30/09/2009

Das estrelas

Às vezes é preciso muito pouco para que um encontro verdadeiro aconteça e, mesmo sabendo disso, decidimos andar em sentido contrário, fazendo com que aquilo que vinha encantadoramente em nossa direção desapareça, porque lhe viramos as costas. Até percebemos sem dificuldade onde seria necessário pisar, o que dizer, por onde ir, mas as situações adquirem vida própria e as coisas encontram caminhos que nos levam muito mais para longe do que para perto. Em raros momentos, porém, a vida parece entrar no foco de um prisma justamente no momento em que a luz do sol incide sobre ele, e aí as coisas mudam de brilho, enchem-se de novidades e bailam diante dos olhos. É ótimo quando isso acontece.

Numa destas últimas semanas encontrei uma pessoa com um mapa astral tão próximo do meu que, como diria minha avó Gloria, “até me fez impressão”. Claro que por causa disso passei a prestar-lhe o triplo da atenção, desconfio que o mesmo aconteceu do lado de lá, basicamente porque, claro, um ficou tão surpreso quanto o outro pela quantidade de coincidências zodiacais, que só vieram à tona porque o assunto era esse, as estrelas. A partir daí, e pena que o tempo foi curto, faltou pouco para que nos sentássemos a conferir oposições, trânsitos e quadraturas, e foi uma pena também que ambos não estivéssemos com os mapas na mão para maior fidedignidade.

Dirigindo de volta para casa, fiquei matutando na quantidade de seres que devem andar por aí à procura uns dos outros, confundidos e aturdidos pelas aparências estúpidas que herdamos ou fabricamos, e que nos cerceiam a liberdade do ir e vir de uns aos outros. Que mais não fosse por isso, todas as artes do espelhar a própria alma, da astrologia ao tarot, já valeriam a pena, por permitir-nos olhar para nós mesmos e para os outros com a facilitação de um elemento externo, que de certa forma nos protege do olhar invasivo do mundo – afinal, o olhar vai na direção do objeto, e não do sujeito que muitas vezes resulta que somos nós mesmos. Pode até ser que se chegue nele, sujeito, mas é por percursos transversos, enveredando por aqueles desvios que nos penetram apenas quando no fundo sutilmente os convidamos.

O volante é normalmente um bom conselheiro e um perfeito inspirador, facilitador do processo de recuperação da memória e do tecer do contato entre experiências distintas. Cheguei ao destino, depois desse roteiro, contente pela volta, e com uma quantidade razoável de novos elementos na bagagem, daquele tipo que se insinua interligado. Cheguei tarde e fui-me deitar, conscientemente bem feliz pela possibilidade de ter visto realizar-se mais uma vez um encontro mal divisado, surpreendente precisamente por isso – porque ninguém estava à sua espera e ninguém lhe barrou passagem. Se desse momento surgirão outros ou não, pouco importa, até porque os milagres não se perpetuam no tempo, mas na memória.

28/09/2009

Da tia Olga

Tia Olga era uma tia um pouco à parte do resto da família, como um satélite em órbita imprecisa, mais da idade da minha avó do que das outras tias que eu tinha. A sua pele mais escura evidenciava os antepassados angolanos que convivem na minha família, sobre os quais por muito tempo uma outra tia, Alice, irmã de meu avô, com seus olhinhos brilhantes piscando como vagalumes, fazia referência baixando a voz e dizendo “ai menina, se não fossem aqueles teus parentes daquela cor, eras um bom partido...”.

Não sei bem o quanto a história da minha tia Olga se fez graças à minha vivaz fantasia infantil, mas o fato é que descobri um pouco da sua história, e contando-a aqui pode ser que alguém da família fique muito indignado e venha a público esclarecer o mistério, ou juntar-lhe novos detalhes que melhor a expliquem, porque eu posso estar muito enganada. (Mas que não tentem convencer-me de que o mistério é ficção: uma vez perguntei ao meu primo Luís de quem afinal a tia Olga era filha e ele olhou-me horrorizado e disse-me em voz baixa “mas então tu não sabes que essa pergunta não se pode fazer?”.)

Ceifando conversas aqui e ali, consegui ao longo dos anos descobrir o seguinte:

1. que a tia Olga veio de Angola nova ainda, porque a minha avó, órfã aos 13 anos de idade, além de precisar cuidar das terras da família, descobriu a existência de Olga e mandou-a vir das suas terras africanas;

2. que para além de lhe descobrir a existência, descobriu que Olga era na verdade sua quase irmã, neta do seu mesmo avô, sr. Manuel Fortunato, sujeito ao que contam bem apessoado e tomado de amores pelo chamado marítimo, ao qual obedeceu embarcando para Angola por volta de 1860, com a mulher Carolina a seu lado e outra que lhe arrebataria o coração à sua espera em Benguela; de Angola, trouxe uma filha com Carolina, Maria Luísa; lá, deixou uma outra, de outra cor, que tornar-se-ia anos mais tarde mãe de Olga;

3. que a tia Olga chegou e foi adotada pela minha avó – o que não deixa de ser curioso, se levarmos em consideração que as duas tinham idade muito próxima, nenhuma em condição sequer de adotar-se a si mesma, quanto mais um outro alguém;

4. que a família do meu avô, anos mais tarde, alentejanamente desconfiada e encarnada na minha infância pela tia Alice, costumava olhar com desdém para essa mácula étnica na família de Ofélia, e se comprazia em desaprovar os natais da família ampliada, ao ponto da minha avó capitular, e tia Olga reduzir-se aos poucos à sua própria e constituída família, que foi se tornando longínqua e distante, e da qual durante muito tempo só se ouviram ecos, todos quase sempre de desgraças que ora envolviam drogas, ora má vida, ora doenças. Há muito tempo que nem os ecos eu ouço.

A morte de tia Olga alcançou-me há quase 30 anos a muitas milhas náuticas de distância, e dela saiu-me um poema que é, dos que escrevi, um dos que mais gosto, feito da memória de um verão aprendendo a costurar, ocupada com o vestido que ofereci à minha avó no seu aniversário em agosto, e com uma camisa que dei a meu pai, mas que nunca chegou a ser usada porque afinal eu desisti de lhe pregar os botões. Menos obviamente, um poema feito da incompreensão infantil daquilo que não é dito, mas que anos depois se descobre e faz doer a carne exposta como se um dardo incandescente a atingisse. Um poema feito da impossibilidade da ternura aberta, e da via de mão única dos carinhos encobertos, sob a luz do caramanchão coberto do azul da glicínia, a salvo dos olhares rancorosos da família incompreensível e dos desnortes que provocam das cores das peles.

A presença da tia Olga no meu imaginário obriga-me a olhar de frente para a minha própria e herdada mesquinhez; alerta-me, quando menos o espero, para o preconceito nosso de cada dia, e o que mais guardo da sua imagem é o sorriso cheio de incompreensão compreendida, uma sensação silenciosa de que o mundo está certo justamente porque se manifesta errado, e porque nos permite reconhecer o errado para poder viver e construir o certo.

26/09/2009

Tajine

Finalmente inaugurei a mais nova panela de casa – uma tajine grande e brilhante, presente pesado de uma viagem a Marrocos, daquele tipo que só carrega na mala quem nos quer muito bem e por isso se presta a tal incumbência incômoda. Demorei a estreá-la, e fico contente que assim tenha sido, porque desta forma tive mais uma desculpa perfeita para escapar à tortuosidade do meu atual cotidiano, e dedicar-me ao que, nas palavras de Gauguin, demanda cabeça leve, espírito generoso e coração grande – cozinhar.

É interessante pensar dessa maneira, sobretudo porque, como tudo o que tem ida, tem volta, essa dedicação propicia justamente que a cabeça se torne mais leve, o espírito mais generoso e o coração adquira o tamanho que melhor lhe cai: o da ampla imensidão. Fico bem feliz, pra falar a verdade, e o princípio dessa felicidade é aquela sensação de pensar e estar com outros, sabendo que depois lhes vou entrar pela boca e passear-lhes as entranhas. Poderia soar escatológico, eu sei, mas está obviamente longe disso – esse passeio é feito de aromas e possibilidades até terapêuticas do encontro entre temperos e enzimas.

Pra missão desta noite, e como a cabeça não estava tão leve nem o espírito tão generoso, e o coração ao lado de ambos lutava por fazer-se grande, achei por bem resgatar tudo o que pudesse remeter-me às terras de origem dessa tajine. Escolhê-la a ela tem seus motivos, e certamente o das terras marroquinas serem leves, generosas e grandes é um dos principais. Por isso a música puxando pro árabe, o tempo à procura das pulseiras e dos castiçais que vieram de lá (buscas infrutíferas, no segundo caso, infelizmente), e até mesmo o lembrar-me da jelaba que era do meu pai e jazia no sótão, coitada, à espera deste meu dia de panela nova. (É por dias como estes que eu me alegro dessa atividade um tanto inconsequente de guardar coisas sem pensar nos porquês. Às vezes, carregam em si a salvação.)

Tenho a sorte de poder abrir (enfim!) os pacotes de especiarias que vieram dentro da tajine, recomendação expressa quando sugeri tal presente. Perco-me pelo olfato assim que solto as amarras dos pequenos saquinhos com cada um dos sabores que demanda o prato. O ar enche-se desses aromas fortes e marcados, a mágica completa-se e eu estou livre do meu peso, minha sovinice, minha pequenez. Ainda bem que a minha casa é cheia, e há quem chegue e espreite, e me encha de perguntas: o que é mesmo que está acontecendo, que cheiro novo é esse, qual é a invenção de hoje, quem é que você convidou pra jantar? Rio-me e respondo: ora, uns amigos, é claro, metade da razão da existência destas paredes serem do tamanho que são. Meus dias cinzentos são aqueles em que me esqueço de que me basta cozinhar para eles para aliviar toda a soturna e monocromática dor desse cotidiano que hoje, de repente, me atacou.

E, assim, cá estou à cozinha, feliz e realizada em meio a legumes, cúrcuma, canela, gengibre, alcaravia, cominho e harissa, tudo branco e liso e limpo como uma casa à beira-mar, quase que sinto a brisa oceânica dos meus primeiros anos a entrar-me pela janela. Em toda casa que habito, tenho uma espécie de fixação por lavar a louça podendo olhar o que está lá fora, como naquela primeira. Hoje, agora, enquanto lavo tudo o que usei, brinco de lembrar-me de outras janelas, e é por isso que a planta que cresce à minha frente, de repente se levanta numa onda do azul da cor do mar do meio do Atlântico. O azul avança em minha direção, e percebo que é o mesmo onde uma das minhas avós se perdeu um dia, esquecida do mundo em volta pelo tanto que a feria. Cor de horizonte infinito, talvez lhe tenha preenchido o espírito de algo que, para nós que a olhávamos de fora, não parecia nada, a não ser um vazio imenso dentro dela mesma. Talvez, apesar de tudo, aquela janela tenha sido o seu encontrar.

Essa minha avó, mais do que cozinhar, gostava de preparar a casa para a chegada dos outros, a melhor louça, as velas que queimavam devagar e sem cheiro, a toalha engomada com alfazema para acalmar os convivas, os talheres de prata rebrilhando e gastos de tão polidos, porque já eram da sua avó. Talvez por causa dela, eu me afaste decididamente dessa janela que quer me engolir, certa de que a sua maior e melhor herança é a que me faz dedicar toda a minha energia às flores que ainda jazem sob o mármore, antes da mão que as coloque no jarro, movimento que faço agora, ao lado da tajine borbulhante, ao mesmo tempo em que uma parte de mim se senta, do outro lado, à espera.

20/09/2009

Do intolerável

Passei parte da minha tarde de hoje lendo poesia em voz alta, atividade que é de longe uma das que mais me agradam, e que hoje me serviu um tanto de abrigo e outro tanto de desintoxicação. É uma sorte que o que tenho de fazer por ofício me leve a isso muitas vezes. No entanto, acrescentar a essa ação os poemas favoritos resulta numa soma estonteante que me faz soltar um suspiro no final, traduzindo a forte sensação de que tudo vale a pena. Sobretudo porque, no encontro com esses poemas, não há em volta nenhuma alma pequena, e por isso qualquer coisa deixa de ser intolerável.

Justamente: Fernando Pessoa. Por isso o suspiro. Nessas leituras de hoje, lembrei-me de alguns poemas que suscitavam grandes discussões quando eu era pequena e tinha à mesa a minha tia Teresa, com suas ideias revolucionárias pero no mucho, “porque se vierem mexer nas minhas coisas eles que se atrevam, a césar o que é de césar desde que césar não ache que é dele o que é meu”, e o meu tio Zé, que não sendo muito mais revolucionário que ela, tinha um arsenal mais vasto de leituras inflamadas e a sorte de ter podido compreender um tanto de coisas nas mil viagens que já tinha feito. Não se pense que eu não gostava de um ou de outro ou de ambos; apenas depois de anos, participando de conversas parecidas, fui reavaliando as minhas percepções da altura e encontrando-lhes outros significados e sobretudo outros motivos.

Uma dessas discussões girou durante uma época em torno da paixão que outra das minhas tias, Manuela de nome, tinha por Fernando Pessoa, enquanto que ambos os ditos revolucionários se insurgiam, num tempo em que ainda pegava mal o nacionalismo às vezes um tanto ufanista de parte do autor de “Mensagem”. Às suas ideias burguesas de produção artística juntavam-se aqueles poemas que tanto cantam, decantam e clamam pelo Quinto Império, e a pobre da minha tia Manuela, com uma verve bem mais comedida, era soterrada sob os discursos e argumentos dos dois, exaltados contra o tal Portugal que ainda não tinha se cumprido, “que patéticas as ideias desse gajo”.

O que punha fim às discussões era a minha avó avisando que meu avô tinha chegado. Ele, detestava essas invencionices modernistas, a poesia dele mirava-se no máximo num Antero de Quental. Os outros, fugiam apavorados ante a eminência de ter de lhe ouvir algum poema que ele declarava orgulhoso “este, sim, é nacionalista!”, como se isso fosse aos olhos dos demais uma grande virtude e acabasse de uma vez por todas com a discussão.

Assim, na sala, ficávamos minha avó, eu, e às vezes meu tio Fernando, de profissão arquiteto, a vida inteira enrolando indolentemente mechas de cabelo entre os dedos, com o cachimbo que a minha avó execrava tanto quanto a indolência dos dedos - mas aguentava, em nome do que se pretendia a boa convivência entre diferentes, mesmo diante da obviedade de ter de tolerar o intolerável. Foi daqui, do intolerável, que eu parti ali no começo do texto, na tentativa de conseguir lidar com a sensação de intolerável cansaço que se apoderou de mim hoje à tarde, e que eu vim resolver aqui entre os livros, tentando refugiar-me dessa exaustão de mim mesma.

A poesia, escrevo para poder lembrar-me da próxima vez, permite-me o tolerar dos meus lados mais intoleráveis, aqueles que aguento única e exclusivamente porque sei muito bem que me pertencem, mesmo que às vezes tente imaginá-los distantes, ou queimá-los em fogueiras ritualísticas que consigam diminuir um pouco essa sensação de intolerabilidade. Mesmo não desaparecendo, poder subtrair-lhe o raio de ação ou criar-lhe um pouco de distância - às vezes, é um alívio.

Uma boa noite.

07/09/2009

Finis terrae

Temo que existam algumas coisas que, no processo de se metamorfosearem antiguidades, se tornem obsoletas e venham a fazer falta no futuro. Por exemplo: caixas e gavetas cheias de fotografias que todos pretendemos organizar um dia em metódicos álbuns, para poder folheá-los velhice afora. Num futuro não mais longínquo do que esse da minha provável velhice, imagino que as pessoas se dediquem a esse tipo de arqueologia de forma digital, o que, convenhamos, tirará à atividade, além do pó, doses consideráveis de um recuperar da memória perpetuado pelo tato. Isso, sem levar em conta a vantagem de que os vírus das minhas caixas não conseguem deletar por completo as fotos, e os virtuais o farão.

Hoje de manhã, obedecendo ao efeito costumeiro de, ao ter muito o que fazer, decidir-me pela atividade mais inócua e desnecessária (à primeira e descuidada vista), alcei-me até o que se pretendeu um dia ser mezanino e se transformou em depósito de coisas como molduras quebradas, papel que algum dia a gráfica usará, xícaras e bules desirmanados, roupas de bebês que um dia já ocuparam o sótão da minha avó, livros e livros que não encontram seu espaço nas já entulhadas prateleiras, coisinhas que não me decido a jogar fora porque “acho que um dia ainda vou usar isso...”. Foi relativamente fácil achar as caixas das fotos, e mais ainda despender horas e horas em espalhar as tais pelo chão, para depois recolocá-las a todas de novo dentro das mesmas caixas, em ordem diferente, é claro.

Esse projeto de mezanino é na verdade um básico sótão a quem alguém um dia quis batizar de maneira pomposa, e como passei importantes horas da minha infância e adolescência refugiada nesses altos lugares, acho bem agradável que o da minha atual casa possa um dia propiciar a alguém o mesmo tipo de descobertas. Deve ser por isso que se encontre de tudo nesse lugar sombrio e empoeirado (o da minha avó era também úmido), dividido sem maiores problemas com alguns morcegos. Entre as fotos, havia algumas justamente do sótão da minha avó, caretas do meu primo Luís ao encontrar a coleção de chapéus de uma das nossas tias avós.

Lugares assim têm uma colossal capacidade de me resgatarem de mim mesma quando me afundo no que não posso resolver, às vezes sequer entender. Afinal de contas (pus-me a pensar ao desfolhar fotos e fotos de pessoas e horas submersas no passado), tudo passa mesmo, pena que nem sempre existam máquinas fotográficas por perto para estarmos mais tarde garantidos da finitude das coisas. Foi nessa hora que me veio parar às mãos esta foto aqui do Finisterra – o ponto mais ocidental da Europa, onde tantas vezes estive acampada. O ponto onde a terra acaba – finis terrae.

Assim que encontro essa foto, lembro-me do dia que não deixou de ser alegre por ser bordado de despedidas; reparo que a muitos que estão imobilizados na imagem nunca mais os vi, e de repente é essa foto, que encontrei porque nem me lembrava da sua existência, e que veio esgueirando-se por entre as outras até encontrar as pontas dos meus dedos, que me desperta essa cálida sensação de fim de tudo, quer queiramos, quer não. Basta-me agora encaixotar as coisas passadas para me perceber reimaginada, porque o que me incendiava, descubro, terminou, ainda que eu não tenha me preparado para os tons de cinza que se desacostumaram das minhas retinas nos últimos meses.

Os sentimentos que se despedem seguram a escada por onde desço desse sótão cheio de imagens e pessoas que deixo no passado. Guardadas onde só se vai muito de vez em quando, estão a salvo do meu próprio fim, e eu sei que hoje, dentro daquelas caixas, há mais coisas guardadas do que havia quando amanheceu, ainda que não sejam feitas de coisas visíveis, porque nem sempre o que nos atinge é feito de gestos que possam suportar-se a si mesmos em instantâneas fotografias.

02/09/2009

Das medidas do tempo

Tenho recebido umas estranhas criaturas no meio das minhas noites, vindas do mundo antigo, todas elas aparentadas com aquilo que nós chamamos de “tempo”. Primeiro foi Chronos, advertindo-me de alguma coisa que na altura só entendi parcialmente, talvez porque me chegou sozinho, ou talvez porque não lhe entendi corretamente a mensagem. Agora, nas últimas semanas, chegou Kairós, em auxílio àquele seu quase-irmão na tarefa de trazer à minha superfície o que me movimenta as entranhas. (É pena que às vezes as entranhas entendam bastar-se a si mesmas, como se estivessem destacadas do nosso universo completo, fossem seres autônomos num projeto ilusório do próprio corpo. É pena, porque há coisas que as entranhas ainda sabem e o resto de nós já esqueceu. Mas não era sobre isso que eu queria escrever, e sim sobre esses meus visitantes...)

Com a visita onírica de Chronos tinha eu concluído algumas coisas sobre o uso equânime do tempo. No caso, o meu tempo, porque pensei que a mensagem fosse pra mim. Dizia-me ele em sonhos que, embora fosse eu a bater em sua porta, era ele que vinha buscar o que lhe pertencia. Confesso que o sonho me perturbou um tanto, sobretudo porque se repetiu, com detalhes que eu própria devo ter lhe acrescentado ao longo dos dias, para mantê-lo aceso e consciente.

Kairós veio trazer-me notícias de outro lado, e fazer-me entender com mais clareza (ou crueza) a mensagem de seu predecessor, que me falava da sequência do tempo e do seu estender-se modular. A necessidade da linha que liga o passado (aquele que se insinua muito mais antigo do que a memória desta infância) ao presente, e este ao futuro, permaneceu nítida durante vários meses, sem que conseguisse eu atinar com os porquês de alguns detalhes. Kairós libertou-me do andar em voltas infrutíferas em torno desse tempo dos homens, que tantas vezes se desentende do nosso tempo interno, ou da sua (nossa) percepção. Com Kairós sobreveio-me o tempo do momento certo e oportuno, que intuitivamente sabemos, mas esquecemos. Essa indeterminação ausente em Chronos, substância ativa na presença de Kairós, alivia-me do som do tique-taque implacável, reduz o poder destrutivo da parte pânico das minhas insônias, mesmo que seja a sua exata e retilínea percepção que tenha me mantido acordada durante as últimas horas.

Com Chronos aprendo a medir-me face ao mundo, sei do percurso preciso, da lógica que faz com que as horas e os minutos se sucedam nos ponteiros do meu relógio. Mantenho o olho no semáforo, a mão ao alcance da agenda, as tabelas em que divido os meus dias distribuídas ao longo da semana, cada pessoa a quem pertenço e me pertence claramente à minha frente.

Com Kairós, mais do que medir-me, entrego-me; não vejo percurso a não ser um qualquer difuso, feito de pontos de luz, que não se sucedem e apenas acontecem, com a beleza singular do que lhes é particular. Fecho os olhos e os ouvidos ao ruído incessante da estrada que ouço ao longe, a minha agenda interna comanda a realidade, e não há tabelas, nem semanas, nem dias, muito menos pessoas que não se pertençam. Só o tempo em que o importante não é urgente, e efetivamente acontece.

Lanço mão desse tempo dividido em dois para somar-me por dentro. Não gosto de viver às metades, até porque gosto de fazer coro com aquele que diz que “metade de mim é amor, e a outra metade também”. Talvez por isso o meu último movimento desta madrugada arranque da minha parede imóvel todas as listas de “a fazer” e “feito” que se acumulam à minha frente, com o poder que eu lhes conferi de me medirem por todos os lados, e me impedirem de ser aquilo que devo ser, no tempo em que devo acontecer.

29/08/2009

De pinhais e piqueniques

Há uma lembrança de criança que me fez rir uma destas tardes, quando imaginei que um piquenique com o frio que estava seria uma experiência bacana de fazer com as crianças, quem sabe me reeditam internamente e assim a minha mortalidade se vinga. Algumas olharam-me como se eu tivesse endoidecido de vez, porque já estava quase escuro, a tarde no fundo já ia longe, e afinal... “mãe, qual mesmo a graça de comer sopa num piquenique, você tá querendo é nos enrolar...”

Quando eu era menor, a minha avó adorava organizar piqueniques curiosos que se transformavam em motivos de preleções simpáticas sobre a história de Portugal. Um dos locais favoritos eram os pinhais que D. Dinis plantou em longes tempos medievais para deter o avanço das areias sobre a terra firme, perto de São Martinho; punham-nos às duas a declamar felizes da vida o “ai flores ai flores do verde pino si sabedes novas do meu amigo...”, provavelmente a mais conhecida cantiga do rei poeta. Estes pinheiros chamam-lhes por lá mansos, copa larga e acolhedora, não muito altos, transformados hoje em símbolo de Portugal. No verão, por causa deles, é uma profusão de colares de pinhões à venda em todas as feiras, pra pendurar ao pescoço e ir mordiscando rua afora.

Chegando então ao local escolhido, estendia-se a toalha xadrez, e do cesto saltavam as sandes (adaptação lusa do britânico sandwich), que tanto podiam ser de carne assada quanto de tomate e ovo cozido (combinação também very british), as tartes de galinha perfumadas com tomilho, os refrescos de limão quase sem açúcar porque fazia mal aos dentes e as trouxas d’ovos - não há como explicar, é uma espécie de delícia dos deuses feita de gemas, gemas e gemas, além de quantidades imensas de açúcar que, imagino eu, nessa combinação não se imaginava que fizesse nenhum mal à dentadura. As trouxas vinham de casa da prima Madalena, não sei eu muito bem filha afinal de quem - segredo guardado a sete chaves, daqueles feitos de sussurros que silenciam quando quem não deve saber chega.

Eram piqueniques de certa forma velozes: era preciso comer sem demora, porque as formigas logo nos atacavam, pequenas e vorazes. Meu pai invariavelmente irritava-se, sacudindo as formigas do seu pedaço de tarte, minha mãe abstraía a confusão tentando ouvir o som do mar ao longe, minha tia Isabel espantava energicamente as pobres esfomeadas das beiradas da toalha, e a minha avó encolhia os ombros e me arrastava à procura das primeiras bagas do fim do inverno. Íamos, está visto, em excursão, e ocupávamos um longo trecho dos pinhais, andando por metros e metros, porque à beira da estrada, todos concordávamos, não tinha a menor graça. Tia Alice, irmã de meu avô, acusava-nos de parecermos provincianos mas, além de ir, comia no mínimo umas quatro sandes; trazia a sua cadeirinha estofada, que nos ocupava um lugar num dos carros, e suspirava desde que chegava até irmos embora porque “nada nunca mais será como antes”. Meu avô, que já lhe conhecia a conversa, logo declarava que “se a Alice vai, eu fico”. Em outras ocasiões, quando Alice não ia, ele apoiava-se na língua: “tudo o que começa com a letra p sugere-me perdição – praia, parque e piquenique... portanto, não vou”. Essa gracinha parou quando uma de minhas tias, salvo erro a mais nova, lhe disse que era engraçado mesmo, porque pai também começava pela letra p...

Essa mania de piqueniques familiares ficou-se-me lá do lado de lá do mar. Quando me lembro, e penso que puxa vida, que pena que meus filhos não têm essa vivência intensa, sou acometida por um misto de preguiça absoluta de todo aquele movimento preparatório que não tenho com quem dividir e da certeza de que tia Alice tinha mesmo razão, e nada nunca mais vai ser como antes. Nada mais melancólico do que sucumbir a um sentimento assim. Por isso, mal ponho os pés em Lisboa, a primeira providência (não é novidade, levam-me logo lá!) é comprar um frango assado no senhor joão da aldeia, ali à praça central de Cascais, e correr com ele (o frango, é claro) para o Guincho, tratando de comê-lo às pressas para que o vento dos penhascos não me leve embora. E mesmo as coisas não sendo como antes, faço de conta que eu sou, e divirto-me seja de olhos fechados, seja abertos, exercitando uma imaginação tardia do que foi, do que poderia ter sido e do que não importa se será ou deixará de ser. O que fica mesmo é o cheiro característico dessa dobra de terra que assiste ao despejar-se do Tejo mar adentro – a memória olfativa, já bem nos alertou Proust, nunca nos trai.

27/08/2009

Se+cura

Espero que me permitam brincar um pouco com as palavras – talvez haja outros que, como eu, se aliviem do peso do mundo brincando com os nomes que demos às coisas, transformando-as, nesse ato, naquilo que elas são. Tenho imensa pena de meu dicionário etimológico não me ajudar em horas como esta. Quando não sei exatamente o que fazer com uma coisa, ponho-me a pensar sobre a origem da palavra que lhe demos na tentativa, às vezes ingrata, de a definir. Foi assim, hoje, com a palavra “segurança”. E como não comprei, na altura, o dicionário que me disseram ser o melhor (basicamente porque está esgotado e, quando se encontra em algum sebo, custa um dos olhos da cara), fico-me aqui com esse sucedâneo de etimologia que raramente me resolve qualquer dúvida. Hoje, como em outros dias, a frustração é a mesma. Nem me atrevo a oferecê-lo a alguém.

Resta-me, pois, apelar à memória. Lembro-me bem de que “segurança” tinha algo a ver com o “viver sem preocupações”. Confirmo, (salve google!), que essa é a acepção mais comum, conforme me ensinou alguma aula sobre Roma. Lembro-me também, porém, de que na altura levantou-se uma discussão que minha memória não registrou à exatidão, mas que estava ligada ao prefixo se unido à raiz cura. É da junção de ambas, se+cura, que deriva a palavra que hoje me atordoa. E também isso encontro, não sem algumas manobras radicais pela internet, que google é bom, mas não perfeito.

Reconfirmei que esse sufixo se normalmente dá, àquilo a que vai se juntar em latim, a sensação do “si mesmo”. Neste nosso caso, com essa cura ligada ao ato de “cuidar”, terminamos num inspirador, embora desnorteante, “cuidar de si mesmo”.

Se+cura. Uma sinapse a mais, e logo paro, ensimesmada com as possibilidades de relação entre as duas explicações. Sei por experiência própria que podemos até querer que a etimologia seja uma ciência exata, mas muitas vezes não é o queremos que acontece. Aliás, acho que raramente. “Viver sem preocupações” e “cuidar de si mesmo”.

Deixo cada um entregue às suas próprias conclusões, longe de mim chegar a qualquer uma que antes quero permanecer tranquila, mas não resisto ainda a juntar-lhe mais um prefixo, para dormir melhor. Lembro-me do nosso co, e assim obtenho algo maior, que tão bem vai se acomodar esta noite ao meu lado, tão persistente debaixo de meu travesseiro quanto o cheiro da lavanda que me ajuda nos sonhos.

A co-segurança que obtenho permite-nos (porque agora não sou só apenas eu, mas alguém junto, que co-o-que-quiser) um viver sem preocupações, cuidando de nós mesmos enquanto outros cuidam de si mesmos, enquanto aqueles cuidam também destes e estes daqueles primeiros. Uns cuidando dos outros sem a secura de um mundo sem prefixos, nem sufixos e nem amigos - como aqueles que vivem ao nosso redor, dispostos a atender telefones noturnos, acudir a sirenes disparadas, ouvir com carinho o desespero de quem se desespera e oferecer-lhe o que lhe parece possível, e levantar-se no outro dia com energia e ânimo para pensar-nos seres coletivos, em busca sempre daquilo que nos une. Obrigada a quem está acordado – mesmo que já tenha ido se deitar.

25/08/2009

De hoje à noite, e de aqui mesmo

Devo já estar sendo redundante (e com o uso do gerúndio tudo tende a piorar...), mas dificilmente poderia ir deitar-me sem registrar numas poucas linhas o quão incrível é a maneira como todas as coisas da vida se encaixam, se permitimos que o façam. Muitas vezes nem sequer estamos atentos, e por isso deixamos passar ao largo os fios que nos conectam umas coisas às outras. Mas em alguns momentos temos a sorte de estar focados, e é aí que podemos intuir por inteiro o que não é óbvio.

Hoje à noite, no meio de uma fala que nada tinha a ver com o que lhe veio na sequência, pus-me a pensar (porque era disso que se tratava) no poder quase insano do silêncio, das coisas criadas que jamais assumiriam qualquer forma não fosse ele, o silêncio. Pessoas que se movimentam através dele em conjunto, e por isso alcançam milagres de construções geométricas precisas. Era disso que tratava a fala. Eu pus-me a recordar momentos de silêncio tão importantes e potentes que chegam a doer-me na alma, tamanha é a força e a sabedoria que trazem em si. Coisas pequenas, estreitos segundos - e mundos cheios de força e verdade. Tendo a recuperá-los depois, quando estou sozinha e o silêncio de mim mesma se instala ao meu redor, e de novo, quando são de fato solenes, me atingem esses mundos como a brisa marítima em busca de uma tempestade. Suave, insistente e premonitoriamente.

O que se conectou a isso depois, noite adentro, foi a possibilidade de realizar o como movimentos que em silêncio se desenvolvem nos devolvem velhos conhecidos vestidos de novas roupas, novas cores, novos ares que se lhes pegaram enquanto estiveram ausentes de nós. Há muitos dias em que me alimento dessa matéria, até porque tenho a preciosa incumbência de olhar para seres que em silêncio alcançam novos lugares; mas, em uns mais do que em outros, essa tarefa me enche de algo que eu não sei explicar, mas que me completa e me alivia da tortura dos dias que não compreendo. Como se, num filme de auto-ajuda eficaz, eu me convencesse sozinha de que tudo tem, mesmo, um sentido. É assim que age o sentido da auto-ajuda.

Para que se entenda, é sempre bom dizer que faz anos que deixei de pensar que tudo deva ter um sentido, ou pelo menos que tal sentido me seja acessível. Ao longo do tempo, e não sem as dores que tal descoberta considera, tornou-se mais fácil escorregar pelos tobogãs que o destino nos instala no caminho, mais compreensível aceder ao deslizar pelas penínsulas, terras estreitas, das nossas próprias indecisões e culpas, palmilhar cada centímetro que nos leva para mais perto do centro, que tantas vezes dói. Sem pensar no sentido, e abrindo os braços na direção do vento que sopra, sinto-me estranhamente mais livre, e mais estranhamente ainda duplamente consciente.

Estas segundas feiras musicais que se inventaram, e que aos poucos vão se transformando em nossas redondezas em momentos de troca e deleite com o prazer e a arte do outro, inauguram a semana com uma aura sensível de entrega e sorriso, no silêncio que demanda ouvir a vibração do outro. Não têm sido muitos os momentos em que podemos despir as almas dos temores e do julgamento alheio, e este abrir de portas é mais uma lufada de oxigênio pelo menos na minha vida, que tão agraciada tem sido, por tantas coisas e pessoas, nos últimos meses.

Vou deitar-me com a sensação de perenidade da imensa gratidão que sinto por estar onde estou, com quem estou e também com quem não estou. Tanto quanto dos silêncios, é dos vazios com que a vida nos presenteia que calçamos os nossos caminhos. Insisto em preenchê-los de palavras, porque me ajudam a achar a medida de quem sou e do que procuro. A sorte de ter quem me leia acompanha-me já há muitos dias, e chego à conclusão de que abrir os braços ao que vem tem sido a minha salvação.