizados. Aprende-se rapidamente, por exemplo, a reconhecer que nem todos são pinguins, nem elefantes, nem peixes, nem macacos. Há enguias, há águias, há preguiças, até antas.  Já o que fazer com isso demora um pouco mais. Dependendo da espécie, dura a vida toda.

Aprende-se também a esconder a natureza pinguim: passa-se a gostar de água quente, deixa-se de comer peixe, anda-se de quatro, prefere-se viver sozinho – e depois descobre-se que não funciona. Que quando você é um pinguim, você é um pinguim. Tenta-se outra coisa: viver agora rodeada de pinguins, sem mais nada para atrapalhar. Também não: quanta monotonia, que falta dos lobos do mar, das focas, das aves que o Darwin veio estudar!

Por fim, não resta muito a não ser aceitar a própria condição e crescer como pinguim, nesse andar descompassado e esse ar de estar sempre pronto pra festa. Aquelas coisas que um olhar atento, quando existe, desmente em dois tempos. Aprende-se como vivem os pinguins adultos, sem fazer concessões que lhes limitem os movimentos das nadadeiras. Perdem-se uns pedacinhos delas pelo caminho, nas trombadas com os outros animais que frequentam as águas polares ou dando encontrões nas rochas que aparecem de repente em meio às ondas geladas.

Pinguins desacreditam desses senhores sentados atrás das mesas (também há senhoras, não é uma questão de gênero), que lhes pedem comprovação de que podem e sabem escalar árvores, quando o seu horizonte é feito de águas e não de bosques. Desacreditam que precisem provar o que não é provável (nem importante, acrescentam quando conversam ao se encontrarem numa alegre sessão de natação), e desacreditam mais ainda quando esse senhor sentado atrás da mesa se reúne com os demais da sua espécie e se perguntam uns aos outros como fazer para respeitar o tempo de cada um dessas criaturas simpáticas que lhes coube cuidar; leem e estudam e discutem e meditam sobre o assunto. E chegam à conclusão de que os tempos não são como dantes; que o mundo mudou, e com ele as suas mesas precisam mudar também, pelo menos de lugar, os seus sobrolhos precisam suavizar-se, transvestir-se de outras formas, assim como suas palavras; que a percepção do que é único e irrepetível, aquela que inclui a todos, trará a beleza exuberante das nadadeiras para junto da força possante das trombas. Assim que, porém, chegam à floresta, sentam-se à mesma mesa, olham para todos com os mesmos olhos e esquecem-se de que decidiram deixar o sobrolho de lado. A mesa, a árvore, a testa enrugada e as palavras antigas e habituadas pesam demais. E é preciso uma força sobre-humana, daquele tipo que nos faz levitar depois de um tempo, para dizer: "agora, ninguém mais fará a mesma prova".

21/10/2011

Aos amigos librianos



A cada ano, mais. Passa-se o tempo e eu descubro mais um libriano na minha vida. Estou completa e cada vez mais rodeada de librianos - talvez devesse fazer algum tipo de terapia e entender o porquê. Filhos (três!), um companheiro de vida, vizinhos, amigos, compadres, alunos, amores - até minha caixa de supermercado predileta, a Thaís, descubro ter feito aniversário dia 15 de outubro! É um desfilar e nunca mais acabar dessas criaturas que, embora por vezes indecisas, primam pela diplomacia, pelo bom gosto, por uma espécie simples de simpatia cativante, pela sensibilidade. Ainda que, às vezes, a embotem, ou guardem, ou ruminem, ou sublimem (não faço ideia do que aconteça, mas tanta sensibilidade esfuma-se de repente por entre os silêncios que se avolumam). Tanto libriano assim em volta me dá ensejo a comer bolos dos mais diversos sabores em pouco mais de 20 dias, o que se traduz em quilos na balança – coisa de libriano, já se vê, interferir assim, sem dó nem piedade, em balança alheia.

Muita coisa depende de seu ascendente: sim, não, talvez (eis que me atacam as dúvidas do meu objeto de reflexão). Porém, estes librianos à minha volta têm em comum o serem delicados, encantadores nessa capacidade incomum de seduzir quem está ao seu redor, gentis, solícitos, bonitos, sorrisos que desmontam. Os manuais de astrologia dizem que amam o belo, e eu só posso concordar, porque carregam diuturnamente seu senso estético aonde quer que vão – mas o que de mais belo existe entre tudo o que é belo que amam, é a harmonia, o equilíbrio, imagino até que a simetria. Tudo aquilo que justamente lhes custa, que lhes dobra a alma, porque antes fosse fácil assim: não é. Essa fixação na harmonia, às vezes, leva-os a se esquivarem à contenda que se anuncia, creio – e para quem quer frontalidade podem tornar-se um desespero. Mas só às vezes.

Librianos famosos: muitos. De Sting a José Mayer, passando por Will Smith, Mat Damon, Fernanda Montenegro e Lobão. Quem consegue não se deixar seduzir?! E este aqui, que me desceu da prateleira às mãos, e que teria feito anos dia 19, se vivo fosse. A libriana ao meu lado arrepia-se quando lhe digo que sim, que o respeito, leio até com prazer, mas não me excita os neurônios nem me estimula os outros centros de onde surgem a maioria dos meus prazeres. Outros librianos sim, é fato, mas não este. De qualquer forma, e porque não gosto de recuar diante da adversidade, pus-me a ler, bem entretida aliás, hoje pela manhã, “Para viver um grande amor”. (No fundo, no fundo, meu pensamento estava mais ocupado em descobrir como é que se sobrevive a um grande amor).

Pensava entretanto no tema de outra crônica, uma que me acompanha há semanas, sobre as coisas que nos perseguem por muito que fujamos delas e a maneira como o destino tem a capacidade de nos atropelar logo depois das curvas... Talvez Vinícius (de Moraes, o próprio) pudesse ajudar-me, ele que diz que o cronista está condenado a ver-se vez por outra às voltas com a escassez de motivos, e por isso “levanta-se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração – e nada”. Nada mesmo. Nada pelo menos que me ajude a avançar na direção da divagação que pretendia. Descubro ainda outra frase sobre o ofício de cronista: “ingrato, prosa fiada”. Suspiro e quase desanimo; em dias de mais ficção que crônica, prefiro aquela sensação do ficcionista de ser levada “a tapas pelas personagens e situações que, azar dele [meu, no caso], criou porque quis”.

Vinícius oferece ainda, em meio às crônicas desse livro, poemas que "visam amenizar um pouco a prosa: dar-lhe, quem sabe, um 'balanço' novo" (libriano, ele, será?!). Uma terceira possibilidade, essa de poeta: aquela que exclama a pulmões plenos que o "único patrão" da poesia “é a própria vida: a vida dos homens em sua longa luta contra a natureza e contra si mesmos para se realizarem em amor e em tranquilidade”. Luta contra si próprio para alcançar o amor e a tranquilidade?! Não posso deixar de sorrir: é claro que nasceu a meados de outubro!

Mesmo considerando as diferenças astrológicas que nos unem, vejo as três possibilidades em ação, lá e aqui. Dão-me trabalho, a mim, com o seu desdobrar cotidiano – um trabalho bom, daquele tipo que entorpece as pontas dos dedos a ponto de precisar mergulhar as mãos em água quente, mas que ao mesmo tempo espreita por trás do espelho, para flagrar o momento exato em que os olhos mudam porque se encontrou o caminho (qualquer caminho) a seguir.  Eu, que costumava dividir-me em apenas duas, o que já era tarefa suficiente, descubro-me três em mim dentro da escrita, três formas diferentes, cada uma num formulário distinto de requisição; formas que me aliciam, cada uma com suas melhores armas; que me seduzem e embromam, altas horas da madrugada. Como se afinal tudo isto valesse mesmo a pena ser escrito. Ao menos para dar os parabéns a quem faz aniversário por estes dias.

20/10/2011

Dia de co-memorar

Sabe um daqueles dias em que dá vontade de, como todos os grandes poetas deste nosso ocidente, de Homero a Milton, de Camões a Shakespeare, invocar a grande musa e por-se a trabalhar? Depositar nos seus invisíveis braços a carga que não sustentamos, eliminarmos toda preocupação com processo, resultado, sentido - e simplesmente pormo-nos a trabalhar?

Pois hoje é um desses dias. Porque nada me sai a contento. De nada consigo ou arrepender-me ou congratular-me, e esse é o estado de indefinição que, muito possivelmente, mais me inquiete, de uma forma que não domino e sequer desejo. Ouço ranger e estalar, como se casco de navio enferrujado, cada uma das minhas vértebras e costelas: desacomodam-se para dar passagem a um espaço de alma que estava ali, recolhido, ensimesmado, contente de caber no canto que lhe parecia reservado. Até descobrir que não. Que é mais. Que não se contenta com esses mililitros cedidos. Por mais que se alongue, torça, estique, corra: nada.

Por isso o lembrar-me das musas: para ver se encontro alívio. Antes delas, evoco Mnemosyne – aquela que vem em socorro para que eu não me esqueça, a deusa da memória por excelência. Porque a tendência a esquecer está impiedosamente ligada ao limite do que somos. Ao esquecer, perdemos humanidade, subtraímo-nos daquilo que viveu em nós e não lhe damos crédito. E o passado cola-se às nossas costas, agarrado às asas que não conseguimos despregar.  Mnemosyne, uma das Titânides, nasceu da união entre Urano e Gaia; com Zeus, teve as nove musas – todas elas filhas assim da memória.  A cada invocação a qualquer uma delas, de Calíope a Érato, de Euterpe a Tália, o que pedimos é a graça de sermos capazes de lembrar, de forma atenta, de tudo aquilo que vale a pena, antes de que tudo deixe de valer a pena.

Co-memorar faz com que nos lembremos juntos de que é preciso lembrar. Re-cordar, nesse sentido que essa palavra poderia ter, e fazer com que novas cordas se estabeleçam entre o que já foi e o que agora é. Partícipes de um passado feito império e que apenas o esquecimento poderá destruir, é urgente que saibamos da finitude do tempo, mais do que da sua relatividade, e que invoquemos Mnemosyne, comemorando esse passado que reúne os feixes de uma mesma trança.

11/10/2011

Do ventre, ao berço - esgotado

Surpresa das surpresas. Com vontade de dar um presente a uma amiga que engravidou, vou em busca do livro que escrevi há tempos - tempos que perfazem já mais de uma década! Sou informada pela editora de que esgotou. Ou seja: não há mais. Sensação estranha. “Do ventre ao berço - em casa” foi escrito durante a gravidez da filha que se foi. Meses de frio no porão da casa do Zé, o mar de Cascais a reboar nas paredes - usei seu computador por horas a fio, imprimi, corrigi, rasguei e voltei a escrever. Entre a sua escrita e o dia de hoje tenho na minha pele a marca luminosa de cinco partos, que vieram juntar-se aos dois que deram origem ao livro. Sete pontos de nascimento entre o céu e a terra.

Muitas histórias suculentas se criaram à sombra das páginas desse livro; muitas pessoas se agruparam em torno de uma forma de nascer que ganhou espaço e conquistou terreno – parece que o livro ajudou a pavimentar esse caminho. Alegro-me, porque a minha maior vontade, e o verdadeiro impulso desse livro, foi o desejo imenso de que outras mulheres tivessem a experiência transformadora de se darem à luz. E não de apenas dar à luz.

Pus-me a ler, agora há pouco, o tal livro, num dos exemplares que felizmente tenho em casa. Demoro a reconhecer-me – como acontece com outras coisas que escrevo, não consigo lembrar-me de quando escrevi aquilo.

Creio que o feito deve-se ao milagre da publicação. Texto publicado, texto esquecido – mudou de mãos, de dono, de olhos: não me pertence mais. Cada livro dado por pronto significa espaço livre no meu território de memória. Um alívio dos sentimentos que não entendo, dos renasceres que deixam de pertencer-me. Outro dia, nova alvorada.

Perguntam-me ao telefone se quero pensar em nova edição – ou seja: voltar ali, àquilo que foi dado como terminado, e ligar mais uma vez os motores. Ver se sobrou combustível, limpar as velas envelhecidas, encerar as superfícies, aprofundar a vazão por onde correm as coisas.

Pode ser que sim. Agora que o leio, percebo-lhe (tanto!) os buracos, as crostas, as varizes que precisam ser puncionadas para que o sangue possa correr liberto. Assim mesmo, nu e cru. Não me faria mal reviver o passado e acrescentar-lhe o que não está escrito. Avaliá-lo nesta distância que se criou entre ele e eu. O tom mudaria, acredito – ilusões que se perderam, outras que se criaram; parapeitos da vida que não frequento mais, porque meus cotovelos procuraram outros lugares de apoio.

Vou precisar invadir os orifícios da minha memória, conclamar a deusa mnemônica a que me guie. Que não me deixe perder no horizonte os aprendizados, ajudando-me a enfiá-los a todos num colar de pérolas inesgotáveis, brilhantes e leitosas como só o são aquelas que se criaram à custa do sacrifício da ostra. Sofrer, não quero. Mas também não me ausento se for imperioso.

02/10/2011

Óculos sinceros

Perguntam-me se sou sincera quando escrevo. Sorrio (e lembro-me do mestre Pessoa, certo de que o único a sentir verdadeiramente era o seu próprio mestre, Caeiro. Depois dele, ninguém há que saiba o que verdadeiramente sente.) Mas não me perguntam se sinto, e sim se sou sincera ao escrever (ainda que, convenhamos, sejam as duas perguntas a mesma coisa). Ouço, lá ao fundo da minha memória, um dos meus professores de latim, talvez do 8º ano. Exortava-nos a sermos vasos de barro perfeitos e finos – vasos sem rachaduras que a cera tentasse ocultar: vasos sine cera. Vasos sinceros. Ao longo dos anos, descobri que a explicação nada tem de muito certo, mas ainda assim gostei e mantive-a na memória.

Sinceridade tem a ver com pureza – com ser franco, leal, simples, verdadeiro, que não oculta ou usa disfarces, malícias, dissimulações. Aquele que é sincero nada teme - caminha de peito aberto, de sorriso iluminado, de alma constituída por partículas que brilham no encontro com o outro. Olha-se para dentro dele como se olha através das paredes de um vaso sem rachaduras nem embustes. É o que é.

Passei anos com uma vontade imensa de usar óculos. Lá pelo 3º ou 4º ano, decidi que uns antigos óculos, herança das caixas do sótão da minha avó, haveriam de ser-me muito necessários, e passei semanas usando-os (sem lentes), muito aliviada por finalmente poder escrever com mais propriedade, como se deve, como os escritores de verdade: de óculos. Enquanto isso, toda a minha família, novos e velhos, usava óculos; a miopia foi daqueles acidentes genéticos aos quais fui poupada, sem entender porque esse e não outro.

Escuros, tive vários. A cada um, a felicidade de olhar para eles e o desconforto de olhar através deles - ter a certeza de que meu interlocutor não me via através dos meus olhos, como é que se mantém uma conversa com alguém no escuro de umas lentes postas?!

Finalmente, passada a barreira dos 45 anos, uso óculos. Tenho a vista e outras coisas cansadas. Lembro-me de todas as armações que vi em tantas e tantas feiras de velharias por todos os lugares por onde passei. Sem atentar para o fato de que o tempo inevitavelmente agiria a meu favor, deixei-me levar pelos encolheres de ombros dos outros, acrescidos às vezes de impaciência, e não comprei qualquer armação que fosse – para que, se não as vais usar?

Não deveria ter-lhes dado ouvidos – hoje, não encontro nada que me agrade. Posso encomendá-los do outro lado do oceano, feliz da vida pela pechincha dos mercados livres que abrem as suas portas pela janela da internet, posso imaginar que sim, estes sim!, comprá-los e... em pouco tempo perdê-los.

Mas hoje a caixa de correio reservava-me uma surpresa. Há meses avisada, já tinha desistido dos óculos que meu filho me prometera, aflito com a minha fixação por armações estilo Oscar Wilde, prevenindo que eu as encontrasse e, pior, lhas mandasse arrematar em qualquer feira londrina. Abro a caixinha e, junto com as inevitáveis contas para pagar, que é só o que eu vou buscar ao correio, um pacotinho amassado, bendito plástico bolha a permitir que as coisas viajem aos trambolhões.

Reconheço a letra do remetente, abro-o exultante e paro pra olhar os pares de óculos que ele me manda. Sim, pares: um para ler, outro para andar de carro ao sol – ouviu-me certamente reclamar do efeito dos raios no asfalto.

São óculos diferentes do que eu esperava, confesso. Olho-os por um bom tempo, e, de repente, reconheço-os sem nunca os ter visto antes. Chegam-me de um tempo distante, um dos que guardei em algum lugar, um pedaço de vida que sem querer deixei para trás.

Muitas coisas se engrandeceram em mim, desde esses óculos até hoje; outras se amesquinharam; outras desapareceram, engolidas pelo passar dos anos, outras se transformaram em detalhes incômodos que preciso varrer para fora da minha alma. (Uma amiga me diz que a história que lhe conto a faz imaginar-me num caminhão fechado na próxima mudança que planejo – e não no caminhão aberto em que cheguei da última parada em que estava.  O caminho aberto pelos meus pés parece, com estes óculos, ter se espremido através dos espinhos. Algumas rosas. Muita secura. Uma paisagem lunar. Coisas como essa é urgente que reinvente.)

Este meu filho lembra-se do que eu sou quando era antes; retoma-me nas suas mãos, as mesmas que deixaram suas impressões na haste desses óculos, e conta-me do que eu também me constituo e às vezes esqueço.  Lembra-me sobretudo que eu sou muitas coisas ao mesmo tempo, e sem as ser a todas elas deixo de ser quem sou. Pode ser uma labuta, para mim e para os outros, mas doutra forma não sou – e mesmo sendo talvez menos cansativo, é mais triste, e é, sobretudo, menos sincero.

28/09/2011

Audiovisuais


Há muitos anos atrás, minha mãe chegou a casa entusiasmada com um novo recurso educacional. Creio que estávamos no segundo semestre de 1974, quando todas as novidades possíveis, especialmente as ideológicas, inundavam as ruas do país em que se fez a revolução dos cravos. A cidade em que estávamos vira nascer o primeiro faiscar do movimento, e talvez por isso o ar se respirasse mais carregado de sonhos. Minha mãe, professora da escola técnica, tornara-se responsável pelo setor de audiovisuais, decisão que deve ter-lhe custado, interessada como era por tudo quanto era assunto, da escolha das cadeiras novas das salas de aula aos “contentores” do novo processo da recolha do lixo da escola. Mas a menina dos olhos eram os audiovisuais, e sob sua responsabilidade ficaram. Professora de línguas, recém chegada de uma temporada em Londres e recém apresentada ao psicólogo americano Carl Rogers, era tanto o seu entusiasmo que meu pai suspirava a cada vez que precisava escutar, mais uma vez, sobre as incríveis possibilidades que oferecem o mundo da imagem e do som, e tudo o que existia escondido e agora se havia descoberto, e Tóino, ouve o que te digo, vamos revolucionar o ensino de uma vez por todas!

Nesse dia de maior entusiasmo, o sorriso transbordava logo à entrada de casa, interferindo numa das minhas ocupações favoritas - ouvir no rádio um daqueles programas cuja fórmula simpática reside em poder telefonar pedindo uma música e ser atendido – seu nome era “Quando o telefone toca”, e era conduzido pelo António Sérgio (aposto que haverá quem se lembre!). O motivo de tamanho entusiasmo materno era o ter descoberto uma forma fantástica de avaliar seu próprio trabalho – filmar-se a si mesma (e aos alunos) em sala de aula, podendo conferir logo depois a sua atuação, corrigindo-a a partir daí. Implacavelmente.

Tanto meu pai quanto eu achamos interessante, muito bem, e fomos jantar. Em pouco tempo chegariam os alunos particulares de alemão, minha mãe lá iria para a pequena sala onde dava essas aulas, e de manhã cedo sairíamos todos, cada qual para sua escola. Uma vida corrida, a da minha mãe, que ainda queria conferir-se a si mesma, não sei bem em que momento do dia.

Ficou-me isso na memória – assim como o dia em que descobriu que eu fumava e automaticamente, e até hoje, deixou de fumar. Alguns aprendizados fazem-se assim: cortam os males pela raiz (embora eu tenha continuado fumante por uns bons anos) e ficam para sempre impressos a fogo na memória. Não nos largam jamais e tornam-se inspirações do nosso cotidiano.

Lembrei-me disso hoje porque descobri por acaso uma palestra que dei há uns meses, gravada. Não a tinha visto, nem achei que aquele senhor atrás daquela câmera pudesse mais tarde transformar-se de fato em mim mesma diante de mim, presa num passado que provavelmente gostaria de mudar. Pus-me a assisti-la, torcendo-me a cada novo minuto, dos longos 47 que a compõem, incomodada com aquele trejeito, com a palavra mal usada, o exemplo desnecessário, o detalhe um tanto impertinente, a insistência estúpida no que já se explicou à exaustão... Nem consigo terminar de ver de uma só vez, é aflição demais. Gostaria de poder telefonar a minha mãe e perguntar-lhe como sobrevivia a ver a quantidade de bobagens que fazemos – a menos que seja eu apenas a fazê-las, mas como minha dosagem de auto-estima está hoje nos seus limites normais, não me parece que seja façanha de minha exclusividade. Se por acaso meu pai pudesse atender o telefone, haveria certamente de rir-se e abanar a cabeça de um jeito peculiar só seu, um “tal mãe, tal filha” mudo que eu veria sem olhos deste lado do Atlântico. Não posso telefonar a um, porque não deixou o número quanto partiu para a próxima vida, e não posso telefonar a outro, porque a estas horas dorme a sono solto. Restam-me o papel, a caneta e esta janela em que se transformou a internet de cada dia. Como os audiovisuais revolucionários da minha mãe, assustam-nos tantos novos recursos, os facebooks que podem devassar-nos a vida sem que queiramos que o façam;  usamo-los canhestramente algumas vezes, com sabedoria outras, numa tentativa de dominar os dragões do mundo. Como se uma nossa porção micaélica nos fosse enviada do passado para alcançarmos o futuro.

15/09/2011

Anatomia

O melhor de tudo é quando alguém nos inspira. Quando alguém se insinua e nos provoca. Quando alguém nos seduz e incendeia.

O texto abaixo é fruto de uma inspirada provocação sedutora assim. Ganhei-a hoje pela manhã (a inspiração), resposta a uma que mandei, que nem se pretendia tanto. Veio na forma de um pequeno filme com música. Vi, ouvi – e troquei de pele, precisei criar palavras que me reconformassem. Se alguém quiser seguir o que me fez começar, ouça e leia em voz alta, com a melodia como referência. (E se depois quiser compartilhar o que sentiu, eu vou agradecer, e meu correspondente também, porque lá de longe ele cria ondas e sincronias onde parecem apenas existir corpos paralisados.)

De Ludovido Einaudi (considere a versão sem a repetição, comece a ler a partir do 3o acorde e use fones se tiver!)


Anatomia - ou das estruturas que compoem os seres vivos

a Palavra, salvação. reelaboração diária, no desenho das letras, no som das palavras, no embate, no gargalo estreito, no despedaço. através da alma, demoradas num dos ventríloquos, translúcidas diante dos olhos fechados. enclausuram-se e abrem espaço e quando se descolam outra vez, é o mundo radiante à minha volta.

a Palavra, proteção. a minha e a alheia. as que me vêm de longe e sobrevoam os mares, as que me vêm de perto sem sobrevoar nada e estão mais longe, inalcançáveis, inacessíveis. respiro, em alívio, pela Palavra viva entre nós, seja qual for. nada outra coisa importa. um som, um ah, um brotar de sentido por entre as coisas escondidas do corpo, aquilo que o ouvido ouve e o coração estremece. e torna sozinho.

a Palavra, mergulho. no levantar das próprias cinzas, a nova Palavra. montanhas e ilhas e minha vida em silêncio. o vento e os mares e as curvas ensurdecem-me, e eis que me devolvo à Palavra. entro pelos caminhos turvos das minhas veias, faço-me água dentro do sangue, transubstancio-me naquela que sou antes disto agora. sou um estado novo.

a Palavra, reencontro. o sentido do estar, agora, sendo. as areias quebradas quando me recolhem.  passam por mim e sequer as sinto. sou a perspectiva do alto. as rochas de que sou feita são apesar do vento tempestade vulcão vivo dentro de mim, cercada. e quero fugir fugir fugir fugir nesse teclado piano, cada tecla uma nota, cada nota um som, cada som um tom a mais no meu dia eterno.

a Palavra, refúgio. as Palavras amplas, construídas no interior do oxigênio, pelas mãos que se abrem e abraçam o tejo o mar os açores a praia estendida um cravo a serra alhambra as vielas a lua um quarto de hotel o riso um parto uma avó em terço os livros os dedos uma morte - as eleições de uma vida reunida nas Palavras, ossos construtores, nas Palavras, sustentação de pé dentro do meu ser líquido indestrutível diante da tempestade. rocha em todas as línguas e formas que podem escrever-se as rochas as pedras  a beira da loucura à beira da paixão presa inconsolável da fonte que não se cala não se dá não se pede não se fecha não se dobra não se abala não renuncia nunca. a ser Palavra.

(O filme? Era este:


14/09/2011

Galinha sem dono

Aos amigos do Aldeia

“Já te disse que a galinha não é nossa”. Gracinha tinha certeza, e repetia a mesma coisa a seu marido vezes sem conta. Eu, do meu lado desta cerca que nos divide, cheguei a ter pena dele. Duvidou, duvidou, tentou ainda argumentar, mas foi tanta a insistência de sua esposa, que acabou por prender a galinha no galinheiro e ir em busca de seu dono. Sei que Gracinha e seu marido gostam muito de suas galinhas, cuidam delas como se fossem filhas, e isso não porque não as tenham (as filhas), têm duas e bem criadas, mas as galinhas preenchem os seus dias, com seu andar estremunhado e seus olhos que não piscam. Cantam pela manhã, elas e seus companheiros, e avisam solícitas quando acabam de por um ovo. Nem sempre meus vizinhos os resgatam a todos – uma das alegrias das suas vidas é sentarem-se à varanda, rindo das ninhadas que correm atrás das mães, alegres e contentes como só os pintos sabem viver a vida. Assim que soube disso arrependi-me de todos os ovos roubados à tardinha e jurei nunca mais fazer uma dessas. Galinhas deitam-se cedo, ainda por cima, contava-me Gracinha explicando seu amor pelas aves, numa dessas conversas à varanda, o que nos economiza o trabalho que dão os animais de hábitos noturnos. Por vivermos no campo, não é raro sermos acordados pelos gatos da vizinhança em namoros com a nossa gata. Galinhas não miam à noite e são bastante comportadas em seus namoros. Eu assenti de leve com a cabeça, sem grande entusiasmo, que a mim as galinhas agradam-me, mas não a ponto de conversar sobre elas.

Mas a galinha estranha desse dia roubou o sossego das galinhas e dos vizinhos, logo pela manhã. Grande e gorda, toda branca à exceção de algumas penas marrons e pretas (que até lhe conferiam uma certa graça, há que se dizer a verdade), apareceu no gramado pavoneando-se como se de um peru se tratasse. Um ar superior olhando as demais, andando em círculos em volta das outras pobres coitadas, que por natureza não são nem grandes nem gordas e tendem mais à cor da terra, sem nuances. Ainda assim, são de uma graça natural que a gorda e grande visitante não conhecia. E obviamente não reconhecia.

Chamaram-me por cima da cerca, certos de que seria minha embora eu nem galinhas tenha. Mas fui lá ajudá-los a espantarem-na. Em vão. Por volta das onze horas encontramo-la expulsando uma das galinhas poedeiras de seu ninho, ansiosa por botar seu grande e vermelho ovo, descomunalmente grande. Espiamos os três por cima da cerca do fundo, tentando perceber alguma semelhança entre a invasora e as galinhas da outra vizinha. Mas as dela são diferentes, estão todas misturadas, estragadas por aquele galo carijó que o filho da vizinha ganhou junto com a esposa, e que nunca mais deixou as outras galinhas sossegadas. Certamente não era da vizinha a grande e gorda galinha. O marido, com o livro sobre galinhas debaixo do braço, não se decidia em classificá-la: Gracinha, ela se parece com esta Plymouth  Rock ou com esta Leghorn? Gracinha encolhia os ombros e olhava a galinha com uma tristeza desanimada.

O marido lá foi à procura do dono. Deu-lhe motivo para passeio, e para bater à porta dos outros, que é coisa que gosta de fazer. Mesmo quando não tem motivo. Agora que o tem, haverá de divertir-se.

Em pouco tempo a vizinhança toda sabe da galinha. Recebe imensas visitas, este bicho. Gracinha interrompeu a preparação do almoço pelo menos quatro vezes para atender ao portão e mostrar a galinha – depois de encontrá-la, claro. Todos meneiam a cabeça, elogiam a imensa galinha e dizem que não, que sequer têm galinhas, mas tanta foi a divulgação que decidiram vir conhecê-la. A mim tudo isso me dá trabalho – a cada batida de palmas, corro à cerca para ver quem é desta vez. E volto rindo pra minha cozinha, meu almoço também a meio.

Marido volta aborrecido: sugeriram-lhe que entregasse a galinha, mas sem vida e depenada. Confuso, respondeu que não, que aqui não matamos nossas galinhas, que são como filhos e por tanto fora do cardápio. Mesmo a galinha não sendo dele, começou a sê-lo nesse momento, em que repentinamente se mostrou companheira de batatas e cenouras dentro da panela. Para tudo há limites, dizia inconformado o marido, nem se fosse minha, imagine que há pessoas querendo canja da galinha alheia.

Finalmente, veio a dona, Gracinha atendeu. Agradeceu o incômodo, o trabalho de divulgação e busca. Porém a galinha não apareceu. E nem marido. Só mais tarde, quase noitinha, encontramos os dois ao fundo do quintal. Ela, grande e gorda, pastando as graminhas ralas da sombra, ele entretido entre o olhá-la e o ler o jornal de domingo, atrasado quase uma semana.
Desenho de Martina Schreiner

07/09/2011

A escrita e o pastel

Passo hoje o dia mergulhada na escrita. Dos outros, não minha, mas da mesma forma maravilhada e plena. O tema, a poesia. O subtema, a sua vivência. O subsubtema, na escola. Perfeito.

Denise, que conheço há pouco mas parece muito, é a promotora e culpada deste feriado passado assim desta forma, trabalhando quase que pelo absoluto prazer de o fazer, descobrindo mais um tanto de coisas enquanto parece que a ajudo no que precisa fazer. Não é bem assim: dá-se daqui, recolhe-se logo ali. E entre um papel e outro, tempo para isto que faço aqui: dar-me sentido a partir da escrita.

A meio do dia, vamos almoçar. Descubro que conheço uma das cozinheiras, mas não daqui, deste restaurante do Seu Luís que sempre que chego pergunta por toda a família, sabe até metade do nome dos meus filhos! Até há alguns meses atrás a Clarisse (invento-lhe o nome, não lho perguntei) trabalhava na pastelaria do Mercado Municipal, aquela que é a primeir à entrada e a melhor, diga-se de passagem. Não resisto e vou dar-lhe um abraço, porque há tempos que a pastelaria não vê meus pés e nem eu a ela. Só conversamos uma vez, mas foi tão marcante que ficou.

Assim que me sentei no banquinho e pedi um ovo empanado (que é muito melhor que pastel), ela sorriu e foi lépida buscar o dito cujo. Voltou e ficou sorrindo à minha frente, certa de que, como eu estava sozinha, devia precisar de companhia e conversa. Perguntei-lhe se gostava de trabalhar ali, disse-me que sim. Que fazia pouco tempo, mas que estava gostando, muito. E porquê? Porque gosto muito de escrever.

Foi-se na direção de outros fregueses que entretanto chegaram e eu fiquei-me com a dúvida do que teria mesmo a ver uma coisa (vender pastel) com a outra (escrever). Voltou logo depois, mesmo sorriso, mesma disposição de prosa. Arrisquei a pergunta. “E o que é que você escreve aqui?”.

“Ah... os pedidos dos clientes!”, respondeu com um sorriso alargado, cheio daquelas águas de quem sonha com o fim da seca, ou com a própria cama depois de meses a fio na boleia de um caminhão. Meu sorriso foi diferente - e voltou hoje, acrescentado, quando lhe vejo de novo os olhos claros e a poesia toda que pavimenta seu caminho. Sem que ela saiba, dessa forma que só a poesia tem de permear a vida das pessoas, sem aviso, sem notificação, quase sem sentido e certamente sem pressa. A Denise gostou da história – quem sabe passa a fazer parte do seu texto!