02/01/2011

Nefelomantes

A nefelomancia é uma das minhas descobertas dos últimos tempos. Nefelo refere-se a nuvens – e por isso esses dias em que você, como eu, anda nas nuvens e nada parece ter a capacidade de rebocá-lo de volta ao planeta terra, são, veja bem como parece a coisa mudar de figura, seus dias de "nefelibata". O sufixo mancia é aquilo que habitualmente usamos quando queremos nos referir à arte (ou artifício, aí depende de você mesmo e da sua capacidade de abstração) da predição do futuro.

Portanto, e juntando as coisas: nefelomancia é a arte de predizer o futuro através das nuvens. Equipara-se, convenhamos, às predições gregas a partir dos voos dos pássaros. Predizer o futuro é antigo na história da humanidade, e entre nós há aqueles que creem e aqueles que não. O que, imagino, não queira dizer que alguém não possa se interessar. Aliás, não consigo imaginar que alguém possa não se interessar por algo que interesse a seu semelhante. Concordando ou não ou antes pelo contrário.

O fato é que, assim que vi a tal suculenta palavra, quando à caça de outras no dicionário, perdi o rumo do que fazia e dispus-me imediatamente a escrever este texto, que no entanto levou semanas para chegar neste estado em que o apresento, por motivos que só hoje, e por causa de uma porção de nuvens, descobri quais eram.

É normal que se escreva quando se tem algo a dizer. Ainda assim, há muitos e muitos textos que começo sem saber nem o porquê nem o onde irão parar, tendo apenas a certeza de que devo ter alguma coisa a dizer. De repente, dias ou meses depois, acontece aquilo que aglutina o passado e o presente e me catapulta para o futuro, aliviando-me a vida. Hoje foram as nuvens, pairando sobre nós desde que o sol nasceu até que se pôs, e ainda depois.

O dia começou com chuva no planalto central – miudinha, fininha e persistente, tanto quanto as pedras dos prédios em volta, solenes e resistentes. Os pássaros da cidade prendem-se aos tetos, indecidem-se entre voar e apenas estar, talvez por não saber ainda qual a direção, neste dia em que parece estar-se suspenso esperando o futuro realizar-se diante dos olhos.



Ao contrário dos pássaros, as pessoas aventuram-se fora dos ninhos, enfrentam o vento, o risco de se molhar até os ossos, sorrisos abertos no rosto do sábado feriado nacional. As bandeiras tremulam nos postes todos que nos cercam, numa estoicidade que parece não se importar com a chuva que as ameaça. As nuvens, lá de cima, atentam sem vento, e os homens aqui em baixo procuram abrigo para quando a chuva cair. Marquises, tendas, árvores, sacadas de prédios - tudo é a mesma coisa. 


Ouço que talvez não seja um bom auspício, toda esta chuva, que se aproxima de longe e se vê caindo na Torre, na Rodoviária, na Catedral... Acompanho-lhe a conquista do espaço urbano, metro a metro de chão molhado percorrido por centenas de pés em havaianas previdentes.  Lembro-me das águas que lavam escadarias, de outras que fecundam campos de arrozais mundo afora, lembro-me que entramos no ano chinês do Coelho e quando olho para o céu, em busca de uma resposta, as nuvens dizem que sim e descarregam em cima de mim o meu quinhão de água. Não pode ser um mau auspício, concluo.
                            
Lá adiante, perco-me de novo nas cinzas das nuvens – a chuva parou mas a sua ameaça persiste e alguns, aqui e ali, permanecem solitários em meio à multidão, atentos às nuvens. O contraste dos vermelhos, dos amarelos e dos azuis que circulam pelo verde da grama não chama tanto a minha atenção – prendo-me às nuvens e ao seu peso, circulo por entre elas e estou tão só quanto os que se sentem sós.



Entre eles, há os que elevam suas mãos, calejadas e destruídas pela artrose que nem ainda chegou. Saúdam e erguem-se num “ergo sum” solitário silencioso antigo. Estamos todos juntos, e ainda assim pouco sabemos uns dos outros. Mas o andar lado a lado, e sem saber juntar as calosidades das nossas mãos numa roda única, torna o passo menos pesado e as nuvens menos densas. Ainda que não nos vejam, nem nos olhem, as nossas mãos estão levantadas e existem.



As nuvens prateadas acompanham o fim do dia. Mantêm o tom grave, dizem-nos da vigilância e da falta de cor que dá colorido ao outro. No seu cinza melancólico permitem a vida das cores estridentes que despertam a multidão em coro. O grito unânime acolhe generoso quem chega enquanto se despede, já saudoso de quem ainda nem foi. Muitas formas diferentes de ser gente, muitos olhares e peles de tons distintos, uns marcados por fora, outros por dentro, tantos olhos sublimados não só de esperança mas de confiança na mudança que já começou. 



Os guarda chuvas que nos isolam das nuvens garantem a privacidade do agradecimento reconhecido, que dispensa outras palavras porque não há como explicar: “Valeu, Lula” de um lado; “Bem vinda, Dilma”, de outro.


Quase anoitecendo, as aves decidem-se: melhor voar como as cores da bandeira que não desistem, e recolher os fios que se soltem, reconstruir-se em quantos ninhos se façam necessários, e quem sabe estar aqui, de novo, dentro de alguns anos, com nuvens que do céu nos orientem em direção a nós mesmos futuros.



Ana Vieira, de Brasília, 1.1.11

28/12/2010

2011 resistente ou resiliente?

Esta crônica estava engavetada há meses. Quis escrever algo sobre essas duas atitudes que dão título a estas linhas, sem perceber que na verdade a sua vocação era fazerem-se texto conforme se aproximasse 2011. Agora que já cheguei ao final do que queria escrever, e apenas volto aqui em cima para introduzir o tema de forma menos enervante que o parágrafo que se segue, sei perfeitamente qual era mesmo a minha questão com essas palavrinhas.

“Resiliência” virou moda - muitos usam e nem todos conseguem exatamente explicar do que se trata. “Capacidade de adaptação”, disseram-me outro dia. Quase lá, a julgar pelo Aurélio roído de traças daqui de casa: com alguma relação escondida, resiliência tanto é a “resistência ao choque” quanto “a propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora de uma deformação elástica”. Do campo da física, e do inglês por assimilação saxônica, a palavra migrou para a psicologia, e de lá para o campo da educação - é só procurar no google que logo aparecem muitos e muitos links que remetem ao conceito.

Para tornar-se conceito, de fato, é preciso que muitos usem uma determinada palavra, sobretudo quando esta se desloca de um campo do conhecimento a outro, passando a ser necessário estabelecer algum parâmetro mínimo comum, criando um repertório que nos permita a troca de ideias. Mecanismo básico da comunicação eficiente. Ainda assim, não resolve a situação, até porque nem o Aurélio, conceituador mor por definição, dá conta de explicar o que vem a ser a resiliência fora do espectro da física. De qualquer forma, ser resiliente tornou-se uma qualidade, senão uma competência, que os educadores devem desenvolver – parece garantia de sobrevivência, mesmo que não se saiba exatamente do que se trata.

Eu achava (antes de escrever esta crônica e ler um pouco sobre o assunto, na ordem inversa já se vê) que tinha um tanto de qualidades resilientes. Imaginava que, quando permitida minha forma original, devolvia de boa vontade toda a energia represada. Como se um movimento de equilíbrio de forças yang e yin, adequado aliás a nosso século de instabilidades climáticas e emocionais. Só não chegava a ver com grande clareza a quem devolver essa energia contida, e que muitas vezes nada tem de agradável: ao agente da minha deformação? A quem assistia a tal deformação e nada dizia? Ou a quem nem deformava, nem assistia, mas permitia? Talvez quem sabe aos recantos que ficaram em mim quase mortos por inanição, enquanto partes de mim deformadas se ocupavam por vontade e imposição alheia em reter a energia que lhes pertencia? Discussão interna desnecessária, como se verá.

O tal “resistir ao choque” adapta-se aqui de forma no mínimo canhestra: resiliência seria então a propriedade de devolver a energia que estava travada, seja lá a quem de direito, mas também “resistir ao choque”? Estando comprimido, resistir ao choque? Apesar de contido, apertado, deformado: resistir ao choque? Resistir. Seria mais fácil, se fácil assim fosse, falar de “resistência” e desistir dos empréstimos ao campo da física.
Resistência está ligada à ideia de oposição, de suportar algo que não agrada. Resiliência pressupõe o desenvolvimento de sete capacidades, e já se vê que só por isso é conceito mais elaborado e abrangente. Longe de incorporar a ideia de oposição, o ser resiliente é aquele que 1) administra suas emoções (ou seja, mantém-se sereno em situações de estresse); 2) controla seus impulsos (ou, em outras palavras, auto-regula as suas emoções); 3) é otimista (acredita que tudo pode mudar para melhor); 4) analisa o ambiente e assim evita colocar-se em situações de risco; 5) é empático, ajustando as suas atitudes a partir daquilo que percebe das emoções alheias; 6) é auto-eficiente (acredita ser capaz de resolver os próprios problemas com aquilo que tem ao seu dispor); e 7) sabe relacionar-se e criar vínculos com outras pessoas, sem receio e sem medo de fracassar. Não tive problemas em reconhecer a quantidade de lacunas nas minhas capacidades resilientes...

Isto de escarafunchar o meio das palavras é uma verdadeira lição de vida, tinha razão Isidoro de Sevilha (hei de contar-vos sobre ele um destes dias). Olhar para dentro delas, para o fora que se tornou história, para os caminhos que tomaram enquanto aprendiam a andar e começavam a falar, para a sua ressonância em meus ouvidos e em minha alma. Escrevo-as de várias formas, encontro-lhes significados ocultos, cabalas imensas a bailarem diante de mim ainda que nada delas entenda – encantam-me. Só por brincar com elas, as palavras, sei o que desejo a todos neste 2011:  a intenção firme de resistir (portanto não ceder, portanto defender-se, portanto fazer frente) aos choques que venham na direção de cada um. E assim que passarem (e passarão assim que o novo ano avançar, sou otimista afinal porque sou pelo menos um pouco resiliente), que todos devolvam a si próprios a energia que outros desperdiçaram, enquanto se dedicavam a oprimir, comprimir, apertar, deformar o que foi feito para viver livre, solto e em paz.