20/07/2010

Desabitações


Sabe aquele momento em que percebemos que deixamos de prestar atenção a coisas às quais nos dedicamos por longo tempo? E é um susto quando descobrimos que elas nos desabitaram? Normalmente de repente. De repente, vivemos sem elas, quase sem nos darmos conta. Mais do que isso: sobre-vivemos sem elas, o que no mínimo é mais do que apenas viver, e isso considerando que viver seja algo imensamente imenso.
Pois ontem à tardinha, de repente que é como tem de ser, descobri que me desabitei de ouvir algumas coisas. Sentada dentro do carro, parada esperando aquele bendito semáforo novo da General Telles liberar o caminho, fui atingida pelas vozes gravadas num cd que não ouvia há tempo. Não foram as vozes que me desabitaram, nem eu me senti desabitada por elas, mas antes o tempo que se desabitou entre elas serem gravadas e eu deste agora, aqui, ontem, ouvindo-as em estado de espera, sem perceber como é que pode que tanto nos aconteça sem darmos por isso, ou dando por isso um pouco menos do que é a verdade.
Todas as vozes desse cd entoam poemas - são vozes e poemas, feliz duplicação. Sonhos, medos, esperanças, desejos e destino nas cordas vocais que estes poemas escolheram para se tornarem matéria audível, para saírem do éter em que estavam. Podemos enganar-nos, pensar que as vozes os escolheram. Não: as vozes foram chamadas, naquele movimento que perfaz a palavra “vocare”, como os latinos gostavam de “chamar”, antes de se tornar esta nossa “voz”.
Pois assim que percebi minha desabitação dessas vozes, elas voltaram a preencher-me, arrastando consigo todos os dias que separam esse ontem que é hoje daquilo que era quando foram gravadas. Tal é a estranha dimensão do tempo.

15/07/2010

Revisão

Estou ocupada há dias, na revisão das páginas que escrevi faz hoje exatos doze meses. Sem a intenção ou o feitio de se constituírem diário, estas quase cem crônicas, que finalmente preparo para a edição em papel, reinventam cada um desses meses que viveram. O fato de tê-las compartilhado através deste alobairro transfigura-as, e é por isso que o texto que faz as vezes de introdução ao livro usa a palavra “alteridade”. Além de usá-la, torna-a palpável ao longo dos parágrafos, aproveitando a intensa troca de emails a seu respeito, palavras de alerta, de ânimo, de correção e de provocação.

Os outros são-me um tema caro, os outros dão-me a medida dos pés, os outros elaboram meus passos e meus horizontes. Mesmo quando os desconsidero, ou quando os considero maiores do que são, converto-os em algo além de si próprios, subvertendo-lhes o tamanho concreto. Não me importo de ver o que não existe – dentro do papel, se me apetece, existe.

Uma a uma, cada crônica evoca um momento, uma pessoa, uma situação – e aquilo que senti ao escrever retorna; o que já estava engavetado, apagado, remediado, aceite, revive, com a mesma carga de dor e amor do seu próprio dia. Pergunto-me (quem ao escrever não o fará?): o que isso que escrevo fará brotar em quem se aventurar leitor?

Página a página, preciso resistir à vontade de agarrar o telefone e recompor o presente, transvesti-lo com gestos do passado, como se o que foi feito pudesse ser apagado, como se não contasse, como se pudesse hoje alterar o que foi gravado a fogo meses atrás.

Não posso: a gráfica está à espera desta revisão. Pode ser que alguém espere meu telefonema do outro lado da linha, mas também pode ser que não, e hoje eu sei o quanto a minha alma não comporta mais nenhuma decepção. Hoje, não. Hoje meu coração feito de folhas não aceita desilusões. Prefere manter-se iludido, rodeado dos feixes de luzes que criou porque era livre para isso, num milagre que atravessa as primaveras e os outonos e vem estacionar-se ao meu lado, dando-me cobertura para o rigor dos dias que se aproximam.

25/06/2010

Aos homens que se escrevem com maiúscula

Saramago não me dá trégua: passei a semana a lê-lo, creio até que se me cola aos dedos, seres autônomos que agora querem brincar de evitar as pontuações padrão. Resisto-lhe um pouco, agarro-me às minhas próprias sombras porque os dias e a escuridão também não me dão trégua, e logo ele volta, com mais um pequeno segredo a que eu não tinha prestado atenção na primeira visita. Com isso, continuo rodeada dos seus livros, aquilo que lhe sobrevive na ausência, como ele quis. Lamento os que não comprei em inúmeras ocasiões e fico feliz porque a ele sim, ao fim e ao cabo, pedi um autógrafo. Olho-o longamente, a esse desenho que forma o seu nome, e dá-me assim uma certeza de coisa toda inteira na página em branco deste livro. Simples e austero, como seu autor. A tinta forte, sem espaço aberto a dúvidas. E embaixo o ano, porque o tempo é o amigo das coisas que se querem lembradas.


Talvez o que não me deixe afastar-me da sua memória seja o tê-lo descoberto, ao longo desta semana, no tamanho da sua integridade pura, da sua absoluta desesperança sem fé em nada a não ser na força do trabalho das suas próprias mãos. Reconheço-lhe traços que se vislumbram na sua carta natal, mas imagino que ele, lá de onde está, se ria ao ver-me por dentro a pensar semelhante disparate. Não creio que ele olhasse para as estrelas dessa maneira. E ele olhava-as. Longamente.


E provavelmente não exista nada de riso em seu rosto ao ver-me pensar ou fazer seja o que for, porque se tudo tiver dado certo e ele tiver ido para onde gostaria de ter ido, está neste momento disperso no éter do não ser, do não tempo, incorporado à substância vital e criadora do universo, e mais nada. Tanto se lhe dará o que eu ache.


Há uma espécie de verdade com maiúscula que me atravessa quando o leio. Uma espécie de grandiosidade do pequeno. Quanto menor ele se apresenta, maior e mais intenso me atinge.


Tenho-o diante de mim em muitas fotografias. Em gestos que se fizeram ternos com o passar dos anos e o encontrar do outro. Mudou a si próprio sem recriminar o passado nem angustiar o futuro – um dia atrás do outro e de cada vez, na sabedoria camponesa sem ambições dos seus pais e avós. O tamanho da vida de um homem que se escreveu a si próprio com maiúscula.


Releio mais uma vez as anotações que fiz sobre a sua vida, interrogo-me sobre algumas das suas ações, quem dera pudera perguntar-lhe de onde lhe veio tudo isso, se da certeza do caminho, se da teimosa decisão de ser austero, grave e incisivo na sua observação da realidade, dessa matéria por trás das palavras que engulo como alimento.

Sinto-o ao meu lado, na pretensão que muitos devem a esta hora reconhecer em si, e acho realmente uma sorte que uns permaneçamos vivos enquanto outros se vão. À maneira de Cícero, que dizia que a memória preservada em veneração e ternura naqueles que sobrevivem faz com que quem partiu seja feliz na morte e quem ficou honrado na vida.


O sentimento ou a necessidade da honra traz-me os que partiram nos últimos dias, e eu conheço. Apresso-me a percebê-los de novo, procurando-os nesse estado sem estado. A memória preservada é tarefa diária, assim como é diário o esquecimento do que importa e é leve o bater das asas dos que partem de nós.

16/06/2010

Digressões à parte



Tenho um aluno (vários, até, mas é este um que me vem à mente agora) cujo pensamento é o que eu chamo de digressivo. Infelizmente tendo de preparar-se para exames que querem perceber até onde o pensamento lógico e encadeado vai, precisa de bastante paciência para fazer frente à tarefa. Mas, justamente por ser digressivo, avança sem dificuldades. Só leva mais tempo. E algumas coisas precisam e melhoram com o tempo – como alguns vinhos, por exemplo.

A digressão, bem diz a própria palavra, leva-nos a passeio. A dissertação demanda conhecimento de causa, provas cabais de que se entende, através de exemplos e de experiências. É coisa séria, enquanto que a digressão é um tanto à toa, como sorvete num dia de inverno, só porque deu vontade.

O pensamento digressivo, útil até dizer chega ao fazer literário, é um empecilho digno de zerar nota em qualquer vestibular que peça uma dissertação ao proponente a aluno universitário. A digressão acompanha muitas das melhores peças literárias que andam por aí há muitos séculos, enquanto que a coesão lógica solicita tudo ao raciocínio e muito pouco à arte. Ou produz jóias raras, como muitos sermões de Vieira, mestre em convencer pelo poder da lógica em perfeita cadeia. Mas isso é para criaturas iluminadas como o padre barroco, e não para os comuns dos mortais.

O que é uma pena, acho, rodeada que estou de seres que se nutririam mais das digressões da vida do que de seus encadeamentos racionais. Uns, porque impera-lhes a lógica, e poderiam divertir-se com as cores e os sons da arte que ainda não distinguiram em si, ainda não deu tempo, quase que acabaram de renascer para o encantamento da Palavra. Outros, porque o aperto do mundo lá adiante, o abismo embaixo dos pés que querem mas não conseguem atravessar a  voo, o desespero de ir e querer contra o ir e o não querer - poderia aliviar-se numa digressãozinha que tirasse o peso de cima dos ombros e o fizesse levitar como uma bolha de sabão.

Com o tempo, as laudas, as páginas, o recebimento por caracter-sem-contar-espaços-que-pena familiarizei-me com a escrita e hoje tanto enveredo pelos campos verdes da digressão quanto pelos céus luminosos da argumentação. Gosto e me divirto com ambos, é uma sorte que não seja sempre tudo a mesma coisa. Mas quando me imagino às portas do futuro de antes, e vejo passar diante de mim de novo todas as cores de todos os países e pessoas do mundo, não sinto nenhuma vontade de ouvir outra vez aqueles que me diziam que era preciso ser lógica, e precisa, e assertiva, e cheia de bom senso.

Haveria de preferir, como de fato preferi, enveredar por todas as figuras de linguagem, torná-las meus vícios, desentocá-las a todas das profundezas dos seus refúgios, encontrá-las no escoramento dos poetas que mais amo. Dissertações, naquele tempo, imagino que me colocassem frente a frente com o pouco que conseguia ver através do muro que me separava do que viria a ser, e o sentimento que tudo isso me trazia de frustração e profunda incompreensão.

Espero poder ajudar este meu aluno (e os demais, que se lhe colam na minha lembrança) a não se deixar invadir pela lógica mundana a ponto de perder a sua capacidade de digressão; ajudá-lo a alinhavar-se racional e sobriamente, conseguindo divertir-se com isso, e sabendo que tudo é sempre muito mais do que parece e nada pode ser jogado fora. Se com isso ele conseguir entrar na faculdade que tanto deseja e para a qual não mede esforços, terá sido um prazer e uma alegria somados.

15/06/2010

A vértebra

Creio ter conseguido, finalmente, delimitar o espaço exato do nascimento de uma crônica. Entre a 3ª e a 5ª vértebras torácicas, o que não é assim um ponto realmente exato mas assim é a vida, nem tudo o que parece ser o é de fato e é bom que nos acostumemos sem demora a isso. Mas de qualquer forma um espaço feito de incomum amálgama de agonia e êxtase. Uma necessidade imperiosa dentro de um recipiente feito de um tipo de vontade que se dissolve violenta em si mesma.

A dúvida entre a vértebra exata está na posição que o corpo assume ao escrever, e não nas palavras em si. Depende muito mais do lugar onde se escolhe escrever, que por sua vez está muito mais ligado àquilo que dentro decidiu dizer. Se de lado ou se sentada, a vértebra em questão altera a sua posição em relação ao eixo que considero, que é o da minha percepção de onde estão céu e terra. Dependendo, portanto, desse eixo, muda a sensação da vértebra por onde se escapa, às vezes num suspiro, a crônica.

Não importa: perceber nesta manhã que é de uma vértebra que as crônicas se sopram de dentro para fora foi deveras surpreendente. As crônicas desvanecem-se no ar, dissolvem-se num átimo porque é da sua natureza. Iluminam por um segundo os milagres pequenos do dia a dia e infiltram-se no nosso cotidiano coração sem que depois nos lembremos disso. Desaparecem em meio aos nossos ossos e quase nos esquecemos de que nos existem. Se não me apresso e agarro esta que me sai agora, fica-se perdida para sempre.

Por mais que tente recuperar aquelas duas palavras que de repente davam início a um turbilhão de pensamentos em absoluta desconexão entre si, não consigo, frustro-me, irrito-me e digo a mim mesma que a idade está chegando e eu perdendo a memória.
Mas não é nada disso. É claro que a idade está chegando, seja ela qual for, mas a memória está onde sempre esteve, apenas menos interessada em guardar números e endereços. O problema é da natureza da crônica e da minha incapacidade de lhe localizar o ponto de saída de mim e entrada no mundo.

Mas agora esse é um problema resolvido, e assim que acordar de novo a meio da noite, com as ideias preciosamente alinhavadas dentro de mim, basta-me ajeitar a vértebra no lugar e deixá-la recolhida, em silêncio e penumbra como se gostam os partos, como uma asa ainda sem despregar, guardando os segredos dos voos sem queda das palavras. E, ao acordar de fato, depois de ter voltado a dormir, lembrar-me de descolar do meu corpo a minha vértebr-asa com cuidado, já com o papel e o lápis na mão, chamando-me de volta à vida com um sorriso de triunfo e conseguimento.

14/06/2010

Das feridas que não cicatrizam



Recebi hoje uma mensagem de uma amiga de um tempo longe e de um lugar também longe, a que não respondi. Quer saber de mim, a Helena, há anos que não sabemos nada uma da outra, e ela me conta que a última vez que me rastreou pelos amigos do passado estava eu em meio à dor de assistir à morte de um filho. Eu não sei como consigo dormir sem lhe responder, sem lhe dizer que ela tem razão quando com seu email elimina o espaço entre o dia em que enterrei a minha filha e o dia de hoje, tantos anos depois. Mas não consigo dizer nada, a lembrança mergulhou-me num silêncio inquebrantável. Vou dormir com a resposta pendurada na soleira que se levantou entre o dia de hoje e o dia de amanhã.
A resposta é feita da aguda certeza de existirem feridas que não fecham nem cicatrizam. Parecem fazê-lo, acomodam-se serenas à nossa volta, enganam-nos na sua quase invisibilidade, fugindo aos nossos olhos e às nossas mãos. Protegem-se do mundo para que sobrevivamos, e criam uma pele, que quase nos parece verdadeira proteção, mas é feita só de brumas.
De tempos em tempos, essas feridas sangram. Doem como se fossem novas, talvez até mais, porque o tempo que passa se lhes junta a cada ano. Vivem depositadas nas dobras mais profundas dos nossos desertos, rasgam-se com facilidade se atingidas. Reaparecem à superfície, reacendendo sem piedade as antigas dúvidas, as mesmas culpas, a falta de ar, a inspiração que queima o pulmão como ferro ardente.
Fazem-se inexistentes aos olhos alheios, porque sabem que devem sê-lo, porque é preciso que não sejam presentes, para que os outros sobrevivam à nossa dor. Dor alheia aflige porque não se lhe conhece tamanho nem fim. Dói mais a quem não a sente na pele, porque quem a sofre nasce e se faz para tê-la dormindo ao seu lado sempre.
Por isso essas dores confundem. Porque não há como falar delas, às vezes sequer olhá-las. O máximo que se consegue é sussurrar-lhes que sosseguem, que toda noite chega ao fim e todo horizonte amanhece, escondendo a escuridão da noite que se seguirá.
Talvez pudessem ser todas elas óbvias e evidentes, as dores, se a vida lhes garantisse a visibilidade do que é considerado e respeitado. Se em noites longas como esta, em que o sol demora demais e o adjetivo tenebroso vem a calhar, houvesse tempo suficiente para que todos os fantasmas passeassem com tempo e espaço pela nossa porta. Se houvesse uma voz que soubesse e nos fizesse saber que sabe.

13/06/2010

Cherovias e alfarrobas

Com a desculpa de terem germinado as sementes de cherovia que plantei na horta há várias semanas, decidi entrar na internet à procura das suas qualidades nutricionais, apesar da pia de louça e da roupa para guardar, do corredor com as caixas que eu ia arrumar agora de manhã, a confusão de cobertores pela sala pós-noite de filmes, o almoço que em algum momento será necessário comer.

Mas meu motivo é nobre: cherovias são plantas muito nutritivas, e eu preciso de argumentos que convençam a minha família das suas virtudes, nas próximas sessões de qualquer-coisa-com-cherovia-para-comer. A minha avó deve estar feliz, lá onde estiver, vendo-me não só a querer comer cherovias, como ainda a plantá-las com bastante decisão e persistência. Nada no passado preveria semelhante futuro.

Encontrei muitas referências à tal planta – muitas fotos, todas logo dizendo, com a força que tem uma imagem, o quanto uma cherovia é uma perfeita cenoura (só que um pouco grande, talvez) mas da cor do nabo; o cheiro parece-se com o do anis, mas só de leve, e disso eu lembro bem (a foto tem seus limites), porque enjoava só de senti-la cozinhando lá longe na cozinha. Assim como me lembro do seu gosto de cenoura velha: dois detalhes que omitirei à minha família quando se der a apresentação. O que vai demorar, porque acabo de descobrir que demoram a crescer e a poder ser colhidas. Demorar significa, aqui, meses. Muitos. E talvez não as tenha plantado na melhor época do ano. Enfim, logo veremos.

A sua consistência farinhenta semelhante à da batata deve ter contribuído para o seu incrível consumo pela Europa. Foi base da alimentação da Ibéria durante séculos, e hoje faz parte daquelas características que os movimentos de valorização do particular regional desejam celebrar – já ouviram falar do Festival da Cherovia da Covilhã?! Movimentou na sua 5ª edição uma cidade inteira, com festividades que se estenderam por 4 dias, tudo em torno do um tanto desconhecido porém decantado tubérculo.

Com a chegada das batatas, as cherovias, ou xerovias, ou pastinacas (tudo nome aceitável) perderam a sua importância. Os ingleses vegan comem-nas aos quilos, dando-lhes o nome de parnsip. Graças a eles, descubro que têm um valor nutricional superior ao das cenouras, e encontro muitas e muitas receitas preparadas com o tubérculo, todas até parecendo interessantes. Acabei de abrir uma subpasta na pasta “Receitas” com todas elas, à espera do dia da colheita!

Entusiasmada com esse reviver das antigas tradições, lembro-me das alfarrobas e vou à procura de mais informações – o tanque, a louça, o almoço não se incomodam de esperar mais um pouco. A farinha de alfarroba é competente substituta do cacau; resulta da moagem das sementes que nascem nas vagens e a minha avó também a usava, porque era muito, mas muito mesmo, mais barato fazer um bolo de chocolate com alfarroba do que um bolo de chocolate com cacau. Há campos e campos de alfarrobeiras por todo o Algarve, em Portugal, e era uma diversão voltar de lá com o carro atulhado de vagens escuras e duras. E eu gostava de ficar inventando versos que tivessem essa palavra encantada (alfarroba) e outras que eram as minhas preferidas (como amplidão... lá tem palavra maior?!).

A alfarroba é na verdade bastante diferente do cacau - não tem gordura, nem glúten, nem cafeína, nem nenhum outro alcalóide, sendo portanto a planta mais-que-imperfeita para quem queira passagem para Pasárgada. Ainda assim, parece mesmo chocolate.

Mas o melhor estava por vir. Alfarroba vem do árabe al-kharub, e o que eu mais gosto é dessa vogal aspirada com cheiro de deserto. Não consigo entender porque se transformou nesse nosso “f” que a nada aspira. Dela deriva a palavra “quilate” – o leve peso de uma das suas sementes, usado pelos árabes para vender e comprar diamantes e rubis (peso, e não pureza, como indicam os quilates do ouro, o que não vem agora ao caso).

Poucas gramas de algo que se torna muito valioso: 20 sementes de alfarroba são a mesma coisa que quatro gramas de diamante. Uma parte ínfima de matéria valiosa, minúsculos cristais como os rebentos da cherovia, que agora iluminam o meu dia da cor do som aspirado das palavras árabes. Agora sim, o tanque, a louça, o almoço, os cobertores custam menos. Meu dia, que pesava poucas gramas, pesa agora muitos quilates!

16/05/2010

Viagem de ônibus pelo Rio de Janeiro

Recebi um email hoje de manhã que me perguntava “Ouve lá... o que achas mais inteligente, o livro ou a sabedoria?”. Diverti-me um bom bocado (estou divertida até agora, aquela espécie de diversão abençoada), imensamente recompensada pelos encontros linguísticos que permeiam a vida. Repararam? O “ouve lá” é obviamente lusitano, induz-me a ouvir atrás dele o “psiu...” lisboeta com que tantas vezes um amigo comum da mesma pessoa que me escreve me chamou quando podíamos nos ver ao vivo. Já a pergunta, que por acaso sei de onde vem, põe-me o Rio de Janeiro diante dos olhos, e não qualquer Rio, mas o que me acolheu quando pus os pés no Brasil. Duas cidades lado a lado, com suas palavras, acentos, curvas e pessoas. E já que hoje é domingo, às vezes dia de ficar aqui observando sem pressa os próprios pensamentos, eu vou responder com gosto à pergunta. Ainda por cima, acho que o tema combina mesmo com o domingo.

É de José Datrino, que nasceu em 1917 em Cafelândia e aprendeu em criança a amansar burros, que o email simpático da Nita, uma portuguesa que vive em Famalicão e eu só conheço virtualmente, me fala. A Nita é poeta, e leitora de poesia. De vez em quando trocamos poemas. Às vezes ela manda-me coisas que descobre do Brasil, para ver se eu conheço e se sei mais do que ela descobriu. Vamos construindo, Nita e eu, uma relação baseada no crescimento mútuo – assim de longe, eu digo-lhe o que acho de seus poemas, ela diz-me o que pensa dos meus. Há dias em que põe o dedo na ferida, e eu olho para o que ela escreve desacreditando que ela tenha me dito o que me disse, será que não vê que assim me faz sofrer? Sentir-me idiota? Querer desistir de escrever? Leitora crítica, sem dó de mim, esquarteja-me os versos para me fazer ver o quanto tantas vezes são pueris, óbvios, presos à abstração que não quer afundar os pés na concretude das coisas. Algo da poesia de Nita é concreto e duro por demais, faz-me lembrar às vezes uma Orides Fontela nos idos da infância – e ela não deve gostar também quando lhe digo isso, com provas circunstanciais ainda por cima. Mas é por isso que nossa correspondência cresce, porque é uma sorte termo-nos uma à outra assim, leitoras em construção de uma amizade que impede que coisas maiores nos magoem com mais força; encontro na Nita o espaço de exposição segura da minha alma., e cuido para que a dela não fique desamparada. Mesmo quando não me diz nada, eu sei que algo prepara, porque nunca a Nita me deixará sem resposta, perdida no universo da indiferença que me abate. A Nita pode ser cruel, mas nunca infiel. Quando demora, é porque está a pensar.

Voltando ao José Datrino. É provável que qualquer um saiba sem saber que saiba de quem se trata. Digo a Nita que ela precisa ouvir a Marisa Monte cantando a pergunta que ela me fez, e bem rapidamente estamos as duas com a tela do youtube aberta, e decidimos contar “um, dois, três e... já!” para entrarmos juntas na viagem de ônibus entre o cemitério do Caju e a rodoviária NovoRio. Consigo ver ao longe as lágrimas que se formam nos cantos dos olhos de Nita ao passar pelas pilastras que seguram o viaduto graças às palavras que  as colorem e resignificam, quando o movimento que a câmera faz lhe descobre as flores distribuídas, o amor em ação pelas ruas da capital carioca. Conheço a canção de todos os cantos, porque gosto dela e de ouvi-la, mas nunca antes lhe prestei uma atenção desta natureza, com uma companhia ao longe que sabe que eu vejo e sinto os mesmos caminhos que seus olhos e coração veem e sentem.

É claro que a pergunta que ela me fez foi apenas um convite a estarmos juntas, um pretexto para reacender o diálogo, porque às vezes são precisos pretextos para reencontrar coisas perdidas que não queríamos ter perdido, pessoas que correm o risco de se esfumaçar no tempo se não inventamos as perguntas que as concretizam novamente à nossa volta. É claro que ela já tinha encontrado e sabia quem era Gentileza, o profeta que nasceu José Datrino, na Wikipédia, no youtube, no cifras.com e em mil outros lugares que oferecem o que quisermos se soubermos procurar. Faltava-lhe encontrar o nosso espaço comum, a nossa amizade feita carne, sangue, ouvido, boca, a alegria de poder viver com o outro o que lhe nasceu de repente numa manhã. O meu domingo, deste lado do atlântico, com sol e silêncio ao redor, no meio de uma trégua decidida entre as dúvidas da semana que se inicia, ganhou firmeza e verdade, ausente da solidão que ataca e desconstrói as nossas melhores disposições de gentileza. Como já dizia o profeta: “Amor, palavra que liberta”.

Que profeta? Este!

25/04/2010

O sonho que, unido, jamais será vencido


Alfacar é uma pequena vila perto de Granada, na Espanha. Pouco mais de 4000 habitantes, casas antigas cheias das sombras e do sol andaluz, rodeada de enebros, alcornoques e madroños – árvores com sotaque castelhano em terras que já foram mouras, as últimas da península a capitular à reconquista católica. Seus campos testemunharam os últimos passos de Federico García Lorca e daqueles que caminhavam com ele. Todos fuzilados pela falange franquista no caminho que leva de Alfacar a Viznar. No fim de 2009, um juiz espanhol, de sobrenome Garzón, abriu o processo de exumação da vala comum em que se supôs durante anos estivessem seus restos mortais. Não se encontraram, e persistiu a sensação de que a família já o teria feito, e Lorca estaria, apesar de tudo, enterrado em Granada.
Há mais de uma coincidência entre aquele dia em que soaram vozes de morte perto do Guadalquivir e o dia de hoje. 1936 foi o último ano de Lorca e hoje comemoram-se 36 anos da Revolução Portuguesa. Ele, vitima da ditadura franquista; ela, rompendo as correntes da ditadura salazarista que perdurou por longos 41 anos no país vizinho. Segunda coincidência: ontem, em Madrid, grandes manifestações trouxeram às ruas a mesma Espanha dividida da década de 70 - a Falange de um lado, os movimentos populares de outro. O motivo tem raízes fundas e profundas, raízes feridas e mal cicatrizadas, semeadas no coração da Guerra Civil e do governo de Francisco Franco. O mesmo juiz Garzón é o motivo, e o seu (mais uma vez) movimento de iluminar e tentar redimir o passado, exumando campas para encontrar os desaparecidos políticos. Responde neste momento a um processo por prevaricação enquanto funcionário público que contraria os interesses do estado, por tentar levantar informações e dados sobre casos anistiados. Há mais manifestações que o apoiam por toda a Europa, mas esta, de ontem, sacudiu com ardor as principais vias da capital espanhola.
Hoje, dia 25 de abril, toca o telefone às 6 da manhã. Já o dia vai adiantado do outro lado do Atlântico, e eu sei que ouvirei a senha de todos os anos: “25 de abril...”, à qual responderei sem demora, como é costume, “Sempre!”. “O povo é quem mais ordena” vem logo a seguir, num Ary dos Santos imortalizado na letra da música que Lisboa entoará logo mais, agrupada na manifestação que se preparou e que descerá, como sempre, pelas avenidas que imortalizam a Liberdade. Há 36 anos que o país entra em festa neste dia, ainda que haja quem não goste, ainda que haja quem se ressinta, ainda que haja quem quisesse tudo muito diferente – o dia da Liberdade resiste teimoso e ganha todas as ruas e vielas, desdobra-se numa profusão de cravos vermelhos em todas as lapelas.
Este “sempre” deste ano tem, porém, um gosto diferente. Há um Garzón a quem ser solidário, e há a escalada conservadora fazendo vítimas por todo o continente. O “sempre” de outros anos respondia pela celebração, pela gratidão de se poder gritar “a terra a quem a trabalha”, “o povo unido jamais será vencido” e por podermos olhar nos olhos de outros que também se lembram de que a utopia é possível e viveu entre nós. Mas este ano esse “sempre” volta a assumir o tom do “no pasarán” de Dolores Ibarruri, um “no pasarán” que ecoou e se agitou em centenas de faixas pelas ruas de Madrid ontem, 24 de abril de 2010, quantos anos depois da Pasionaria o ter gritado pela primeira vez. “Sempre”, hoje, porque há quem queira esquecer com mais força do que queria esquecer-se antes, porque há quem queira que não nos lembremos com mais força do que queria antes, e porque há quem sucumba ao medo de dizer aquilo que precisa ser dito, muito mais do que precisava ser dito antes, ainda que pareça, ainda que seja e ainda que se repita impossível. Por isso, antes de fechar os olhos para preparar o dia de amanhã - 25 de Abril: sempre.