22/09/2010

Ócio ósseo


Talvez todas as minhas últimas questões ósseas sejam apenas um alerta da minha necessidade de ócio. Tendo a me divertir trabalhando, o que, vistas bem as coisas, não deve estar totalmente certo. Senão, não estariam estes ossos quebrados me alentando a sentar-me diante da televisão para, ociosamente, assistir algum dos excelentes filmes com que meu companheiro cinéfilo me inunda, embora ressentido de que raramente consiga eu assistir a algum deles muito além das primeiras vinhetas. Ou me levanto, ou adormeço.

O fato é que, de tanto procurarem encontrar-me razões de todos os tipos (sofismáticas inclusive) para os males que me afligem (como diria Josephine March), decidi-me eu mesma a procurá-las, por entre o conhecimento que tenho de mim mesma, que ainda errado é o que de mais longa data se conhece sobre a minha pessoa.

Pois não consigo encontrar motivo melhor que esse do ócio. Reviso com atenção cada um dos que me foram dados: ”deve ser que você precisa parar” é o de maior ibope, rivalizando com o “você faz coisas de mais, é isso” – mas fica-me um “parar o que?” pendurado na soleira dos dentes, e não consigo mesmo decidir sobre o que se acha que deva parar em mim afinal. Será essa propulsão louca de querer ser e estar o que sou? Essa dificuldade escorpiana que a cada ano mais se fortalece de não conseguir abstrair as coisas que chegaram ao fim, mas ainda é preciso carregar na mala? Será isso que querem que pare? Mas, como quem me avalia assim só levanta as sobrancelhas como se fosse pra lá de claro, como se só eu não percebesse o que tanto em mim deve parar, continuo como antes.

E assim sento-me aqui para dedicar-me ao melhor dos ócios: ler a esmo o que quer que seja, ouvir todas as conversas que queiram depositar-se em meus ouvidos, perceber alguém encantado com o poder do “hálito da música ou do sonho” de um Pessoa desassossegado, e incorporá-lo ao próprio discurso. Posso ter mil tarefas a cumprir, cartórios, contadores e receitas federais a visitar para resolver pendências antigas que se acumulam diante da minha porta, mas de repente meus ossos avisam, como se fossem encarnações de um stephen king dentro de mim, que “os monstros e os fantasmas vivem dentro de nós e de vez em quando eles ganham”.

Vive dentro de meus ossos uma voz que me alerta, e que apenas eu ouço. O que os outros pensem, o que os outros digam, é preciso que se saiba que são reflexos do movimento do coração. Doem, mas como me disseram ontem, o que mais dói são os ossos. Por isso, decidi dar-lhes ouvidos.

20/09/2010

Os sésseis

Séssil é um animal que não se movimenta por livre vontade, contrariando todas as leis que eu achei conhecer – no caso, que o que caracteriza um animal, entre outras coisas, é o movimento, que já as plantas não têm. Pois os sésseis são animais e não têm liberdade de movimentos, e assim que, na semana passada, descobri que isso existia, fiquei suspensa entre o prazer de mastigar essa palavra entre os dentes – experimente em voz alta! - e a intranquilidade que me gerou imaginar algo que, devendo caracterizar-se pelo movimento, é justamente reconhecido por não o fazer.

Repeti vezes sem conta essa palavra, e outras que foram surgindo, a partir de todos e cada um dos processos que temos para formar novas palavras: sessilmente, cor-de-séssil, sessilento, sessílimo, sessilítico, aséssil... e por aí vai. Gosto disso desde pequena, e até fui recriminada várias vezes, nos bancos escolares, por inventar respostas a partir de palavras também inventadas para perguntas que eu sinceramente poderia jurar terem sido inventadas também.

Séssil chega-nos diretamente do grego – e, efetivamente, quer dizer “movimento parado”, o que no mínimo é um paradoxo. Ou não – penso com os meus botões, depois de reparar em quem, em movimento (frenético até), permanece ainda assim parado. Talvez seja uma questão de perspectiva. Distância? Não envolvimento?

Eu não gostaria de reencarnar como um séssil. Esponjas são sésseis, e eu tinha uma tia que gostava imenso de me dar esponjas naturais no Natal – coisas estranhas e duras que à simples imersão em água quase se desmanchavam, absorvendo imensas quantidades de líquido e deixando a sua aparência dura e morta para trás. A sua absorvência, apesar disso, não me dava a impressão de vida, mas de abandono e de perda de si mesma, da sua estrutura, ainda que essa tivesse sido desagradavelmente dura. Não sei até hoje o que prefiro: se a esponja seca, dura e da cor da morte, se a esponja molhada, mole e da consistência da perda. Só tenho certeza de que não me sentiria feliz reencarnando como séssil, ou seja, como esponja.

De qualquer forma, tem sido interessante olhar para o mundo em volta em termos de sésseis e não-sésseis. Pessoas sésseis, situações sésseis, sentimentos sésseis, atitudes sésseis. Como tudo se movimenta, lá está a impressão do dinamismo da vida, das suas transformações; mas como tudo está parado, sobrevém a máscara da morte, aliás a máscara, que é sempre de morte, porque rouba a vida daquilo que é – e se movimenta em movimento.

Há um momento fugaz em que tudo o que é séssil se revela – tudo o que está parado enquanto poderia movimentar-se trai-se nos momentos em que descansa. Porque o que descansa do movimento verdadeiro, precisa descansar, e aquilo que descansa do movimento parado faz de conta que descansa, e é nesse momento que se trai, porque se perde em si mesmo à procura de um sentimento que não conhece, porque não se deu ao trabalho de sentir. Porque sentimentos são movimentos que não param, a não ser que os paremos, para que eles não se atrevam a entrar em nós e desestruturar esse movimento parado que, talvez por falta de vigilância, construímos em silêncio e solidão dentro de nós mesmos.

12/09/2010

Procura-se

Estou à procura de pessoas que respirem com o mundo. Pessoas que partam do princípio de que não há coisas estabelecidas que são por definição imutáveis, a reboque de regras inquestionáveis. Pessoas que abram os olhos e os ouvidos, e que permitam que os sons e as cores dos outros entrem sem as máscaras de todo dia, que se mesclem e se enriqueçam. Pessoas que não só se disponham a respeitar as diferenças, mas que saibam que nem sempre é fácil reconhecê-las, e se esforcem por isso em fazê-lo. Pessoas para as quais importe mais a extensão do mundo possível do que os muros e as cercas que o restrinjam e tornem a vida impossível.

Estou à procura de pessoas cujos tempos e espaços sejam mutáveis e flexíveis, que se queiram, essas pessoas, que se encontrem, movidas pela vontade de conhecer mais e melhor, e não de se segmentarem em lugares, e dias, e horas, e possibilidades pequenas, momentos do se deve e do não se deve aprender, ainda. Pessoas sem cartilha, nem dogmas, nem crenças às quais se aferrem, pessoas com vontade de questionar as próprias convicções quando chamadas a isso, e que me ajudem a lembrar-me disso, caso me esqueça, o que acontece quase sempre mais de uma vez por dia.

Pessoas que se posicionem com força e veemência quando é preciso, e que saibam exercer todas as suas funções – da pedagógica à política, que vem a ser a mesma, da culinária à astronômica, que também não anda uma longe da outra – sem serem ingênuas, mas plenas de boa vontade e de amor e respeito pelo outro, nada mais que o reflexo do espelho interno.

Pessoas que sejam o que dizem ser, e que queiram ser aquilo que dizem ser quando não estão sozinhas, que não se escondam atrás da regra, do imobilismo e de todas as desculpas que impedem que se avance, que se fale, que se aposte no presente como semente do futuro, e não como depositário do passado.

Também estou à procura de pessoas que tenham se afastado perigosamente de si mesmas, decidido aventurar-se pelos caminhos de agradar a todos, sem agradar mais a si próprias. Pessoas que tenham decidido entregar nas mãos de outros, sem se saberem irresponsáveis, os rumos de si próprias, acabando por apoiar-se naquilo que outros disseram para viver a própria vida, preocupando-se mais em julgar o outro do que em observá-lo. Pessoas que tenham decidido esterilizar-se e impermeabilizar-se à dor, à agonia e à salvação alheias e que de repente se incomodem com a própria pele e sintam dentro de cada poro a inquietação do que se quer melhor. Em momentos de vida assim, bastou-me um gesto, uma palavra, um primeiro passo que cumprisse o milagre de decidir diferente tudo ali, agora, hoje. Porque nada mais espera que abramos os olhos na lentidão do sonho do éden, porque o mundo inteiro muda porque nós mudamos, porque a mudança é a essência da vida, e urge. Ou mudamos, ou nos tornamos estátuas, e estátuas ficaremos, projeção da pessoa que fomos.

Estou impregnada dessa missão louca (e possível) de encontrar todas essas pessoas, principalmente nos dias em que o milagre da alteridade, do conhecer-me através, por causa e junto do outro, faz-me esquecer que poucas coisas valem tanto quanto buscar-me dentro e fora, que é no fundo a mesma coisa, uma sobrevivência à revelia do que os nossos olhos insistem em mascarar.

31/07/2010

Ungos dos meus dedos


Tanto quanto alguns se sentam na poltrona em pleno exercício de zapping televisivo, de vez em quando invento um zapping cerebral que associa ideias aleatórias às respostas que a internet me oferece. Ideias fracas normalmente geram pesquisas fracas também, mas às vezes dou graças a deus pelas ideias fracas.

Assim que decidi finalmente que hoje é sábado, dia de descanso como me avisa meu cunhado judeu aqui ao lado, mil ideias me apareceram, tudo aquilo em que não tive tempo de pensar ao longo da semana. Preciso aproveitar as últimas horas para fazer isso que o Shabbat manda – nada, e ainda deitar cedo pra variar também o ritmo da semana.

Mas nada, nada, nada... também não dá. Já que esta semana aliei duas das minhas preciosas horas à leitura de trabalhos escolares num salão de manicure, pus-me a olhar para as minhas mãos, convencidas que foram pela Vera-manicure-terapeuta-de-quem-rói-unhas a voltarem para casa vermelhas. Esse vermelho tem o efeito incrível de me lembrar dos meus propósitos anti-onicofágicos, agradeço-lhe por isso, mas não há como não me sentir usando as mãos de outro alguém, e pergunto-me de onde terá vindo esse hábito de pintar as unhas.

Resultado previsível: China há milhares de anos, depois Egito há muitos também, Cleopatra usava-as vermelhas e aparentemente mandava executar quem se atrevesse ao mesmo, sinal de distinção social e por aí vai. O que eu não sabia era das suculentas descobertas sonoras que eu faria assim que desse com a lista de línguas para as quais a palavra “unha” podia ser traduzida. E descubro um soturno “ungo”, um amanhecer em “azazkal”, uma brincadeira infantil em “nenig”, um susto noturno em “köröm", uma variante de tempero em “dirnaqlar”, um sussurro de amante em “küüs”. Descubro ainda um “kynsi” que soa a pergunta, um “Нокт” que não consigo fazer soar, um “指甲子”que quem me dera saber dizer. E devolvo-me em paz às “onglas”, “unglas”, “unghias”, “ongles” e “uñas”, repentinamente agradecida aos romanos invasores pelas suas invasões.


Todas as unhas do mundo flutuam agora à minha volta, e eu já posso fazer nada de olhos fechados, ouvindo-me pronunciar cada uma delas, inventando-lhes seus desertos, suas dunas, suas praças envidraçadas, seus campos a brilhar ao sol, suas praias de areias agrestes, suas ruas íngremes escondendo segredos, todas as paisagens do mundo para todas as unhas do planeta, pintadas ou por pintar. Agora, sim, fazer nada vai valer tudo.

27/07/2010

Coisas de internet

Vi-me, outro dia, em meio a uma discussão interessante sobre as virtudes e os defeitos da internet. Não abri a boca, que a discussão não era minha e eu já estava com estas linhas engatilhadas, sem poder distrair-me com o mundo lá de fora, mas fui avançando pela picada que quem conversava abriu. Lembrei-me, dessa maneira estranha que têm as coisas pensadas de se lembrarem umas das outras, que uma destas terças feiras passadas tinha sido o primeiro aniversário da morte de Mario Benedetti.

Não entendi porque raios os meus neurônios tinham fabricado essa ligação, e fiquei com essa guardada num canto da mente, lembrando-me algumas vezes dessa incógnita insistente. Como não encontrei a ponta do fio, decidi terminar o livro da Agatha Christie que comecei há dias, e finalmente chegar ao ponto em que Miss Marple, entre um tricot e outro, descobre que tudo aquilo que não fazia sentido era justamente o que dava sentido à coisa toda. Razoavelmente anestesiada pela escrita de suspense (que aliás é ótima companheira de insônias persistentes), voltou-me o Mario à mente e fui buscá-lo à estante.

A tal conversa sobre as vantagens (ou desvantagens?) da internet não tinha grande preocupação em definir coisa nenhuma, ocupada que estava em basicamente poder usufruir do direito de sentar em volta de uma mesa para conversar. O tema base era a capacidade do mundo virtual de eliminar da face da terra uma quantidade razoável de tarefas mecânicas, e com elas uma profusão de profissionais que ou se desempregaram de vez ou foram criativamente engenhosos e se inventaram noutras profissões – revisores, pastups e cia. estavam no rol dos desaparecidos. As suas vozes, ainda que imperceptíveis, foram de fato sumindo, e hoje os jornais chegam-nos sem as mãos que colavam as matérias, às quais se colavam as letrinhas minúsculas corrigindo os erros que os digitadores tinham deixado escapar e os revisores tinham apanhado antes do fim. Da mão do jornalista à do leitor, muitas outras mãos, que desapareceram e se incumbiram de outras coisas.

Sei que Benedetti em algum momento, como a quase totalidade dos escritores da sua geração e de todas as que se lhe seguiram, trabalhou como jornalista, talvez exercendo por algum tempo uma dessas profissões desaparecidas. O trabalho artesanal manual com a palavra pode ser que abrisse as portas da inspiração. Justamente por ser mecânico e por liberar o território inconsciente, muito embora qualquer manual de escrita alerte logo nas primeiras páginas que não existe tal coisa “inspiração”, “musa” e suas parentes, naquela mesma linha dos “10% de inspiração, 90% de suor”. Adélia Prado, que não tem nenhuma ligação com nada disso a não ser o fato de provavelmente, como as demais pessoas da sua geração, já ter tido a sua fase de ler Agatha Christie e ser poeta como o é Benedetti, retira do cotidiano diário (não é redundância, veja bem) a sua inspiração (é ela quem diz isso, não sou eu que nego a tal história transpirante). Dos movimentos repetidos e monótonos vêm-lhe as palavras parar às mãos, e delas desabrocham os poemas que ficaram escondidos por muitos anos entre as brumas de Divinópolis, sua cidade natal.

Adélia e Benedetti vivem dessas coisas dos seus dias. Um, com a voz uruguaia embargada nas gravações que nos legou (e que a internet, na parte vantagem, coloca à disposição), subverte a dureza das ditaduras com a suave ironia de seu espírito. Junta palavras que nos fazem apenas levantar o canto dos lábios, num esboço de sorriso cúmplice. Adélia retira os pequenos e secretos desejos da vida que parece prosaica, mas não o é. Quase podemos vê-la às margens da sua cidade, em meditação profunda sobre o sentido do seu mundo e da sua vida, numa postura tão suave de levar-se a sério mas nem tanto.

A minha cabeceira divide hoje o seu espaço entre mais um romance policial, a poesia de Benedetti, o dia a dia de Adélia, e um Hesse que insiste em me frequentar, com seus personagens atormentados pelo peso de si próprios. O que mais posso querer?

24/07/2010

Fazer aniversário

Fazer aniversário é um luxo. Uma sorte. Um enigma. Uma passagem. Eu, particularmente, gosto de contar os anos que passam, gosto do sabor que fica impregnado em cada um deles, o aroma às vezes a naftalina, como os casacos de alguns de nós que só saem do armário e visitam o mundo quando faz frio. Lamentavelmente a memória me atraiçoa e custo a lembrar quando em que ano qual a data em que aquilo se deu. Quando outros me lembram, juro que não voltarei a esquecer, mas nem sempre consigo cumprir a promessa.

Hoje, 23 de julho, faria aniversário minha filha se fosse viva. Tenho há anos guardado um poema que o português David Mourão Ferreira escreveu no dia do 18º aniversário de sua filha, que nunca chegou a nascer porque quando o fez já se tinha perdido no limbo. Às portas de entrar neste mundo, deixou-se voltar ao outro lado. David gravou esse poema em um cd que o tempo (e as crianças) se encarregou de riscar, mas o registro da sua voz grave e embargada, o sibilar da baforada de cachimbo numa das pausas entre estrofes, ficaram-me nos ouvidos. Se fecho os olhos, vejo-o, envolto nas suas nuvens azuis de tabaco, os olhos postos numa filha que nunca viu.

É um poema aberto e limpo, tristemente sereno e doce, e durante todos estes anos em que conviveu comigo ali ao lado, manteve-me a chama acesa de uma data que não sei por que deveria significar alguma coisa. Antecipo este dia de hoje, este ano de hoje, há anos sem fim, pulando-os num rosário de contas transparentes umas, opacas como corvos outras. Mas esta noite é noite de lua cheia, a lua cheia de julho, a lua cheia de julho de 2010. Sem precisar de dotes extraordinários de antevisão e premonição, sei que sabia que este dia não seria como os outros, nem esta noite, nem esta lua, nem este ano. Dentro de todas as realizações e mudanças, de todas as decisões e conquistas, de todas as saudades de tantos, persiste imóvel, atenta como uma estátua grega, a imagem da minha filha hoje com 18 anos. Durante muito tempo pensei em celebrar-lhe a vida do outro lado, e deixar de lado a que não viveu aqui – mas não é verdade que não a tenha vivido, que não esteja codo a codo, como diria um espanhol com muito mais peso do que entre dois cotovelos, entre nós, o tempo todo.

Persiste imóvel e assiste. Recolhe no espaço todos os movimentos intensos daqueles que amou e a amaram, e neste dia que é de alegria, ela ri e joga a cabeça pra trás, olhando de soslaio para a felicidade de que faz parte. O irmão que agora se gradua num lado do mundo, o outro que hoje conquista sonhos sobre rodas a milhas náuticas de distância, estão esquecidos deste dia, mas a alegria com que vibram é parente daquela que semearam junto a ela e se manteve viva durante 18 anos.

Ao contrário de David, vi e abracei a minha filha vezes sem conta. Não sei o que será pior ou melhor, que quem sabe das dores é quem as sente. A falta ou a presença escassa? O nunca ter visto ou o ir perdendo a memória do que se viu? Ter impressa na pele a marca da passagem do beijo, ou imaginá-lo suspenso no ar e agarrá-lo sempre sabendo-o ilusão? Alisar a roupa que se vestiu, ou ter as palmas das mãos livres para o tecido feito de éter? Lembrar do sapato que não se comprou, ou não ter dentro essas ínfimas lamentações que fazem da vida um purgatório?

As transformações que a chegada e a partida da minha filha permitiram não têm fim, sucedem-se através dos tempos e dos anos, e é um luxo, uma sorte, um enigma, uma passagem tê-la assim tão perto, sem tristeza nem lágrima, sem peso nem desassossego, permitindo-lhe a vida naquilo que não acaba. O tempo passa e alivia os fardos de todas as árvores que somos. Dos nossos ramos caem folhas ano a ano, e só a nossa procura de sol impede que percebamos que cada folha que nos cai nos devolve à terra imortal.

Imagem: a inspiração, David Mourão Ferreira

20/07/2010

Desabitações


Sabe aquele momento em que percebemos que deixamos de prestar atenção a coisas às quais nos dedicamos por longo tempo? E é um susto quando descobrimos que elas nos desabitaram? Normalmente de repente. De repente, vivemos sem elas, quase sem nos darmos conta. Mais do que isso: sobre-vivemos sem elas, o que no mínimo é mais do que apenas viver, e isso considerando que viver seja algo imensamente imenso.
Pois ontem à tardinha, de repente que é como tem de ser, descobri que me desabitei de ouvir algumas coisas. Sentada dentro do carro, parada esperando aquele bendito semáforo novo da General Telles liberar o caminho, fui atingida pelas vozes gravadas num cd que não ouvia há tempo. Não foram as vozes que me desabitaram, nem eu me senti desabitada por elas, mas antes o tempo que se desabitou entre elas serem gravadas e eu deste agora, aqui, ontem, ouvindo-as em estado de espera, sem perceber como é que pode que tanto nos aconteça sem darmos por isso, ou dando por isso um pouco menos do que é a verdade.
Todas as vozes desse cd entoam poemas - são vozes e poemas, feliz duplicação. Sonhos, medos, esperanças, desejos e destino nas cordas vocais que estes poemas escolheram para se tornarem matéria audível, para saírem do éter em que estavam. Podemos enganar-nos, pensar que as vozes os escolheram. Não: as vozes foram chamadas, naquele movimento que perfaz a palavra “vocare”, como os latinos gostavam de “chamar”, antes de se tornar esta nossa “voz”.
Pois assim que percebi minha desabitação dessas vozes, elas voltaram a preencher-me, arrastando consigo todos os dias que separam esse ontem que é hoje daquilo que era quando foram gravadas. Tal é a estranha dimensão do tempo.

15/07/2010

Revisão

Estou ocupada há dias, na revisão das páginas que escrevi faz hoje exatos doze meses. Sem a intenção ou o feitio de se constituírem diário, estas quase cem crônicas, que finalmente preparo para a edição em papel, reinventam cada um desses meses que viveram. O fato de tê-las compartilhado através deste alobairro transfigura-as, e é por isso que o texto que faz as vezes de introdução ao livro usa a palavra “alteridade”. Além de usá-la, torna-a palpável ao longo dos parágrafos, aproveitando a intensa troca de emails a seu respeito, palavras de alerta, de ânimo, de correção e de provocação.

Os outros são-me um tema caro, os outros dão-me a medida dos pés, os outros elaboram meus passos e meus horizontes. Mesmo quando os desconsidero, ou quando os considero maiores do que são, converto-os em algo além de si próprios, subvertendo-lhes o tamanho concreto. Não me importo de ver o que não existe – dentro do papel, se me apetece, existe.

Uma a uma, cada crônica evoca um momento, uma pessoa, uma situação – e aquilo que senti ao escrever retorna; o que já estava engavetado, apagado, remediado, aceite, revive, com a mesma carga de dor e amor do seu próprio dia. Pergunto-me (quem ao escrever não o fará?): o que isso que escrevo fará brotar em quem se aventurar leitor?

Página a página, preciso resistir à vontade de agarrar o telefone e recompor o presente, transvesti-lo com gestos do passado, como se o que foi feito pudesse ser apagado, como se não contasse, como se pudesse hoje alterar o que foi gravado a fogo meses atrás.

Não posso: a gráfica está à espera desta revisão. Pode ser que alguém espere meu telefonema do outro lado da linha, mas também pode ser que não, e hoje eu sei o quanto a minha alma não comporta mais nenhuma decepção. Hoje, não. Hoje meu coração feito de folhas não aceita desilusões. Prefere manter-se iludido, rodeado dos feixes de luzes que criou porque era livre para isso, num milagre que atravessa as primaveras e os outonos e vem estacionar-se ao meu lado, dando-me cobertura para o rigor dos dias que se aproximam.

25/06/2010

Aos homens que se escrevem com maiúscula

Saramago não me dá trégua: passei a semana a lê-lo, creio até que se me cola aos dedos, seres autônomos que agora querem brincar de evitar as pontuações padrão. Resisto-lhe um pouco, agarro-me às minhas próprias sombras porque os dias e a escuridão também não me dão trégua, e logo ele volta, com mais um pequeno segredo a que eu não tinha prestado atenção na primeira visita. Com isso, continuo rodeada dos seus livros, aquilo que lhe sobrevive na ausência, como ele quis. Lamento os que não comprei em inúmeras ocasiões e fico feliz porque a ele sim, ao fim e ao cabo, pedi um autógrafo. Olho-o longamente, a esse desenho que forma o seu nome, e dá-me assim uma certeza de coisa toda inteira na página em branco deste livro. Simples e austero, como seu autor. A tinta forte, sem espaço aberto a dúvidas. E embaixo o ano, porque o tempo é o amigo das coisas que se querem lembradas.


Talvez o que não me deixe afastar-me da sua memória seja o tê-lo descoberto, ao longo desta semana, no tamanho da sua integridade pura, da sua absoluta desesperança sem fé em nada a não ser na força do trabalho das suas próprias mãos. Reconheço-lhe traços que se vislumbram na sua carta natal, mas imagino que ele, lá de onde está, se ria ao ver-me por dentro a pensar semelhante disparate. Não creio que ele olhasse para as estrelas dessa maneira. E ele olhava-as. Longamente.


E provavelmente não exista nada de riso em seu rosto ao ver-me pensar ou fazer seja o que for, porque se tudo tiver dado certo e ele tiver ido para onde gostaria de ter ido, está neste momento disperso no éter do não ser, do não tempo, incorporado à substância vital e criadora do universo, e mais nada. Tanto se lhe dará o que eu ache.


Há uma espécie de verdade com maiúscula que me atravessa quando o leio. Uma espécie de grandiosidade do pequeno. Quanto menor ele se apresenta, maior e mais intenso me atinge.


Tenho-o diante de mim em muitas fotografias. Em gestos que se fizeram ternos com o passar dos anos e o encontrar do outro. Mudou a si próprio sem recriminar o passado nem angustiar o futuro – um dia atrás do outro e de cada vez, na sabedoria camponesa sem ambições dos seus pais e avós. O tamanho da vida de um homem que se escreveu a si próprio com maiúscula.


Releio mais uma vez as anotações que fiz sobre a sua vida, interrogo-me sobre algumas das suas ações, quem dera pudera perguntar-lhe de onde lhe veio tudo isso, se da certeza do caminho, se da teimosa decisão de ser austero, grave e incisivo na sua observação da realidade, dessa matéria por trás das palavras que engulo como alimento.

Sinto-o ao meu lado, na pretensão que muitos devem a esta hora reconhecer em si, e acho realmente uma sorte que uns permaneçamos vivos enquanto outros se vão. À maneira de Cícero, que dizia que a memória preservada em veneração e ternura naqueles que sobrevivem faz com que quem partiu seja feliz na morte e quem ficou honrado na vida.


O sentimento ou a necessidade da honra traz-me os que partiram nos últimos dias, e eu conheço. Apresso-me a percebê-los de novo, procurando-os nesse estado sem estado. A memória preservada é tarefa diária, assim como é diário o esquecimento do que importa e é leve o bater das asas dos que partem de nós.