31/12/2009

Solidus nescit ignavus metus

Uma das imensas vantagens de ir à manicure de vez em quando (ou ao dentista, ou ao pediatra, ou ao urologista, porque para o que me move aqui vai dar ao mesmo) é conseguir ler a revista Caras, tanto faz de qual ano ou mês. Basicamente graças à coluna de Deonísio da Silva, professor de não sei bem qual das universidades públicas do Rio de Janeiro, contemplado com o prêmio Casa de las Américas há alguns anos atrás. O resto da revista realmente faça-me o favor, mas a coluna de etimologia entretem-me, enquanto tento exemplarmente acabar com o terrível vício da onicofagia (aprendi com o Deonísio esse palavrão que impressiona bastante mais do que basicamente se saber que roem-se unhas...).

Diverti-me esta manhã tentando umas traduções para o latim de frases que me vieram à cabeça assim que acordei. Na verdade não foram frases, confesso, mas impressões fortes que quis transportar para este meio, e precisava de um motivo. Achei-o por entre divagações etimológicas: solidus nescit ignavus metus.

O latim é uma língua incrível, declinada no fundo de forma simples e lógica (bem no fundo, mas é o que consta...), conjugações e declinações que ajudam depois a estudar outras línguas, como o alemão. Tive um colega na faculdade que me dizia que o latim só sobrevivia porque era uma língua morta o que, convenhamos, é um bom paradoxo (ou contrasenso, dependendo da interpretação), exemplarmente latino. Meu primeiro professor de latim ensinou-me (e outros depois contestaram, mas ficou-me teimoso este ensinamento) que é melhor traduzir do e para o latim palavra por palavra. Ainda que demore mais tempo, porque depois é preciso voltar e ver se de fato confere e faz sentido, para quem lembra muito pouco das aulas de latim, com certeza é a melhor maneira.

Exemplifico, com a frase que dá título à crônica: solidus nescit ignavus metus.

Solidus é uma palavra forte e sonora, que tanto nos legou a solidez robusta de qualquer coisa que o seja (sólido), quanto os sentimentos que nos unem uns aos outros dessa mesma maneira (sólida e robusta), sentimento ao qual demos, ao longo dos anos, o nome de “solidariedade”. Portanto, nesse caso que nos ocupa, a tradução seria : “a solidariedade...”.

Nescit - boa palavra também, verbo que nada tem a ver com o adjetivo nescius, com o qual eu sempre me confundo e que constrói a expressão que meu avô usava para arrematar qualquer discussão que o irritasse e o levasse a marchar rumo à porta, levando-me consigo: “minha filha (isso era comigo): a palavras néscias, ouvidos surdos”. Nescit, portanto um verbo, significa basicamente “desconhecer”. Assim sendo: “a solidariedade desconhece...”.

Ignavus é a próxima palavra – tanto pode ser entendida como preguiçoso, quanto como indolente, ou fraco, ou covarde. Fácil constatar que sinônimos perfeitos são coisas inexistentes – qual dentre nós em dia de preguiça se sente covarde?!Ser ignavo fez parte da maldição que caiu sobre o tupi de Gonçalves Dias: Sempre o céu, como um teto incendido, /Creste e punja teus membros malditos /E oceano de pó denegrido /Seja a terra ao ignavo tupi!, e, como para o poeta romântico, a última opção parece a mais apropriada para este caso: “a solidariedade desconhece o covarde...”.

Metus, última palavra e motivo de toda esta arenga, entra na tal frase de maneira especial: “a solidariedade desconhece o medo covarde”. Foi nela, na solidariedade, que pensei hoje ao acordar, por ter testemunhado o poder que tem em si de espantar o medo (covarde ou não, julgue quem achar que pode), entre sólidas comidas, robustas bebidas e solidárias risadas. O medo evaporou-se ontem à noite, por entre o lume da dupla beberaxe galega que se preparou para esse fim, e por entre cada um dos passos que nos levaram a alguns esta noite pelas ruas do nosso bairro, que se ressente nos últimos meses do aparecimento desse espectro.

Paradoxalmente como a língua morta que sobrevive, esse espectro torna-nos companheiros e irmãos daqueles que o vivem dia trás dia, sem poderem escapar à fome , à guerra, ao desemprego, à discriminação, à insegurança de viver em um mundo que não se reconhece porque escapa o olhar em volta, aquele que retoma o espaço que pertence às boas energias da amizade e do companheirismo. Alerta, creio que não hesitaremos em, assim que a primeira flor for arrancada e antes que não possamos dizer mais nada, dizer não. Um não feito do replantar a mesma flor todos os dias, incansavelmente, um ao lado do outro compartilhando a terra, a enxada e a confiança em cada um dos dias do ano que começa amanhã.

Que todas as nossas e as alheias flores desabrochem e encham os caminhos das cores alegres de um feliz 2010.

27/12/2009

A propósito de um verso de um poema

Termino o ano lendo Ana Cristina César - daqueles poetas que, por incomodarem, se relem. Ana Cristina transborda desespero e angústia por tantos lados, é impossível ser-lhe indiferente. Dependendo do dia, parece que se nos cola, um grude que não desiste e se infiltra até não conseguirmos mais - e precisarmos ler. Gosto dessa impressão, mesmo podendo chamá-la de desagradável. É tão poderosa e potente que nos abalroa e subleva, e eu gosto de me sentir abalroada às vezes, sem perceber de onde mesmo foi que veio isso que me atingiu. Muita coisa provoca esse sentimento - poemas fazem-no com frequência, mas também sorrisos, especialmente aqueles que não sei se são exatamente sorrisos, se são olhares materializados em forma de lábios. Levo horas e por vezes dias para processá-los, mas aprendi ao menos a fazer tudo isso em silêncio e sozinha, dando tempo ao tempo, e duvido que alguém me perceba nesse movimento.

Enfim: amanheci lembrando-me de um trecho de um poema de Ana Cristina (sentir separado dentre os dentes/um filete de sangue/nas gengivas) e fui à procura do início, porque esse é apenas seu fim. Não tenho nenhum de seus livros, mas tenho uma profusão de cópias de muitos de seus poemas, de curso aqui, curso acolá. Deu-me certo trabalho encontrar essa poesia em mente, e quando a encontro na verdade já a relembrei inteira. Descubro que essa procura fez com que achasse o que realmente preciso: outro poema, exatamente a pista que me conduz ao que quero fazer antes que chegue o novo ano. É um de seus raros sonetos (vou transcrevê-lo ali embaixo, é claro), e fala não de um ano novo, mas do sono e daquilo que devemos se o queremos. É preciso que nos dispamos, diz ela, ali, logo no primeiro verso, e eu só preciso mesmo é disso, o resto é pra me devolver a poeta, a quem amo e agradeço, mas peço licença. Do que eu preciso é só desse verbo, despir, na sua forma reflexiva: um poderoso despir-se que nos inverte o sentido natural do movimento, levando-o para dentro quando é originalmente para fora.

Descubro o que eu quero (e luto com um “preciso” que queria desajeitadamente infiltrar-se por entre estas linhas): quero despir-me do cansaço deste ano. Das suas sombras. Das suas luzes. Do que conquistei. Do que não fui capaz. De quem esteve. De quem partiu. Abrir-me em duas ou três ou quantas forem de mim necessárias para deixar sair tudo o que entrou durante este ano, e me construiu e desconstruiu por 12 meses. Talvez devesse despir-me das minhas letras. Quero esquecê-las. Meu bom amigo Llardent, editor de profissão, dizia que esquecer é publicar, e por isso aposento-as no papel, tarefa que não dói. A escrita cauteriza dores, faz escorrer destiladas, por entre os meus dedos, as letras que passearam por todos os meus órgãos, coração ao fim da lista, muitos mais ventrículos e átrios do que a anatomia física acusa. Vou preparar-me, neste tempo que resta, para as letras e as dores que virão, e para aqueles que as hão de inspirar.

Com o ato de despir-me, encontro camadas que são do começo do ano, camadas que ficaram até do ano anterior a este que se acaba, quem sabe se do outro ainda mais longe, e se amalgamaram à minha forma que quase pensei original. Retiro-as uma a uma, e antes de guardá-las, dobradas e bem seguras, nas caixas que arrumei para esse fim, olho-as por todos os lados, porque algo afinal devo aprender com cada uma delas que se fez tão frequente, para que não precise vestir-me de novo com nuvens do passado. Há algumas muito tênues. Se não estivesse tão focada nessa atividade no dia de hoje, provavelmente atravessariam o dia 31 despercebidas. Digo-lhes adeus.

Há algumas que me dizem baixinho que espere, que ainda não é hora, que nem tudo é regido por esse calendário gregoriano que nos ordena o tempo. Muda o ano, sim, mas nem tudo depende só do meu movimento, então haja calma. Há o que não posso despir, porque não posso ser deixada sem pele, em carne viva; não quero as dores do meu sangue do lado de fora do meu corpo. Mantenho essas camadas e esperarei que amadureçam, esperarei que me ajudem a retirá-las, porque sozinha é provável que doa demais.

E eu não devo, neste ano que está à porta, fazer-me doer a vida. Não devo dificultar as entradas e as saídas; enquanto me permaneça ao lado dos outros, não devo fazer doer as peles que não tenham sido retiradas. Há carne viva por baixo de nós todos, e nós todos somos feitos da mesma carne. Todos precisamos de descanso, e de sono, como Ana Cristina precisou, antes de se atirar do alto do seu prédio, porque todas as suas camadas foram-se-lhe arrancadas, ela própria repuxando uma a uma as suas dores, até não aguentar mais que tanta dor fosse só sua.


Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e

também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)

que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, e os ventos altos

que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.

30/11/2009

Das coisas fáceis e digressivas

Estou aqui há horas, com tanto a escrever, presa à releitura de um livro que aparentemente nada tem a ver com o que preciso fazer. Há manhãs em que se acorda com imensa facilidade para encarar o dia, e nesses dias livros assim caem-me nas mãos e há uma inércia dentro de mim que não lhes resiste. Aliás, esses dias na verdade não se encaram, desfrutam-se. Podem ser as mesmas tarefas iguais, pesadas, da véspera, quando só de nelas pensar cansava, mas de repente, mal amanhece, tudo parece mais fácil e leve, e essa sensação atravessa o dia e invade as horas da noite. Até fazer o oposto do que se devia é tarefa fácil e que não pesa na consciência.

Foi isso (que há dias que se desfrutam, não pesam), mais ou menos, que um de meus filhos me disse hoje de manhã, ao acordar, cedo como sempre, mas sem o franzir de testa que às vezes precisa para assumir mais um amanhecer. Fiquei de longe observando os planos do dia, e achei melhor começar pelas tarefas mais ativas, pela limpeza que invariavelmente depois conduz à reflexão, quem sabe se porque varrer e lavar as ruínas do passado recente, que ainda doem, abra as portas às mais distantes, que se converteram em memórias da parte boa.

Convidei esse meu filho, já que estava tão bem disposto, a que me acompanhasse, mas ele, bem disposto como estava, rapidamente conseguiu arranjar um parceiro de futebol, e essa imagino que seja a tarefa que considere prioritária. Nem sempre coincidimos, obviamente. Os demais nas suas próprias coisas, decidi não estragar o dia a ninguém - mesmo que as teias de aranha invadam o teto, hoje a minha vontade é encerar. Pode a pia ficar cheia de louça e o tanque de roupa: o chão rebrilhará a tarde inteira. Tenho motivos pra isso, descobertos numa gaveta da lavanderia.

Viajando com pouco dinheiro, muitas vezes acabo por trazer presentes e lembranças que custam pouco mas representam muito. Cera de chão, por exemplo, portuguesa e com cheiro de alfazema. Tem quem me diga que não, que não era essa a que minha avó usava, mas as minhas narinas atestam-me o contrário, e, graças a essa bisnaga lilás, estou transportada para um universo de coisas simples, que só o são porque estão longe e no passado e, como disse, delas guardo só as coisas boas, porque as doloridas já foram lavadas. Ainda por cima, coisas simples assim têm um poder mágico de se regenerarem – logo entra outro filho, cheira o ar e diz “olha, você usou a cera da casa da sua avó!”, mesmo nunca tendo posto os pés nessa casa, nem conhecido sua bisavó, nem sentido o cheiro da cera que ela efetivamente usava – mas, ainda assim, incrível, ele reconhece!

Surpreende-se porque só muito raramente o faço - por muitas bisnagas que contrabandeie no meio de camisetas e saias, um dia acabam, e eu fico a ver navios. Por isso, economizo-as e só as uso quando tenho muito bons motivos. Imagino que a minha memória das coisas boas e simples precisasse de ativação urgente, porque esse parece-me o único motivo para que hoje, especialmente, tenha eu desengavetado uma das últimas bisnagas. Essa história da memória tem me acompanhado nos últimos dias e fez-me, além de querer esfolar os joelhos no chão (porque a cera é em pasta, dura, daquelas de antigamente), resgatar um livro que li há anos - “Memória e sociedade”, chama-se, de autoria de uma professora querida, Eclea Bosi, numa daquelas preciosas e raras junções entre academia e poesia: histórias de velhos que recolheu para seu trabalho, entrelaçadas com as teorias psicológicas sobre a memória, seu campo de pesquisa e estudo.

Acho que o inferno astral está de fato me afetando, porque me pus a ler pensando nas coisas que, deste ano, ficarão gravadas na memória futura. Sei quais ficaram na memória de curto prazo, mas as interrogações me chegam quando penso no que lembrarei depois de ter esquecido.

Deve ser por isso que resgatei o livro (ou ele a mim, não fui à sua procura, ele de fato caiu-me nas mãos), já que sei que ele me dirá que ficarão impressas as coisas que se liguem ao que virá e o resignifiquem, sem obedecer a qualquer pensamento lógico do que é bom guardar ou esquecer. Por isso não valem a pena as minhas interrogações. É provável, também, que só eu lembre daquilo que lembrar, e que só eu saiba (ou nem saiba) porque um fato minúsculo me fará recordar tantos outros, detonando uma crise de lágrimas quando, velha como os velhos que Eclea entrevistou, alguém me perguntar sobre os eventos da minha própria vida, e eu me lembrar de um que ninguém perceba à primeira vista porque tão triste, porque tão evocativo, porque lembrá-lo afinal.

Fiquei tentando imaginar quem me fará chorar quando, como o rei Psâmenito chorou ao ver o mais velho de seus servos feito prisioneiro, vir passar à minha frente todas as lembranças da minha vida. Heródoto, que conta a história do rei egípcio, está presente no livro de Ecléa, e ela, que conta a história da memória, está presente nesta escrita desta madrugada, e fiquei com vontade de lhe telefonar e perguntar-lhe do que mesmo ela lembra dos momentos que eu lembro. Ecléa é um ser especial e sensível, que de vez em quando se lembra de mim; manda-me coisas as mais variadas, um dia um artigo sobre aquecimento global e transgênicos, outro uma poesia em francês, escrita à mão - no tamanho exato que cabe na parede da cozinha, de onde me acompanha dias e dias, permeando a minha lembrança de caligrafias miúdas, tintas azuis, papéis que de tão comuns reluzem naquilo que alguém já chamou de “as fímbrias da memória”.

Enquanto não me esqueço, é muito bom lembrar-me.

De companheirismo

Pela primeira vez, escrevo uma crônica encomendada. Alguém (não contarei quem) sugeriu-me dias atrás que escrevesse sobre companheirismo. Artigo em falta, disse-me no email mandado. E eu fiquei matutando um tanto, atrapalhada com o pedido, inusitado, e com a falta de inspiração, que espero se resolva no meio desta madrugada. O pedido foi pra lá de simpático, quero atendê-lo rápido!

Pensei (um tanto obviamente) em buscar as raízes primeiras da palavra e o resultado da pesquisa agradou-me apenas 50%. Cum pani foi onde consegui chegar; claro que logo me atiça a vontade de convidar alguém para comer alguma coisa, não necessariamente o pão do qual o latim fala – mas tenho um trânsito atravessando a minha carta astral, que me induz a refrear-me e a conter-me, juntando-se em coro insuportável a esse bom senso que insiste em me lembrar que não invente nenhuma novidade para este fim de semana. É melhor que procure formas feitas de ócio puro e simples, ainda que não me permitam transformar convidados em companheiros com quem divida (ou some, multiplique, potencialize, digira) o pão.

Companha (pus-me a brincar com a palavra, buscando-lhe as derivações) é um camonismo em desuso, respondendo por “tripulação de barco” ou “agremiação de pescadores”, lá pelos idos de mil quatrocentos e alguma coisa. Um pouco antes no tempo, descubro que a palavra conpaneyro tem registro escrito na Ibéria do século XIII, e que as primeiras conpanyas foram organizadas por gente em viagem precisando proteger-se dos assaltos das estradas – ou dos mares, séculos depois. Gente que se juntava por proteger-se e por viajar uns em companhia dos outros, dividindo o que levassem consigo ou encontrassem durante o tempo em que estivessem juntos.

Começo a perceber, ao de longe, de onde o motivo para o pedido pela crônica, porque essa mesma pessoa me dizia, há algum tempo, o quanto a solidão a ataca quando menos espera, o quanto sente falta da proteção do outro a seu lado, e o quanto lamenta que, ao contrário de antes, lhe falte o ânimo para ir atrás dela. Os anos vão chegando, e passando, e talvez a cada dia fique mesmo mais difícil andar em direção ao outro, ainda que pareça que o contrário fosse mais óbvio e fácil, já que em teoria quanto mais (nos) conhecemos mais fácil seria sermos pertos uns dos outros em vez de longes.

Talvez por isso esse filme especial, L’heure d’ été, tenha cuidado tanto da cena em que um encontro em volta de uma mesa, para um almoço celebração, evoca outro, em volta da mesma mesa, trazendo para perto companheiros partidos. A mesa e o pão dividido entre si, e passa-me pela cabeça que companheirismo seja o refinamento da amizade no seu mais alto grau, talvez esse pão que se divida seja o do próprio coração, talvez o alimento supremo, talvez a inspiração mais sublime, talvez o mais perfeito ato de amor, se originem do ato de ser companheiro. Companheirismo sugere proximidade, cumplicidade, a felicidade pela felicidade alheia, o acordar intranquilo à noite porque nem se sabe, mas se pressente a agonia do outro. Já não é cedo, quem as pediu só lerá estas linhas daqui a algum tempo, mas de longe e espero que não irremediavelmente tarde, quem sabe elas possam nos proteger, a ela, a mim, neste exercício feito palavras escritas, fora das barreiras do tempo, do espaço e das circunstâncias, presente concreto entrincheirado junto ao coração companheiro que quer aninhar-se no outro.

19/11/2009

Das caves

Durante boa parte da minha vida, as caves tiveram espaço e tempo para existirem e se transformarem em parte do meu sangue. Fossem as caves onde se guardava a safra de maçãs ao fim do outono, fazendo o ar rescender a algo acidamente doce que eu nunca consegui descrever nem reproduzir, fossem as caves cheias de blues, ou fados, ou vinhos - esses espaços úmidos, às vezes bolorentos, com o cheiro característico das coisas engavetadas e levemente esquecidas pelas mãos do tempo, são-me às vezes cruelmente ausentes.

Nesta semana que se acabou, sorte das sortes, fui convidada a uma cave. Daquelas coincidências que não devem receber esse nome, o convite chegou-me e eu abracei-o, tão inesperada e inexplicavelmente um quanto o outro. Já se passaram alguns dias, e não queria ir hoje deitar-me, mesmo sendo quase já tarde da noite, sem agradecê-lo, e sem registrar de maneira incompleta e provavelmente incapaz de ser transformada em palavras, os mil sentimentos que me atravessaram durante essas horas.

O mais forte de todos me faz agora fechar os olhos e visualizar diante de mim, como numa retrospectiva feita da luz dançante das velas e da cor das paredes caiadas com a cor da terra em volta, a imensa capacidade nossa de olhar para o outro sem precisar de defesas, olhar para o outro descortinando um pedaço daquilo em que podemos tornar-nos, se permitirmos tão somente que o outro nos adentre e possa transformar-nos em algo muito maior do que conseguimos ser sozinhos. Ser mais, e melhores, porque os outros estão em nós, e porque os outros permitem que estejamos neles, sem que se sintam ameaçados de que nem a nossa entrada os anule a eles, nem eles a nós mesmos.

Sermos um, e ao mesmo tempo o outro. Estarmos em nós, e ao mesmo tempo no outro. Não sei o quanto de devaneio terão estas pequenas linhas na madrugada, mas certamente irei dormir mais tranquila porque afinal não estive errada nas horas em que pensei que sim: que podemos ser um e o outro ao mesmo tempo, que podemos dar-nos e receber na mesma medida, num encontro em uma cave que nada me dizia de antemão (cega e surda que sou) que tal sentimento pudesse brotar-me, sem que eu precise perguntar-me agora de onde ou a que vem. Isso não importa, porque o que importa é o que é, e não o que eu penso do que é.

Os companheiros desta cave são todos diferentes uns dos outros. Diferem na maneira de falar, diferem na maneira de olhar, diferem na maneira de sentir e perceber. São todos improváveis encontros, distanciadas concentricidades da vida. Ainda assim, e justamente por causa da grande improbabilidade, das histórias, da vida, do mundo diferente, abrem-se-lhes os braços invisíveis aos olhos, e eu percebo-os a todos irmãos, a todos colegas de caminhada em meio às lianas da vida.

Nada de mais até aqui. Tenho a tendência a ver companheiros assim ao longo dos dias, e às vezes perco-me em tentar saber onde foi mesmo a encruzilhada em que virei para tão longe que não lhes vejo mais sequer a sombra.

Mas não nesta cave. O que aqui, à meia luz das velas e das paredes seculares que nos abrigam, se ilumina, são os dias que nos aproximam, e não os que nos afastam. Atacam-nos os nossos pontos de encontro, as nossas possibilidades de sermos plural, e somos arrastados pelos redemoinhos desse rio caudaloso do convívio sem defesas.

O milagre improvável daquilo que estava no script que perdemos, consubstancia-se imenso e terno, e uma cave, escavada com meticuloso louvor às coisas de Deus tornadas visíveis pelas mãos humanas, faz tudo isso brotar, na sua umidade e no seu bolor, que nada mais são do que aquelas curvas da nossa alma às quais fugimos por não querermos que nos digam que somos diferentes daquilo que achamos – e tão exatamente iguais àquilo que sonhamos vir a ser.

17/11/2009

Ao René, e à sua mãe, que alto esteja

Cada morte que se aproxima reinventa-me todas as mortes que persistem à minha volta. Cada um que parte, e que de alguma forma está próximo, reedita-me e aos que me deixaram sem saber o caminho de volta. Permitem que reconheça as pedras do caminho da ida, aquele mesmo que quando me chama se parece tanto com o da vinda; permitem-me sentir a humanidade latente atrás da porta de cada partida.

A mãe de meu amigo René morreu nesta semana, e eu sinto essa morte perto de mim e ao René a meu lado. Sei da força com que cuidou dela ao longo dos anos, acomodando no seu cotidiano uma doença difícil de definir e mais ainda de cuidar, com a consciência e entrega que eu mesma queria ter, ao lidar com esse processo que tenuemente nos une. Imagino-o agora a seu lado, velando-a no fim da sua luz, a caminho da seguinte. O René tem uma relação com o mundo dos espíritos que não tem rótulo nem nome, mas que o afirma e firma na terra diariamente, sem que diga nada.

O René não sabe disso (e há de saber por este meio), mas a sua significativa magreza, o seu sorriso e a sua ternura paciente serviram-me de exemplo neste pouco tempo em que nos conhecemos. A serenidade que emana, diante de um quadro que a mim me desespera ao longe, torna os meus momentos de preocupação mais leves, e por eles me decido a pegar num telefone e ir à busca de notícias do outro lado do mar.

O René não sabe disso (embora saiba muitas coisas, a maioria mais importante), mas a morte está à nossa volta o tempo todo, e permanece depois que todos se vão, e é a única que nos espreita a cada momento em que nos matamos lentamente naquilo que não nos permitimos. A morte não está no fim do caminho, mas a cada curva e a cada reta, e atinge-nos em cada discussão, em cada olhar perdido, a cada vez em que ignoramos os pequenos seres que atravessam o nosso andar. Porque a morte é a nossa própria essência, e mais estamos mortos do que vivos quando nos olharmos no espelho e vemos a transparência do espaço que existe entre nós mesmos e o reflexo da nossa pele.

Nada disso é a nossa alma, nada disso somos nós mesmos, porque estamos mais do lado de lá do que de cá, porque a cada dia nos matamos internamente para que outros possam renascer, e, para que outros possam morrer a cada dia, renascemos em nossa morte.

Um pouco como me sinto à beira da morte neste instante, reduzindo a minha noite de sono para estar mais perto de quem vela, ressuscitada nas palavras que quero deixar para este mesmo René que sei dormir de exaustão, na dúvida cruel do dever cumprido ou não, no sentimento esparso de algo ter ficado, porque sempre fica e de nada nos adianta querer atingir tudo, porque somos muito menos do que nada.

Ou um pouco como me sinto à beira da vida, quando penso em cada morte a meu lado, significando-me todos os dias, mantendo-me de pé à espera da próxima, vendo as suas costas e a sua sombra caminhando em direção ao futuro.

16/11/2009

As curvas da estrada de Pardinho

Finalmente livre da chuva ininterrupta dos últimos meses, e agraciada com uma dessas manhãs com que a aurora nos presenteia, decidi-me a desencostar a bicicleta da parede onde se apoiava há várias semanas, certa de que a sua falta poderia vir a ser um problema, no mínimo de fôlego. Pra não desanimar logo de cara, optei por ir até Pardinho pelo asfalto, evitando o estado sabe-se-lá-qual da estrada de terra. Pedalar no asfalto tem a gigante vantagem de poder aproveitar melhor a velocidade e o consequente vento no rosto, daquele tipo que varre qualquer preocupação e a deposita nas nuvens bem ao alto. Voltei sem nenhuma delas.

A estrada de Pardinho, talvez como a de Santos, tem umas curvas aerodinâmicas impossíveis de não aproveitar com deleite. Entrando nelas com a velocidade certa, a sensação é a de deslizar surfasticamente por elas, deixando pra pedalar no final e aproveitar o impulso, quase que nem sentir a subida seguinte. Não cheguei a Pardinho porque parei um milhão de vezes pelo caminho, o tanto de sol e de pequenas nuvens passeantes obrigando-me a puxar o freio pra não perder cada detalhe do passeio. Pra culminar, um grupo de paraglyder veio se avizinhando ao longe e aterrissando num pasto perto, fazendo-me perder velocidade e redobrar o cuidado que me permitisse olhar pra cima e em frente ao mesmo tempo.

Essa volta de bicicleta, que não demorou mais de hora e meia, teve a capacidade de transformar a minha semana em algo mais fácil de ser vivido, de forma consciente. Não sei que tipo de magia se estabelece no pedalar solitário. Talvez o silêncio. Talvez o outro tempo que se estabelece e não é interrompido nem mesmo com a passagem do caminhão, que buzina tentando me distrair. Talvez a cumplicidade daquele ciclista anônimo que passa, enxada amarrada ao bagageiro, expresso no “bom dia” que o balançar da cabeça denuncia. Ou talvez a vacas que para pra me ver passar, e me faz constatar pela enésima vez que não há olhar mais plácido do que o seu.

Todos percebem a diferença quando chego a casa – estava inquieta à saída, volto sorridente e com tempo para ouvir a todos, para tomar todas as xícaras de chá que tiver vontade, até para ver um dos episódios de Cheer’s que alguém aqui achou pra vender pelo preço da chuva numa locadora perdida em alguma cidade... E assistir esse episódio, no meio de uma manhã banal e tão irreal, transforma todo o meu dia: rio, porque não há como não rir com Sam Malone e seu bar, e olho em volta e sou feliz, porque tudo reluz.

06/11/2009

Listas de coisas a fazer

Comecei hoje a fazer uma lista das coisas que deixei pelo caminho ao longo deste ano, procurando imaginar (de maneira a concretizar, claro está) uma forma de encaminhá-las e dar-lhes a atenção que merecem antes que chegue dia 31 do mês que vem. Listas são coisas divertidas de fazer, até porque de repente, tornando-se enfadonhas, alegram-se magicamente com algo poético contrabandeado para dentro das suas estreitas e lógicas linhas. (Mesmo que isso não ajude grandemente a tarefa em si.) E por isso eu decidi fazer uma lista das coisas que não tenho feito, porque tenho tarefas urgentes entre mãos e quero relativizá-las, até por ter ouvido hoje que estou fazendo coisas demais... Se descubro que há várias que não estou fazendo, e quero, talvez descubra por tabela que as que tenho entre mãos não são tão grande problema assim, e me libere das primeiras mais rápido, para poder dedicar-me às demais, que passam hoje a compor a minha mais nova lista.

Enfim: a tal lista foi se encumpridando rapidamente, enquanto ao mesmo tempo me vinha à memória um amigo que me contou viver fazendo listas de coisas a fazer, cotidianamente, para ao longo do dia ir percebendo que não conseguiria chegar-lhes ao fim – invejo-lhe a tranquilidade com que se ri da situação e o sossego com que se confronta com ela, as várias vezes que o faz, que eu sei não serem poucas.

Embora não termine o dia repuxando-me os cabelos, e não tenha assim uma dificuldade homérica em deixar para amanhã o que não podia mesmo ter feito hoje (como já saberia se tivesse pensado e medido direito as horas que tenho à disposição), aborrece-me saber que algumas pessoas ainda me esperam e que outras ainda me aguardam, e tantos outros sinônimos que existem para esse mesmo sentimento verbal que traz atrás de si um “quem espera, desespera”.

Nesse meio tempo, porque fui fazendo a lista enquanto arrumava umas coisas por aqui (ordem que aliás me permita dar conta do recado deste fim de semana, que será curto para o tanto de demandas), encontrei um azulejo antigo, presente da minha avó há muitos anos, desconfiada de que algumas coisas precisassem ser-me recordadas depois que ela se fosse. Minha avó Ofélia tinha esse jeito engraçado que vira e mexe ainda me surpreende pela capacidade de ter deixado recados pela vida, vários para mim. Um desses recados é o azulejo – já o assentei em paredes de duas casas, mas quando as deixei, às paredes, trouxe-o comigo, incapaz da surdez que me faria deixá-lo por lá. Deve ter sido um presente de quando eu tinha uns 7 ou 8 anos; tipicamente azul e português, grosso como só o eram os azulejos antigos, quebrou-se já duas vezes, e das duas vezes o colei. Vou deixá-lo agora aqui, repousando diante do meu nariz, que tantas horas passa à frente desta tela. Dividirei com ele a minha atenção, poderei olhar para ele e consolar-me, outras horas alertar-me para a verdade que traz inscrita e que tantas vezes me escapa. Tê-lo assim aqui perto imagino que vá facilitar-me a lista que fiz, e que, agora reparo, é tão preenchida por conversas, encontros, convites que quis fazer e não fiz, ou fiz e não dei andamento, ou me fizeram e não correspondi, ou por aí afora uma quantidade grande de itens que poderiam estar inscritos num tópico “encontros e trocas” - e vontade de estar com os outros tão perto que eu mesma me confunda sobre quem está onde estou e quem estou onde está.

Porém, graças ao azulejo que me saudará várias vezes por dia a partir de agora, saberei que: “saber esperar é uma grande virtude”, e eu assim me lembrarei de aguardar o dia que for, do ano que for, para receber o que for para ser recebido, ou dar o que for para ser dado. Sem esquecer, é claro, de que tudo é muito, sempre, relativo.

02/11/2009

Infernos astrais

Desconfio que exista quem vá ficar com a sensação de que esta crônica foi escrita por sua causa, mas eu já vou advertindo que nem tudo parece o que é, nem tudo é o que parece, e na maioria das vezes as coisas nem são, nem parecem aquilo que achamos poderem ser. Existem coisas e pessoas inexplicáveis, às quais damos a importância que devemos ou podemos dar, enquanto que outras que achamos explicáveis nos tomam tempo demais (não deviam), e nem por isso resultam em ações que valham a pena uma explicação, ou a sua procura. Isto tudo para dizer que não: não tem endereço certo. As dores dos outros às vezes alcançam-nos, às vezes não; às vezes somos sensíveis a elas, às vezes não; e no limite o que se deve lamentar são os muros, carapaças e armaduras que erguemos à nossa volta para que os outros não nos vejam e muito menos queiram penetrar na segurança das nossas certezas. É sobre isso mesmo que me deu hoje vontade de escrever, diante do ano que vai chegando ao fim.

Quando eu era pequena, vivia considerando que várias coisas tinham vida, para poder chegar-lhes perto e abraçá-las, cheirá-las, mordê-las, acho eu que pressentindo que muito do que sou hoje estava contido naquelas coisas. Os pequenos sinais do mundo ao redor entravam-me pela pele dentro antes que eu tivesse tempo de me construir refúgios e proteções, e dizem-me as minhas tias que às vezes eu obviamente me perdia pelas coisas adentro e elas tinham trabalho para me trazer de volta. Achando que tinham de me trazer. Quantos pedaços de mim terão soterrado nesse caminho arrastado de volta que construíram, feito de fios que deveriam guiar-me pelas noites da vida?

É claro que ao longo do tempo construímos desses teares de fios rígidos que nos aprisionam em nós mesmos. Hoje, tenho um tear desses entre mãos, e confesso não saber o que fazer com ele. Fujo, e ele persegue-me; creio encontrar a maneira de soltar o tecido da sua quadratura dura, mas logo vejo que se desfaz em estado líquido, e me encharca quando mais preciso que a chuva pare; tento dialogar com ele, perguntar-lhe das mãos que o construíram, racionalizá-lo para ver se se resolve, mas ele se esconde e me atinge por trás, quando menos espero e os olhares se encontram e tudo volta ao mesmo estado latente estúpido de urdidura sem intenção.

A história do tear surgiu comigo pequena, uma das várias tentativas terapêuticas de me solidificarem num lugar visível, sem que as sombras quisessem chamar-me e eu ir ao seu encontro presa de enorme curiosidade. Gostei daquela coisa lógica e ordenada, ao mesmo tempo fluida e sob controle, a força velocidade direção e ímpeto certos no atingir o alvo, se a vida fosse fácil assim não seria necessário tecer. Do tear fui-me às palavras, e essas transformaram-se no meu tecido de vida, a cada dia o reconheço mais, com a mesma força velocidade direção e ímpeto. Cada texto que dou por terminado, mesmo que cheia da angústia de saber ter usado a palavra errada para o sentimento certo, alivia-me a alma e faz-me aquietar o que não entendo, faz-me duvidar das minhas certezas, saudável situação de levar pouco a sério aquilo que acho que sinto. Achar que se sente é um perigo, que nos invade grotesco vindo do que moldaram em nós o tempo e o mundo em volta, enchendo de nuvens aquilo que de fato se deve sentir, livres e libertos seres que no fundo somos. Achar que se sente é às vezes mais poderoso do que aquilo que de fato se sente e não se entende.

O amor incondicional, aquele que não espera nada em volta, é uma dessas coisas que não achamos que sentimos, ou nos impedimos de achar pelo tanto de vezes com que somos bombardeados com a impressão de que é preciso sermos retribuídos. Difícil digerir a vida sob o fio da espada de uma lei assim, que não preenche nem aglutina, e nos enche daquelas nuvens espessas do parágrafo anterior. O amor incondicional é uma utopia, repetem-me aqui ao lado, mas eu não sei, eu duvido. Gosto de nadar nas suas águas mesmo que ilusórias, perseguindo-o pelas corredeiras que forma, afogando-me em meio aos poços que cria ao longo do percurso, disposto a testar a minha fé na sua existência, sabendo que lhe retiro alimento mesmo que nada imagine esperar que me ofereça. O amor incondicional que não espera nada em troca é auto-alimento, percebo-lhe o espelhar de mim própria, e deste espelhar nascerem estrelas. Não tem direção nem sentido, mas é preenchido do mesmo ímpeto das minhas palavras, e a única coisa que quer é dar-se. Mas de repente sucumbo àquilo que acho que sinto, perco a noção de que não é o que sinto que me entristece e derruba, mas aquilo que não sinto, e só acho. Pelo que não sinto, não enxugo nem uma das minhas lágrimas, que podem tão bem ocupar-se do que sinto, inteira, real e de coração aberto, que é como me quero.

Final de ano é tempo de contar os passos dados, medir as costuras realizadas, perceber os encontros permitidos. Gosto deste tempo que coincide também com o fim do meu ano solar, e assim junto todos os finais num mesmo momento, dedicando-me a olhar para o tempo transcorrido como ferramenta de perceber o meu futuro próximo. O amor incondicional, que escolhi como posto de observação de mim mesma, rendeu-me momentos de felicidade absoluta ao longo destes últimos doze meses. Rendeu-me uma necessidade imperiosa de me manter em meu eixo, ainda que este tenha insistido em mudar de lugar e me feito correr atrás dele para impedir que os abismos me despedaçassem. Rendeu-me muito mais do que imaginava pudesse, e decidi manter-me firme na incondicionalidade que claro que dói e desanima. Quem disse que amar sem condições não é caminho tracejado por fios de desamparo e solidão? Esticá-los e dar-lhes os novelos que os ordenem tornou-se tarefa do meu cotidiano, dentro do cesto dos desafios que encaro, teimosa em não carregá-lo às costas, para que não me pese mais do que precisa. Às pequenas amarguras que entretanto me entristecem, uso-as como serpentinas que lanço e espalho, para que tudo se preencha de cor e movimento, laçadas luminosas no espaço que construo entre hoje e os meses que me separam da vida tal qual a sonho.

Bons últimos meses do ano a todos, na medida da felicidade construída.