15/01/2011

De Isidoro de Sevilha




Isidoro de Sevilha atrasou-me as boas intenções que tinha de descanso noturno. Cismada há semanas com essa criatura, dia a dia descubro mais alguma coisa. Hoje, numa amálgama de pensamentos que à primeira vista pareciam caóticos e sem nexo, surge-me de repente a luz brilhante desse pensador andaluz.

A etimologia teve uma consistência toda especial durante a Idade Média, uma espécie de “busca persistente da transparência da palavra”. Entre os que, naquela época, se interessavam e dedicavam a essa parte da gramática, Santo Isidoro foi um dos mais importantes – muito do que pensou e viu está reunido em sua obra “Etimologias”, vinte livros dedicados a cada um dos campos do conhecimento. Isidoro escreve sobre basicamente tudo. A medicina é um dos campos a que mais dedica a sua atenção, oferecendo descrições minuciosas de doenças, tratamentos, instrumentos; mas Isidoro fala também de pássaros, construção de estradas e edifícios, moda, mobiliário, naves, meditações teológicas... Tão versátil e abrangente que o Vaticano aceitou a sugestão e declarou-o, em 2000, santo padroeiro dos internautas.

A linguagem ocupa-lhe parte substancial, mais como alumbramento do que como convenção. Por entre os excertos que leio, fiapos do santo, percebo que Isidoro sabe que a palavra nos alerta para o verdadeiro sentido da vida. Discorre, por exemplo, que ao dizermos “obrigado” demonstramos saber que a gratidão impõe vínculos entre as pessoas, sejam eles de retribuição ou de puro reconhecimento.

Por causa de Isidoro descobri, dia destes, que animi custos (“guardião da alma”) é a raiz primeira da palavra “amigo”. Ser amigo é exercício diário, às vezes um chamado insistente, daqueles que nos mantém acordados por horas em que sensatamente deveríamos dormir, impede-nos de comer quando a fome se insinua, retira-nos de repente do nosso movimento programado apenas porque é preciso, sem se explicar. Porém, acrescenta-nos: faz com que agradeçamos o poder guardar uma alma que precise de nós, e pensar nela mesma como nossa guardiã recíproca, porque o tempo passa e a vida muda, e tudo o que foi um dia voltará.

Antonio Cícero, o poeta, diz que em cofre não se guarda coisa alguma, porque se perde a coisa à vista; que guardar é olhar, admirar, fitar. Por isso guardar os amigos, e as suas almas: olhá-los e admirá-los sob a luz do sol ou sob as sombras dos dias, abertos ou sufocados, libertos ou aprisionados; ao longe se necessário for, envolvendo-os em laços feitos das rotas dos pássaros, transparentes e ousadas na sua existência silenciosa e invisível. Ou de perto tão perto que se confundam em nós as linhas dos rostos. De uma ou de outra forma, manter os olhos pousados sobre eles, os amigos, para que em dias de trevas eles repousem apoiados em nosso olhar.

Agora, não quero fazer mais nada. Apenas deitar-me, fechar os olhos e ver ao meu lado, como se ao alcance do desejo da minha mão, os amigos que não se incomodam com a distância e se fazem cada vez mais presentes, e aqueles que mesmo perto decidem ser longínquos. Os amigos que me frequentam, aqueles que me esqueceram e aqueles que ainda não conheço. Através dos meus olhos fechados e da escuridão, abraço-os a todos na proximidade íntima que a minha alma cria nesta noite. Espero que nada me acorde tão cedo e que Isidoro de Sevilha descanse em paz, assim como todos os amigos que dela precisam nesta noite.

(Foto: estátua de San Isidoro, diante da Biblioteca Nacional, Madrid.)

09/01/2011

Cidade de Goiás


O bom é chegar a meio da noite, debaixo de chuva – sempre miúda e sempre presente.

A luz amarelada dos postes baixos e quase antigos, a neblina, a quietude da cidade que já dorme, o marulhar do rio abaixo da ponte atravessam-se com o coração inquieto. As requisições alheias, as infantis e as outras, estão à espreita logo depois da primeira esquina. Mas a Cidade transpassa todos os sentidos e reconhece-se, de repente, em todas as demais cidades que carrega na história sonhada das suas pedras.

De manhã, é preciso reconstruir por dentro o que se ultrapassou à chegada, mas a combinação da luz, da neblina, da chuva, do rio, agora que é dia, escondeu-se atrás dos véus. As coisas voltaram aos seus lugares, o passado nunca se recupera.

Passa-se o dia à procura. Cada museu, cada nova casa descoberta, cada recanto – e a devolução do que foi roubado não acontece. Chove de novo, depois o sol, a mata a entrar pelos longes atrás dos telhados, o céu a abrir-se e fechar-se logo a seguir, brincadeira boba entre nuvens e oceano azul.

Num instante, as paredes voltam ao seu por dentro antes de anoitecer. Quando se chega à ponte, e logo depois à casa que se debruça sobre ela, quando se entra no porão que guarda as águas, quando num relance se descobrem o vestido pendurado como se ontem, o cobre rebrilhando no fogão à espera da colher que não vem, a cadeira e a muleta no encontro solidário entre a paciência e a ausência, volta a véspera inteira – e de repente são todas as cidades que se deixaram pelo caminho, aquelas a que se retornará e aquelas a que não, tanta coisa que se conhece e esquece.

O fim da tarde anoitece todas as coisas. Os pássaros acolhem-se aos galhos que rodeiam as margens do rio, seu chilrear ensurdecedor; os sinos da igreja do rosário já se calaram há tempos, mas ainda se ouvem, atrás deles. Cai a noite na Cidade, e agora pode-se olhar esta cidade sem a perseguição das demais. Agora, sobressaem os contornos familiares, as retas e as curvas, mas que são só dela. Só isso, o que lhe é único, serena. Só isso, e mais nada, sem passado e sem futuro. Depois, dormir, e depois, seguir viagem.

02/01/2011

Nefelomantes

A nefelomancia é uma das minhas descobertas dos últimos tempos. Nefelo refere-se a nuvens – e por isso esses dias em que você, como eu, anda nas nuvens e nada parece ter a capacidade de rebocá-lo de volta ao planeta terra, são, veja bem como parece a coisa mudar de figura, seus dias de "nefelibata". O sufixo mancia é aquilo que habitualmente usamos quando queremos nos referir à arte (ou artifício, aí depende de você mesmo e da sua capacidade de abstração) da predição do futuro.

Portanto, e juntando as coisas: nefelomancia é a arte de predizer o futuro através das nuvens. Equipara-se, convenhamos, às predições gregas a partir dos voos dos pássaros. Predizer o futuro é antigo na história da humanidade, e entre nós há aqueles que creem e aqueles que não. O que, imagino, não queira dizer que alguém não possa se interessar. Aliás, não consigo imaginar que alguém possa não se interessar por algo que interesse a seu semelhante. Concordando ou não ou antes pelo contrário.

O fato é que, assim que vi a tal suculenta palavra, quando à caça de outras no dicionário, perdi o rumo do que fazia e dispus-me imediatamente a escrever este texto, que no entanto levou semanas para chegar neste estado em que o apresento, por motivos que só hoje, e por causa de uma porção de nuvens, descobri quais eram.

É normal que se escreva quando se tem algo a dizer. Ainda assim, há muitos e muitos textos que começo sem saber nem o porquê nem o onde irão parar, tendo apenas a certeza de que devo ter alguma coisa a dizer. De repente, dias ou meses depois, acontece aquilo que aglutina o passado e o presente e me catapulta para o futuro, aliviando-me a vida. Hoje foram as nuvens, pairando sobre nós desde que o sol nasceu até que se pôs, e ainda depois.

O dia começou com chuva no planalto central – miudinha, fininha e persistente, tanto quanto as pedras dos prédios em volta, solenes e resistentes. Os pássaros da cidade prendem-se aos tetos, indecidem-se entre voar e apenas estar, talvez por não saber ainda qual a direção, neste dia em que parece estar-se suspenso esperando o futuro realizar-se diante dos olhos.



Ao contrário dos pássaros, as pessoas aventuram-se fora dos ninhos, enfrentam o vento, o risco de se molhar até os ossos, sorrisos abertos no rosto do sábado feriado nacional. As bandeiras tremulam nos postes todos que nos cercam, numa estoicidade que parece não se importar com a chuva que as ameaça. As nuvens, lá de cima, atentam sem vento, e os homens aqui em baixo procuram abrigo para quando a chuva cair. Marquises, tendas, árvores, sacadas de prédios - tudo é a mesma coisa. 


Ouço que talvez não seja um bom auspício, toda esta chuva, que se aproxima de longe e se vê caindo na Torre, na Rodoviária, na Catedral... Acompanho-lhe a conquista do espaço urbano, metro a metro de chão molhado percorrido por centenas de pés em havaianas previdentes.  Lembro-me das águas que lavam escadarias, de outras que fecundam campos de arrozais mundo afora, lembro-me que entramos no ano chinês do Coelho e quando olho para o céu, em busca de uma resposta, as nuvens dizem que sim e descarregam em cima de mim o meu quinhão de água. Não pode ser um mau auspício, concluo.
                            
Lá adiante, perco-me de novo nas cinzas das nuvens – a chuva parou mas a sua ameaça persiste e alguns, aqui e ali, permanecem solitários em meio à multidão, atentos às nuvens. O contraste dos vermelhos, dos amarelos e dos azuis que circulam pelo verde da grama não chama tanto a minha atenção – prendo-me às nuvens e ao seu peso, circulo por entre elas e estou tão só quanto os que se sentem sós.



Entre eles, há os que elevam suas mãos, calejadas e destruídas pela artrose que nem ainda chegou. Saúdam e erguem-se num “ergo sum” solitário silencioso antigo. Estamos todos juntos, e ainda assim pouco sabemos uns dos outros. Mas o andar lado a lado, e sem saber juntar as calosidades das nossas mãos numa roda única, torna o passo menos pesado e as nuvens menos densas. Ainda que não nos vejam, nem nos olhem, as nossas mãos estão levantadas e existem.



As nuvens prateadas acompanham o fim do dia. Mantêm o tom grave, dizem-nos da vigilância e da falta de cor que dá colorido ao outro. No seu cinza melancólico permitem a vida das cores estridentes que despertam a multidão em coro. O grito unânime acolhe generoso quem chega enquanto se despede, já saudoso de quem ainda nem foi. Muitas formas diferentes de ser gente, muitos olhares e peles de tons distintos, uns marcados por fora, outros por dentro, tantos olhos sublimados não só de esperança mas de confiança na mudança que já começou. 



Os guarda chuvas que nos isolam das nuvens garantem a privacidade do agradecimento reconhecido, que dispensa outras palavras porque não há como explicar: “Valeu, Lula” de um lado; “Bem vinda, Dilma”, de outro.


Quase anoitecendo, as aves decidem-se: melhor voar como as cores da bandeira que não desistem, e recolher os fios que se soltem, reconstruir-se em quantos ninhos se façam necessários, e quem sabe estar aqui, de novo, dentro de alguns anos, com nuvens que do céu nos orientem em direção a nós mesmos futuros.



Ana Vieira, de Brasília, 1.1.11