11/08/2009

Do primário

Devo ter sonhado esta noite com a Sra. D. Esperança. Soava aos meus ouvidos infantilusos mais ou menos assim: Sôdona Esp'rança, por isso acho melhor mudar-lhe a grafia, para que nos entendamos todos em termos de sonoridades linguísticas. Sôdona Esp'rança foi minha professora do 1º ao 4º ano primário, na escola que foi também a de meu pai, e que leva o nome de um importante ceramista português: Rafael Bordalo Pinheiro. Vale a pena conhecer-lhe o “Zé Povinho”, figura adotada pela minha cidade (onde o tal Bordalo Pinheiro viveu e trabalhou durante anos) como sua expressão máxima, o que explica várias coisas a respeito dela e de seus habitantes. Googlem!, como diria meu amigo João Pedro.

Senti-me afortunada durante esses quatro anos, graças à professora da outra sala. Eram as duas multiseriadas: a da Sôdona Esp'rança, estava eu no 2º ano, dividia a sala ao meio com o 4º, a quem ela se dedicava quando nos mandava, a nós do 2º, fazer alguma coisa em silêncio e quietude, e vice versa. Sôdona Maria José, uma velha bem velha vestida de preto por toda a eternidade, era um terror de antipatia e mau humor. Assim, tendo por base essa comparação infeliz, eu me achava uma pessoa imensamente sortuda. E todos os meus colegas acenavam a cabeça aquiescendo quando esse era o tema.

Os métodos da Sôdona Esp'rança incluíam algumas coisas já abolidas na altura em outras partes do mundo, como a palmatória. Evoluída, no caso dela, que já tinha assumido um ar de régua de madeira. Mas doía do mesmo jeito. E eu era a sua escolha preferida, semana sim e semana também.

Qualquer coisa era motivo para ser chamada ao estrado – o pódio onde Sôdona se instalava em sua mesa, ao lado do quadro negro. Ora era não saber alguma coisa que devia, ora saber algo que não devia, ora a incapacidade de fechar a boca quando ela entendia que a (minha!) conversa tinha acabado. Esse era o maior dos meus pecados, a conversa, e acho que atualmente pago por ele, talvez perdoada dos juros, várias vezes por semana.

Eu fazia de tudo para escapar ao castigo, que realmente doía e deixava minha mão vermelha, às vezes arroxeada, dependendo da ira de Sôdona Esp'rança. Porém, também me elevava em importância, porque eu aguentava e nunca me viram chorar ao ser palmatoada. Minha mãe não sabia de metade – da vez em que percebeu a minha mão quase roxa, ia lhe dando uma coisa e invadiu a escola tão irritada, mas tão irritada, que eu decidi nunca mais lhe revelar o dia da palmatória, pelo escândalo que ela não precisava e nem eu.

Acho que, no fundo, eu julgava merecer tudo aquilo. No dia em que me pegaram saindo da janela do quarto das hóstias, por exemplo. Explico: anexo à escola, ou algo assim, funcionava algo ligado à igreja. (Nunca saber muito bem a origem de nada e andar um pouco acima das nuvens de segunda a segunda era também motivo de palmatória.) Uma das atividades desse anexo, de qualquer forma, era a feitura de hóstias, que gerava uma série de folhas todas furadas, redondinhas, como o que sobra quando se cunham moedas. Sobravam aquelas folhas e, acredite, eu acho que eram jogadas fora. Talvez tivessem outro fim, vai ver, mas eu jurava que eram jogadas fora. O que não tem a menor importância, porque a questão não eram as folhas, mas o apetite de todos por hóstias.

Com dois amigos, descobrimos um dia que a janelinha do topo da parede do quarto onde se faziam as tais das hóstias, ficava presa só no trinco, sem trancar. A janela era bem estreita, eu o era também, a menor e mais magra de todos, e lá fui a escolhida para a tarefa de escalar a parede. Entrei sem dificuldade, agarrei numa porção de folhas e dobrei-as bem dobradas para caberem no bolso do casaco. Escalei a janela de volta. Posso imaginar-me o sorriso de felicidade e triunfo, transmutado em pânico e apreensão quando vi que quem me esperava do outro lado, em vez de meus amigos, era o padre Viegas - e a Sôdona Espr'ança. Meus amigos? Evaporados, covardes que foram de me deixarem sozinha com a autoria, gestação e execução da ideia das hóstias. Esse foi um dos dias das minhas mãos arroxeadas, porque a aventura me rendeu palmatória dupla, esquerda e direita. E ainda por cima perdi as folhas furadinhas das hóstias.

É estranho, por histórias como essa que de tantas dariam um livro, que eu guarde boas lembranças de Sôdona Esp'rança. Já morreu, por isso sinto-me desobrigada de muita coisa, mas no fundo eu gostava dela. Desconfio que tenha a ver com a correção que fazia às redações semanais – sinceras , atentas e transparentes de um respeito que me alimentava. Ela orgulhava-se (disse-me a minha avó já eu estava longe desses dias) de ter sido ela a me alfabetizar, vivia contando casos da nossa vida em comum. Lembro-me de lhe ter ouvido um dia, em que a fui visitar já estava ela doente e já era eu mãe de vários, que nunca entendera como é que uma cabeça como a minha conseguia escrever coisas como as que escrevia.

Demorei a perceber a importância do brilho que iluminava os olhos da Sôdona Espr'ança quando me devolvia o caderno de redação, corrigido. Era uma mulher austera, de cabelo imenso e arredondado, alourado escuro, parecendo duplicar-lhe o diâmetro da cabeça, e nunca me dizia nada que eu pudesse entender como elogio. Mas seus olhos brilhavam, e por eles eu me alegro de ter guardado dois ou três desses cadernos, para poder agora olhar pra eles com outros olhos, que são hoje mais meus do que eram antes.

Por vias travessas, talvez sendo gentil com o passado e suas marcas, eu posso acreditar que Sôdona Espr'ança, com seus métodos um tanto brutais e secos, tenha me marcado o suficiente para me ajudar a encontrar o estuário da minha melancolia. Na maioria das vezes em que escrevo, é através dele que nado, é dele que luto por sair, demorando-me em braçadas que funcionam na minha vida como lufadas de oxigênio puro.

De um dia após o outro

Sabe aquela música? Aquela que começa com Hay dias que no sé lo que me pasa...? Quando é assim, durmo muito menos do que o normal, e acordo com uma disposição muito maior do que o costume. Esses dias espreitam-me e às vezes preocupam-me, fazem o mesmo com quem vive ao meu lado, porque são daquele tipo que deixa as redondezas exauridas e, a mim, inevitavelmente insatisfeita. Em dias como esses, o mundo parece muito pequeno e o tempo muito curto.

Por outro lado, é muito nítido ser desses dias que me nascem as ideias que depois se tornam meu alimento durante meses. Mas é um processo cansativo, e frustrante, e hoje eu não estou disposta a passar por todo ele com a sensação de que, por mais que ande, que dirija, que pense, que faça, que procure - não chego lá.

Por isso, cá me vou à escrita, veia de alívio, quem sabe as ideias me escorrem pela ponta dos dedos e retornam com a serenidade com que me proponho a, de vez em quando, viver. O primeiro problema que se apresenta é decidir se quem me galopa são os cavalos do verso, se os da prosa. Todo ano alguém precisa ouvir-me falar sobre a diferença entre prosa e poesia. Gosto desse assunto, que é daqueles aparentemente banais e essencialmente fundamentais. Daqueles que parecem resolver-se em dois minutos, mas não o fazem. É como aquelas pessoas que, de repente, se iluminam sob diferentes luzes: nem as notávamos e, num segundo, porque lhes vimos o que não lhes tínhamos visto, invadem-nos pelos sentidos e encantam-nos longo tempo. Pensávamos que eram simples, diretas, rasas até, e um dia revolvem-nos por dentro e dizem-nos com todas as letras que o mundo não é, mesmo, tal qual o imaginamos. Antes algo como aquilo que dizem existir entre o céu e a terra.

Nada melhor, para perceber o quanto a diferença entre prosa e poesia não se resolve num instante e pode ser tudo menos banal, do que ter algo a dizer que tanto num quanto noutro enquadramento se desencaixa. Talvez porque existam horas que demandem espaços abertos para o ser verdadeiro, nada de quadros ou caixas que prendam ou limitem, absurdo técnico costurado com as agulhas e as linhas da razão. O que precisa ser dito não cabe perfeito nem numa, nem noutra forma. Como os sentimentos que não se sabe por onde extravasar, e que se ficam nessa consumação que dura o dia todo, semanas até, se quisermos ser honestos conosco mesmos, à espreita por trás de cada árvore, por entre as folhas que decidimos tirar do gramado para clarear a própria superfície. Mas o vento que sopra em volta das casas é indomável, e as folhas voltam para onde estavam mal lhes viramos as costas, nós próprios nos virando e descobrindo que o vento nos trocou o lugar das coisas, e de nós mesmos, sem nem percebermos.

O verso!, penso comigo mesma enquanto olho o papel cheio de traços - é nele que encontrarei socorro... Mas não: também ele revolve ainda mais tudo o que sinto, ainda por cima permite que me ausente de mim mesma e divague pelos ares, e definitivamente esse não é o caminho, porque o que se quer é uma âncora, sei-o bem. As palavras não se permitem tranquilas, o objeto faz-se presente em demasia, obriga a dizer adeus à essência do que realmente se sente, que nada tem a ver, claro, com ele objeto. São contornos a mais em partes tão líquidas do próprio ser.

E tento a prosa. (Esta, aliás, é a sua tentativa.) Mas as arestas das linhas não interrompidas pelas cesuras dos silêncios poéticos tornam-me os sentimentos mais duros do que consigo aguentar. Doem-me como facas que me atravessassem aos poucos e devagar, como personagens bestas de Drummond, e logo volto ao verso, em desabalada e entristecida corrida. Por ele, ao menos, esvazia-se o leito deste rio em que se não estiver atenta me afogo. Mas quando me volto e olho para trás, não reconheço o por onde andei, e assim também me perco, também não consigo refazer o percurso.

Escrever demanda retomar caminhos e procurar a forma exata. Quanto mais se escreve, vivo eu dizendo por aí, melhor se escreve – e é um fato. Mas as coisas estagnadas assim ficam mais evidentes, as nossas estagnações internas com elas, e tudo isso dói.

A substância da língua divide-me em dois braços, um construído de versos, o outro de prosa. Lembro-me dos graus da poesia tal como os queria Pessoa, e tento projetar-me num dos mais elevados, deixando a modéstia de lado, pra ver se é ali que me libero. Mas soa falso, sou eu pensando em vez de sentindo.

Insisto em querer libertar-me sozinha, resisto às prateleiras à minha volta, escavo com vontade só o lado de dentro, relembro a memória e limo as suas falhas e os seus vazios. É uma sorte que o dia se acabe, e que com a sua luz mortiça se presentifiquem as necessidades da manhã, que se aproxima e promete. Amanhã, imagino talvez, saberei lo que me pasa, sem que precise por favor nem abrir o meu Neruda e nem apagar o sol.

09/08/2009

São Paulo, ontem

São Paulo, a cidade, tem a capacidade de despertar-me tudo o que de mais rápido vive em mim. Quando estou na disposição correta (e ontem estava), isso diverte-me imensamente, porque consigo quase que ver-me de fora, manipular-me até, transgredindo o que seria o meu normal, vendo o que acontece nessa inversão da ordem que me diz do que faria fosse eu outro. Parece estranho ao pensar nisso pela primeira vez, mas demora-se pouco para perceber o tamanho da recompensa.

Ontem, por exemplo, precisei ir a São Paulo para algo que tinha que fazer apenas às 18h. Ainda assim, decidi sair cedo, de manhãzinha, porque pensando na ida e oferecendo carona, logo me apareceram duas, que precisavam ir cedo, e cheguei à conclusão de que seria interessante sermos companhia uns dos outros. E lá fomos – meus planos, de um vácuo vazio, apenas possibilidades que deliberadamente deixei por conta da carta com que o tarot me perseguiu nas últimas semanas: a roda da fortuna. Portanto: nada de planos, porque não me pertencem. Quando essa demanda se amalgama à própria percepção e acompanha o ritmo natural do dia, é ótimo; quando não, é um pesadelo.

Dias como esse, de tão intensos e completos, parecem vários, e tanta foi a explosão de sensações e tantas as impressões que se acotovelaram à minha superfície, forçando a entrada avassaladora e descontroladamente, que até dirigindo eu precisei dar um jeito de rascunhar algumas coisas, porque iam escapar-se de mim com certeza, com tal velocidade me chegavam, de todos os lados. (Sim, é claro que é perigoso, não aconselho ninguém a seguir-me a ideia de rascunhar coisas em plena marginal, imagino que seja proibido e comporte até uma multa, mas exemplifica bem, e a rigor, o estilo de urgência que me ataca de vez em quando, e ontem em especial.)

Essas inspirações, que não marcam hora e são como aquelas visitas que chegam quando você está de saída e atrasado, atingem-me no centro do peito e alteram-me a respiração de uma maneira caótica. Escrever resolve o que poderia ser esse primeiro problema – mas é na verdade a absoluta solução, e eu sei disso mesmo que de fora pareça outra coisa. Ontem não teve mesmo nada de problema, antes uma agitação de caráter sublime, que fiquei observando em mim mesma, encantada com o que me acontece de vez em quando, graças a vai-saber-o-que.

E cá estou, São Paulo luminosa e ensolarada. Deixo minhas caronas simpáticas e confiantes na minha capacidade de direção, e vou em busca da amizade que há tempos não encontro. Entrego-me absoluta em suas mãos: que me leve onde queira, faça comigo o que deseje, alimente-me ou alimente-se de mim, que pra mim tanto faz, a felicidade do encontro já é tudo e não preciso de mais nada. Graças a essa possibilidade aberta com que acordei, e que consigo examinar agora, tudo é um todo completo, que chega para me dizer tantas coisas que eu quase me perco, atônita com a sintonia à minha volta.

Pra começar (e terminar, senão isto fica longo demais), entre várias opções, decidem-me pela da exposição de Sophie Calle. Sim, lembro-me de ver seu nome em meio aos tantos da FLIP deste ano, mas não sei nada dela, estou afastada de tantas coisas. Descubro que essa criatura francesa, ícone da arte contemporânea (“arte de amplo espectro”, leio na introdução ao folheto que me entregam), tem por caminho a exposição da sua própria vida, nua, crua e de dentes e ossos abertos; custa-me fechar a boca, de tanto que me percebo. Desta vez, nesta exposição/instalação que aliás fica no SESC Pompéia até o dia 7 de setembro e vale a pena ser visitada, o objeto do seu trabalho parte de um email de rompimento amoroso que recebeu de um homem, o seu próprio amor. De cara, antes mesmo de entrar, mal ponho os pés no Sesc e vejo lá embaixo (a exposição é num dos galpões inferiores) o título da exposição (“Cuide de você”), sei que algo de significativo se abriga ali, ainda que não saiba do que se trata. Não são exatamente as palavras, nem me dizem tanto, mas talvez o cuidado gráfico, a disposição de banners ao vento que chama a minha atenção, que se desatina e nem realiza o recital de cítara no salão principal deste Sesc com recordações de tantos anos. Ou talvez não seja nada disso, e apenas a intuição antecipando-me a vida.

O tal email, que a destinatária deixa sem resposta, foi enviado a mais de 100 mulheres, cada uma de um quadrante da vida, para que a analisem a partir da sua própria percepção e ocupação profissional. Nada de pedir ajudas, ou de compartilhar a dor; o intuito é perceber como os outros perceberiam (creio eu que ainda assim isso é um compartilhar, mas vamos lá...). A exposição destacou algumas destas contribuições à dor de Sophie, numa estranha e complexa espécie de terapia auto-coletiva mediática: uma jurista, uma encarcerada, uma papagaia, algumas atrizes, dançarinas, uma especialista em direitos da mulher, outra em boas maneiras, uma tradutora de linguagem sms, uma etnometodologista (?), uma intérprete do talmude, uma headhunter, uma mestre em ikebana...

Cada uma, uma percepção e recepção; cada uma, espaços possíveis de uma resposta que nunca acontecerá, num processo em que não se vislumbram as linhas divisórias da ficção e da realidade, provavelmente (penso eu) porque toda realidade seja uma ficção de cada um à sua maneira. Sei que não gosto de me pensar realidade, e realizo-me na ficcionalização cotidiana de mim mesma como manobra de pura e banal sobrevivência - e deve ser por isso que a minha boca não quer fechar-se. Não tanto pelo que leio, pelo que vejo, pelo que ouço – mas antes por causa do próprio conceito, pela descoberta de que inventaram nomes para as coisas que faço cada vez que acordo (e compreenda-se que eu acordo várias vezes ao longo do mesmo dia).

Descubro depois que a passagem dessa Sophie por Paraty aconteceu pela mesa redonda da qual participou, e na qual estava também o autor do tal email, também escritor. Terá a exposição despudorada da dor tornado mais fácil o seu filtrar e a sua despoluição? Terá a exposição permitido a dor das pequenas torturas que nos impomos, e que nos são vitais, sem que as rechacemos e nos abstenhamos dos seus ensinamentos?

Às vezes, penso comigo mesma, sinto-me realmente intoxicada. Como esse Tietê aqui ao meu lado, passando por essa cidade cheia de surpresas rápidas, instantâneas, tão dessa modernidade em que não importam mais os quinze minutos de fama, mas cada cinco da própria vida. E nós perdendo tantos deles, brincando de kart pelas ruas sem pneus de proteção, expostos sob a ilusão do capacete em nossas cabeças, achando que tudo é sério, muito sério, e demanda os meses de espera que o passado mais tarde condena.

07/08/2009

Chuva, avós e amor

Perguntaram-me outro dia, por email, porque guardo tantas lembranças de meu avô. Na verdade, as lembranças que mais guardo são as da minha avó, mas ele vem-lhe atrelado, e posso explicar por que. Um acontecimento de uma noite de tempestade pode dar um pouco essa medida. Para eles talvez não tenha sido feliz, porque afinal tratou-se de um acidente de carro, mas eu lembro-me com aquela espécie de ternura que comove a mais empedernida das pedras.

Foi graças a uma das consultas noturnas de meu avô, num inverno molhado como todos os da minha infância. Uma espécie de tempo como este que não nos largou durante o mês de julho, em que chove, chove e chove, e o único alento é que certamente um dia deixará de chover. Lá, na minha infância, todos os invernos eram assim, com o agravante de que o frio era maior.

Nesse dia, o frio estava cortante e a chuva alfinetante. Lá tocou o telefone, não deveria ser cedo porque já tínhamos jantado. Minha avó anotou o endereço na caderneta, e meu avô bem tentou fingir-se de dormido, que eu percebi pelo canto do olho, abandonando a leitura de um dos livros do Enid Blyton que me acompanharam a infância tanto quanto a chuva.

Mas o dever chama, e encolhendo os ombros, talvez pensando que ainda bem que era longe, daria tempo do mau humor se dissipar, arrastou-se em direção à porta de entrada. Minha avó estava curiosamente animada naquela noite, e lançou um “Ó João... e se nós também fôssemos?”. Eu achei a melhor das ideias, aquele frio, aquela chuva, aquela escuridão, e nós no 2 cavalos do meu avô, chacoalhando como natas a caminho da manteiga. Contente com a indicação aceite, pus casaco, botas e luvas e lá fomos.

As horas de espera na salinha da casa do doente foram a parte menos divertida, porque a luz era pouca e não havia nada para fazer; às vezes os doentes do meu avô tinham crianças em casa, o que era animado, mas não neste caso.

Na volta, a chuva piorara bastante e os relâmpagos assustavam. Meu avô detestava dirigir com chuva forte. Aliás, dirigir não era o maior dos atributos do meu avô, embora o tenha feito até o dia em que morreu, aos 86 anos de idade. A cidade inteira (e não se trata de uma cidade pequena, para os padrões portugueses ao menos) conhecia o citroen vermelho do meu avô, basicamente porque já era o único daquele tipo a existir na cidade. Assim que o viam virando a esquina, os demais motoristas abandonavam a corrente noção de que um “pare” signifique que o sujeito vá de fato parar, ou que uma via preferencial seja entendida como tal por todos os mortais. Aparecia meu avô sacolejando na rotatória da Praça da Rainha, obviamente tendo de parar antes de entrar: quem parava eram todos os demais, dentro da rotatória inclusive, para o deixarem passar, livremente e sem dar por isso, em direção ao cemitério e à visita diária a minha avó. Na Praça da Fruta, a mesma coisa: “Lá vem o Dr. João!”, e logo paravam todos, prontamente. Eu, quando pequena, achava aquilo a maior consideração, embora sumisse quase que para debaixo do banco de vergonha. Já mãe de dois filhos, e acompanhando-o nessas visitas à minha avó já morta, admirava-me com aquela compreensão que fazia com que a cidade inteira, novos e velhos, nascidos lá e enraizados também, entendesse que as leis de trânsito não se faziam para aquele senhor de olhos cinza.

Mas enfim. Nessa noite da chuva, meu avô decidiu passar o volante à minha avó. Decisão sábia, que ela dirigia muito mais cautelosamente do que ele. Parece que a chuva a atrapalhou, e meu avô nervoso, dando indicações que pouco ajudavam, devia obter o mesmo efeito. Eu, no banco de trás, mais calada que um rato, não fossem as sobras serem minhas.

A visão quase nula, e muitos carros em direção contrária. Uma guinada transportou-nos a todos para a berma (adoro essa palavra, sinônimo de acostamento, que não uso há séculos!) e o carro resvalou, quase virando.

Minha avó tinha um problema cardíaco sério, que lhe rendia cuidados constantes por parte de todos; cuidados curiosos, como o de manter uma jarrinha de água com uísque ao lado da cama, para tomar um copinho todas as noites antes de dormir, medida que dizia meu avô ser boa para o coração. (Decidindo cuidar do meu por conta própria, fazia o mesmo de vez em quando, mas acho que nunca ninguém deu por isso.) O susto do meu avô, que poderia ter se transformado em cólera, eu já tinha visto disso e fiquei preocupada, colérico que era, metamorfoseou-se repentinamente num gesto que lhe abriu os braços protetores, fazendo-o lançar-se sobre a minha avó para a afastar do perigo que viesse. Foi tão rápido, e ficaram tão perto um do outro, que os olhos tiveram que fazer um beijo acontecer, tendo-me como única testemunha.

Há pessoas que se sentem desconfortáveis em manifestar (publicamente, pelo menos) o seu carinho e o seu amor, e meus avós estavam dentro desse rol de pessoas. Nesse dia, de um sutil e meigo que quase se perde no meio de toda a chuva, o amor dos dois tornou-se muito palpável, e porque não o era no dia a dia, gravou-se na minha memória, e tornou-me fácil compreender anos depois as saudades absurdas do meu avô, depois que a minha avó morreu.

Lembrei-me de tudo isto hoje, quando fui acordada no meio da madrugada por um telefonema de longe, que me trouxe de volta a voz do amor da minha vida. Agora que o dia amanhece, e eu percebo o quanto os dias se arrastam sem ele a meu lado, percebo-lhe a qualidade simples, inteira e sólida daquele instante de uma noite de chuva e acidente. Com todas as alegrias, dificuldades e promessas que trazem consigo as coisas simples, inteiras e sólidas, porque nunca são, é claro, apenas isso.

04/08/2009

Do latim

A etimologia sempre me interessou. Não necessariamente, ou logo de início, como ciência exata (que não é mesmo) ou como curiosidade histórica, mas mais como oceano de possibilidades e conexões misteriosas e ocultas entre nós e os que estiveram por aqui antes. A própria substância autônoma das palavras, ainda naquele estado de dicionário que lhes acusou Bandeira. Presenças e ausências alfabéticas que criam essas possibilidades de existências além dos nossos olhos.

Descobrir que “confraternizar” tinha uma ligação tão íntima com o perceber no outro um nosso irmão, e por isso é que meros encontros são momentos de alegria e regozijo nos braços da fraternidade, acompanhou-me assim que o latim entrou na minha vida. “Frater meus, alter ego” (meu irmão, outro eu) foi um bom tempo a missiva que circulava entre eu e meus fraternos amigos da altura.

Na verdade, um pouco depois. O latim apareceu-me antes, com uma das minhas tias, a que gostava das línguas mortas e até se parecia já naquele tempo com alguma delas. Aconteceu na voz de um belga morto em 1978, Jacques Brel. Tinha ele musicado a primeira declinação latina (Rosa rosa rosam/Rosae rosae rosa/Rosae rosae rosas/Rosarum rosis rosis
, numa letra da música sem coincidência exata com a declinação clássica), chamando-lhe, por entre isso que era o refrão, de “tango dos que farão a França de amanhã”.

Queria a minha tia introduzir-me dessa forma a todos os casos declinados da língua de Roma, mas eu fiquei-me durante anos na música de Brel, e ela acabou por se frustrar e, segundo disse, “ficas abandonada à própria sorte”. É bom saber que nessa altura nem estava eu ainda alfabetizada, como é que ia me interessar por decorar obscuras declinações latinas sem melodia anexa?

Anos depois, tive a sorte (jamais diria isso naquele tempo, mas enfim...) de ter aulas de latim por algumas das escolas por onde passei do 5º ao 8º ano. Foram vários professores, todos eles homens, creio eu, mas um deles, que aliás era padre, é o que guardei na memória, provavelmente por ser o mais bem humorado e por, ainda por cima, saber “de fato” latim: falava latim. Imagino que por causa dele eu tenha passado por todas essas experiências, frustrantes na sua maioria porque aprender que foi bom, nada - e até hoje goste de latim. Na faculdade nem cheguei a me sentir perseguida pelo querido professor Alceu, que literalmente caçava os alunos pelos corredores e por várias vezes me (nos!) deixou em imensas e quilométricas recuperações de traduções, que eu fazia livremente pelo que me parecia soar, sem grande paciência para descobrir-lhes o caso (e, coincidentemente, o significado) exato. Chegava perto, mas Alceu queria as coisas exatas, e explicadas.

Numa dessas recuperações (isto não vem nada ao caso, foge ao plano inicial desta crônica, que é outro, mas lá vai), decidimos marcar a tal da recuperação na casa dele, talvez já ele estivesse farto das tais das recuperações no campus da faculdade. E lá fui eu, e mais alguém de quem agora não me lembro, porque a figura até que terminou rápido e logo se foi, puro alívio. Eu rabisquei algumas coisas e levantei-me. Fui ficando, que a biblioteca do professor Alceu era respeitável. Encontrei tudo o que devia traduzir no original, em edições antigas; nada que me ajudasse na tarefa em mãos, mas eram livros com aquele tipo de cheiro que traz tudo menos livrarias: traz mãos e toques antigos, horas noturnas sob mesas pouco iluminadas, cigarros acesos e mentes pensando, sussurros ao pensar numa possibilidade, saboreada do único jeito possível - em voz alta. Quando dei por mim, o Alceu estava sentado na sua poltrona, muito feliz de que alguém mexesse naquelas prateleiras. Conversamos tempos e tempos, e quando fui embora já estava de noite, e eu preocupada com as crianças, o jantar, a casa... Quando lá cheguei, descobri que a prova tinha vindo comigo, e esqueci-me dela. Alceu nunca me perguntou por ela, e aquele foi afinal meu último semestre de latim.

A digressão vale-me agora a sensação de que é disso que a vida é feita e é por isso que vale a pena, independente, o Pessoa que me perdoe, do tamanho passível das almas.

Tudo isto para chegar ao que me prendeu hoje, e que na verdade até (reparo agora) tem a ver com esta história do Alceu. A diferença imensa entre as palavras “partilhar” e “compartilhar”. Debato-me com elas há meses, tentando perceber-lhes no meu dia a dia onde mesmo é que se encontram e onde é que enfrentam caminhos distintos.

Senão, vejam.

Não são forças opostas, parece-me a mim, antes energias manifestas de coisas bem distintas. Uma envolve o outro, objeto do partilhamento, na sua dimensão ausente, sem dele nada requerer, um pouco como se ele apenas existisse como as estrelas do céu que não imaginamos nos estejam atentas, apenas nós a elas; é um impulso de dentro pra fora, e o dentro é auto-suficiente; não há nada no fora que se queira ter de volta.

As três ínfimas letras que se juntam ao “partilhar” acomodam esse outro ao nosso lado, confortavelmente (ou não) instalado na poltrona defronte da janela aberta, ouvindo o eco dos silêncios da vida. Incorporam uma outra explicação do mundo, uma outra porta aberta, por onde esse outro se expressa e por isso nos transforma, por isso nos deixa passíveis de sermos um eu melhorado e mais inteiro, por conter aquele outro que até então expectava (se é que tal palavra existe; meu corretor ortográfico aqui diz que não mas eu não vou ao dicionário porque a palavra me agrada quer ele diga que exista, quer não).

Compartilhar implica movimento, disponibilidade, entrega, admiração, encantamento, liberdade, aceitação. Uma forma especial de fluir que se parece com o movimento da água. Invisível, sutil, permeada pelo silêncio do que se move no subsolo, quase sem forma. Compartilhar expande o que se quer na direção do que se descobre.

A energia desse “partilhar-com” abriu-se na minha vida através destas crônicas, atingindo-me em cheio dentro de um movimento que pretendia apenas e tão somente partilhar. Partilho deste lado, um tanto a medo confesso, porque a exposição acontece. E quando menos espero, e no momento exato em que preciso, ouço ou leio alguém que me retorna, que me norteia, que me traz o parâmetro que sozinha não posso ser, e o meu ser inteiro se abre em asas que me transcendem e me movem na direção que não é minha apenas. Recebo esse compartilhar como recebo outros tesouros: com os dedos trêmulos e com os olhos em brilhos de satisfação de ler e reler, e sempre me deixar surpreender pelos milagres que não podemos nunca deixar escapar por entre os dedos.

Acabei de ler aqui num blog a palavra com a qual me vou deitar: “vigiai” – está tudo aqui, diante de nós, e somos nós quem dizemos sim ou não. Sermos solitariamente partilhados ou em graça dividida com-partilhados.

Da origem da escrita

Meu avô, além de ser médico, escrevia. Entre uma consulta e outra, entre um e outro receituário, riscava no caderno que guardava no bolso esquerdo umas quantas linhas, sobre as quais se debruçava nos longos serões perto da lareira, pleno inverno.

Muitas vezes interrompia-se o serão. Lá saía meu avô, a cavalo, precisando correr para acudir ao parto que lhe doava, no final, aqueles dois versos de inexplicável beleza com que nos brindava assim que raiava o sol, no dia seguinte. À mesa do café da manhã, já pronto para sair de novo, repetia-os uma vez e outra, parecendo saborear, junto com a bolacha e o copo de leite quente, cada som, cada palavra.

Minha avó, ao fogão, respondia pelo lado prático: “O leite, João!”, “A hora, João!” “O hospital, João!”. E ouvia sorrindo entre dentes, satisfeita de que a vida assumisse, assim sem querer, um brilho mais límpido, mais transcendente.

Meu avô escrevia crônicas também. Um dia, publicaram-lhe uma. A revista circulou pela família como relíquia, e meu avô, tão feliz, gostava de ler-se uma e outra vez.

As primeiras letras que eu quis decifrar foram as que ele escreveu. E as primeiras que eu escrevi, escritora mirim querendo ser grande, imensa, como os sons das palavras de meu avô, foi a ele a quem mostrei. Olhou-me sério, e embora me dissesse nada entender, eu entendi que tudo ele compreendera. Mas não podia dizer, porque não podia quebrar o segredo das minhas palavras. Sorri-lhe agradecida, cúmplice, e nunca mais parei de escrever.

Meu avô tinha um grande amigo, grande escritor também. Todos os anos o encontrava, porque eram da mesma turma de curso de Medicina, de um tempo que prezava a reunião anual, o confraternizar como irmãos de fato. Uma vez acompanhei meu avô. A esse escritor, vi-o ao longe – quando ele se aproximou, suspendi a respiração, apertei-lhe a mão e, surpresa, constatei que era quente, como a de um mortal comum. Fez-me sentar ao seu lado, e presenteou-me com um de seus livros – eu, pequena do tamanho de pouco mais de 10 anos, pouco entendia do que ele escrevia, numa letra miúda em página inteira, mas na prateleira por cima da minha mesa de trabalho, lá está, luzidio, o volume dos “Diários”, dia sim dia não inspirando as minhas próprias palavras.

Minha avó, enquanto isso, dava-me livros, poemas, receitas, notícias... e muitas outras coisas, mas que eu quase não via, porque não eram escritas. A sua caligrafia miúda, inclinada, desenhada, preenchia meus cadernos com exercícios de escrita que ela corrigia, depois, com paciência e respeito de quem tinha por marido um poeta. Sua caligrafia serviu-me de modelo para subverter, quando a idade o pediu, a caligráfica medida.

Há vários livros em minha estante que acusam a oferta – “Para minha neta, no seu 13o aniversário” ou “A minha neta, em mais um Natal” ou ainda “Do avô querido, ao término de mais um ano escolar”. Guardo-os como testemunhas de um outro tempo, mesmo que já não os leia porque outras leituras agora me aguardam. Mas assim que adoeço, que preciso deitar-me, que a saudade de ser pequena e cuidada sacode a minha alma, é a eles a quem recorro: sinto-lhes o cheiro, releio-lhes as rugas, volto a ser aquela que fui e que permitiu ser a que sou.

Numa dessas ocasiões de oferta, o mal-estar instalou-se entre meus avós. Na hora do almoço, chegada eu da escola, molhada em dia de chuva e longa caminhada, chegado meu avô do consultório, sacolejando em seu vermelho citroen dois cavalos, lá estava um embrulho na mesa, de laço amarelo, papel encerado de uma cor só. Meu avô de olhos brilhantes e minha avó já desconfiada.

- Sim, está bem, João, mas antes vamos sentar e almoçar.

Ninguém discutiu a norma, e lá nos sentamos os três à grande mesa órfã dos muitos filhos destes avós. Imensa nesses dias, parecia encolher-se na Páscoa, ou no aniversário festivo da minha avó, dia 15 de Agosto, dia também de tourada, para horror da pobre senhora a quem horrorizava essa trágica tradição. Mas agora lá estávamos os três – e o pacotinho embrulhado, piscando o tempo todo, entre uma garfada de purê de batatas e um pedaço de frango. O garfo interrompia o caminho do prato à boca e lá se ouvia minha avó:

- Ande, menina, coma.

Meu avô olhava de rabo de olho, e pedia um pouco mais disto, um pouco mais daquilo. Resmungava contra a dieta que ele próprio se impusera, cuidando do coração e do colesterol – ...”ah, que saudades do pernil, lembra Ofélia?” ou “Ih, que vontade de um bifinho empanado...” – e o tempo da refeição se passava sem que o frango grelhado e o purê de batatas recebessem qualquer elogio.

Ninguém tomava café, por isso foi só a pera cozida da sobremesa (“maldita dieta!”) e logo o passar rápido de mão à procura da ponta da fita para desembrulhar o que eu já sabia, claro, só podia ser um livro. Assim que o abri, vi logo que era uma edição para gente da minha idade – “O clube da Karla”, numa capa vistosa e com desenhos que, se não primavam pelo bom gosto, certamente chamavam a atenção e despertavam o interesse de uma menina de mais de 10 e menos de 13 anos.

Minha avó, assim que passou os olhos pela capa, leu o título e viu os tais desenhos, não se conteve:

- Ó João, mas... tu leste? Folheaste? É sobre...? Eu não estou a gostar disto...

- Ora, Ofélia, olha lá o título da coleção: “Mestres infanto-juvenis” – o que é que eu preciso ler?

Minha avó arregalava os olhos: - João, parece que não sabes o mundo como está, cheio de malandragem, a levar as crianças para os piores caminhos?

E meu avô encolhia os ombros e sentava-se em sua cadeira, disposto a desfrutar a sua sesta cotidiana. E eu tentando ler o livro, pôr-lhe as mãos de novo – mas quem disse que minha avó o largava?!

O telefone tocou. Minha avó, telefonista de plantão daquele que fora o primeiro médico rural a instalar-se na região, caneta a postos, disposta a anotar o endereço do chamado. O suspiro de meu avô fez-se ouvir assim que deu com os olhos no papel – lugar longe, de acesso difícil de terra e cascalho, ainda mais nesses dias de chuva e frio...

- Ofélia, eu vou a cavalo. E a menina, se quiser, que venha também.

A contra-gosto, e sem meu livro novo, lá fui, no fundo feliz porque não era sempre que podia acompanhá-lo nessas visitas.

O lombo do Trovão era tão grande que servia aos dois, avô e neta. Na minha imaginação ele corria ligeiro, saltava pontes e cercas caídas, galopava com as crinas ao vento pelos campos afora, e até mesmo uma lua cheia iluminava as curvas e escondia o depois delas, embora fosse dia claro. Mas na realidade ele pouco galopava, muito menos saltava, limitando-se a um trote muitas vezes incômodo, mas seguro, e a uma paciência sem fim para longas esperas à porta do doente.

Seu Custódio estava de cama, com um aspecto sofrido, mas nunca soube que doença o atacava. Sei que meu avô, com sua maleta na mão, entrou pela porta estreita da casinha e lá ficou duas, três, quatro horas, saindo suado e cansado e deixando seu Custódio aliviado e devedor (“Pagar, senhor Custódio? O senhor há de pagar-me lá por volta do Natal, com um de seus perus!”). O caminho de volta, mais silencioso e mais escuro, via as sombras da noite aproximarem-se. Anoitecia cedo, naquela época do ano, e o vale onde se encontrava a casinha do senhor Custódio era tão fundo, mas tão fundo, que certamente anoitecia lá antes do que em qualquer outro lugar do mundo. Cães latiam aqui e ali, e as luzes do poente iluminavam o céu. O ombro do meu avô deixava-me às vezes ver a estrada adiante, conforme o trote do Trovão permitia. Mas a paisagem a ambos os lados era suficiente para encher-me os olhos. A cada casinha, perguntava-me quem a habitaria, e muitas vezes o descobria, porque à janela lá assomava a senhora Vicenta, a senhora Elisa, a menina Maria, que o meu avô cumprimentava com um aceno de cabeça, um gesto de uma das mãos ou um “boa tarde!” às que lhe acenavam.

Meu avô era conhecido de todos – e não é força de expressão. Como único médico do lugar durante anos, e mesmo depois da chegada de outros, único que ainda fazia visitas na região rural onde só se chegava a cavalo, a qualquer hora do dia ou da noite, era querido pelos tantos que já ajudara: mulheres em trabalho de parto, homens com crise de gota, crianças com difteria.

Ao chegar a casa, entrando pelo amplo portão recém pintado de azul, encontramos minha avó à porta, feliz e sorridente. Foi conosco até à baia do Trovão, ajudou a tirar-lhe os arreios e ficou encostada às madeiras fortes da armação do estábulo enquanto meu avô passava uma rápida escova pelos flancos do animal. Água fresca à vontade e uma braçada de feno, que eu fui buscar, e lá voltamos para casa, quase já noite escura.

A porta da cozinha estava entreaberta, e um cheiro de bolo de laranja fugia pela fresta, vindo encontrar-nos a meio do caminho. Assim que chegamos e abrimos a porta, minha avó foi até à sala e de lá voltou com uma mão atrás das costas e um sorriso nos lábios. Chegou perto de mim, esfregou-me a cabeça como sempre fazia com a mão à vista e apresentou a outra, dentro dela o “Clube da Karla”. Tranquila e segura, disse-me que certamente eu ia gostar, e que era uma pena que fizessem capas tão feias para livros interessantes. Agarrei-me ao livro e a um pedaço de bolo de laranja e comecei ali mesmo a mergulhar no clube dessa menina, apaixonada como eu por livros e que, parecia, também tinha uma avó atenta e carinhosa.

Meu avô adorou a novidade do bolo, embora reclamasse que “Mas sem cobertura?! Ora mas que chatice...”. Afundada no sofá verde da sala, vi-o ir buscar o seu livro de poemas e sentar-se em sua cadeira favorita. Minha avó já tinha sua leitura entre mãos, que eu reparei ser também de poesia. O silêncio instalou-se, permeando mais um fim de dia, que se mantém intacto, e vem à tona quando o mundo vem buscar-me e não me encontra pronta.

02/08/2009

Sonhos

Acordei no meio da noite passada, acho que graças a um sonho que há muito tempo eu não tinha: acordo de repente e não sei onde estou. Literalmente – acordo do sonho e olho em volta e não reconheço nada do que me rodeia. Ou de repente até sei, variante da versão dominante deste sonho, mas tenho certeza de que não é o lugar onde devia estar. Se alguém desse lado leitor puder ajudar-me a interpretar estes sonhos, eu agradeço, porque (já faz tempo, mas) cheguei ao limite de acordar e não saber, durante bastante tempo, em que casa estava e com quem dormia.

Já me disseram que pode ser uma crise de sonambulismo, mas eu sei distinguir uma da outra, e percebo claramente que estou acordada, só não faço ideia de onde esteja. Num passado típico de adolescente, tive vários episódios de sonambulismo, daqueles que rendem boas anedotas para entreter tios e tias à mesa do jantar. As do meu pai, entretanto, sempre superaram as minhas, porque ele, já longe da adolescência, continuava sonâmbulo, atividade pouco adequada à sua vida diplomata. Num de seus acessos, que eram cíclicos e quando chegavam duravam alguns dias, estava ele em algum hotel de algum país. Acordou de manhãzinha, enroscado em si mesmo diante das portas dos elevadores do saguão do hotel, com o time de recepção de plantão à sua roda, pasmo, olhando aquele senhor de pijama xadrez roncando suavemente no tapete do hotel. O episódio garantiu-lhe uma popularidade invejável durante a conferência de turismo da qual participava, e foi notícia nos jornais da cidade. Bem humorado como era, divertiu-se às pampas com o fato.

Este sonho que me acorda hoje é daquele gênero que já me preocupa – nunca vem sozinho, prolonga-se por várias noites, e tende a um crescendo de intensidade que com certeza me garantirá horas e horas de insônia, metade delas à cata de explicação. Há dois tipos de insônia na minha vida: um, produtivo, em que me levanto e decido o almoço, a arrumação da gaveta, a solução para o problema poético que não se resolvia há semanas, a lista de compras que esquecerei ao entrar no carro, a organização das aulas da semana; outro, desgastante, que me faz rolar na cama com receio de adormecer de novo e certeza de devê-lo fazer, uma idiota sensação embutida de que a noite obedece às minhas vontades, e assim por ali fico horas de olhos fechados à força, sem conseguir dormir.

Este é o sonho que, por excelência, faz com que eu me vista com o segundo tipo. Imagino que seja porque parece que vivo em vez de sonhar; para sair do sonho, preciso levantar-me, ir até à cozinha, dar tempo à minha consciência de se refazer do lugar de onde vem. Aliás, não vem: cai, de tão abrupta que é a chegada. E logo decido voltar para a cama, rio sem jeito para mim mesma no espelho do corredor, balanço a cabeça num querer me convencer da grande bobagem de tudo isso. Mas é só me deitar, e me desconvenço, e a solução é tentar compartilhar a insônia com quem dorme a meu lado, e tem a santa índole de dizer que sim, que é verdade, ou não, como você quiser, agora deita aqui e dorme que ainda é cedo.

Divagações a propósito de um vinho

Pode ser que seja influência de meus compatriotas, mas tenho por vezes a impressão de que o vinho não pertence ao mundo dos vivos. Como se uma garrafa pudesse conter essência e alma de quem a produz e a olha crescer e desenvolver-se dia a dia, e por isso pode perceber-lhe as virtudes com mais propriedade. A nós, que a compramos deste lado, resta-nos desfrutar seu conteúdo, e quem sabe retirar-lhe algumas conclusões que tornem mais suportável a passagem dos dias e dos sentimentos que se arrastam.

Quando eu era pequena, e isso durou vários anos difíceis de chegarem ao fim, passei muitas horas na companhia de quem entendia, discutia e sobretudo gostava e bebia vinho, enquanto se conversavam veladamente coisas das quais não se podia falar em voz alta. Uma espécie de religião, cercada de rituais e de pode-não-pode-fazeres misteriosos e inexplicáveis. Como aquelas coisas que às vezes temos a sorte que nos transcendam e nos transformem em melhores pessoas, por nos despertarem aquilo que de mais poderoso existe em nós.

Servi por várias vezes de álibi a meu pai, nas suas saídas noturnas e na vida boêmia de quem gostava das horas em que o sol descansava, e em muitas me presenteou com o papel de guia na escolha de um vinho. Eu intuía que aquilo era uma coisa importante, e só mesmo por ser pequena é que aceitava a incumbência. Hoje, recusaria com certeza, pela consciência de ser, de longe, a mais despreparada para a missão.

Primeira boite, (de nome “Inferno D’Azenha”), primeira casa de fados, primeira noite de blues: a necessidade do álibi alheio rendeu-me boas descobertas, a salvo porque com meu pai ao lado. Dentre elas, o vinho - embora se bebesse em casa, na forma de quase-remédio, transformado em beberagens que meu avô às vezes preparava para cuidar-me dos pulmões, que nunca foram famosos. Mas algumas descobertas só vieram mesmo foi com os copos fora de casa.

Por entre as experiências etílicas que meu pai me proporcionou, não cheguei a perceber muito bem a real dimensão do meu paladar. Lembro-me de uma noite, numa casa de fados em Lisboa, de um fadista célebre nos receber com um “lá vem a menina aninhas com a sua garganta de ouro”. Eu achei na altura que teria alguma coisa a ver com o fado que inevitavelmente lá cantaria, empurrada por meu pai, mas hoje desconfio que talvez ele se referisse à brincadeira de me fazerem procurar traços de amargor nos vinhos enquanto se decidiam a qual beber. Entre umas e outras, alguma coisa devo ter aprendido, e o exercício de memória evoca uma pluralidade de sentidos que, a esta hora tardia, me fará adormecer melhor se lhes der livre curso nesta crônica.

Há certos vinhos que não caem, antes despencam em pleno estômago, e somente no dia seguinte lhes percebemos o desastre. Se estivermos atentos ao primeiro gole, ensinava-me meu pai, saberemos parar e escolher o certo, não para abrir mão da dormência, mas para nos livrarmos do mal estar no dia depois. Há vinhos, apenas levemente ácidos, que destroem, assim que nele batem, o palato, que atingem as mucosas ainda da boca e só depois disparam os alarmes do resto do sistema digestivo. A esses vinhos, há que ter-lhes respeito, aprender a pressenti-los e deixá-los longe, poupar o fígado. Depois deles, às vezes é difícil distinguir outros, porque pelo menos a mim deixam-me a boca anestesiada e insensível à sutileza de uma casta de uvas bem dosada na sua fermentação. A isso juntava-se frequentemente um “ouve lá: se beberes vinho não te esqueças dos copos d’água, pra digerires melhor os taninos”. E pouco mais, porque esses ensinamentos não se fizeram de palavras.

Em noites como as de hoje, em que de repente provas de vinho acontecem sem nem terem sido imaginadas, absorve-me uma saudade terrível desses dias de álibi de meu pai, como se essa fosse a mais poderosa lembrança da sua existência. Não saberia beber sem ele, e não saberia parar sem ele. A sua alegria se (e somente se) o tema fosse sair de casa ou juntar nela as pessoas alheias ao dia a dia, apodera-se de mim após anos; durante muito tempo foi assim que nos percebemos, divididos entre a delicada fragilidade do reconhecer a sua melhor parte no outro e o peso de precisar dividir o mundo em certos e errados que acabaram por nos afastar ao longo de toda a vida.

O mundo foi sempre a nossa porta de contato, e sempre que saio, que me entrego ao que só a noite proporciona, porque a meia luz torna possível, e nada mais é tão óbvio e límpido quanto o quer a luz do sol, com todas as suas virtudes, faço-o com um olho e um pensamento nele, e assim ele vai comigo, ainda que já se tenha ido. Essa é a herança que usufruo.

Minha viagem por esta vida com meu pai não foi fácil, mas ensinou-me coisas básicas que normalmente não se aprendem: como abrir uma garrafa sem que o chumbo do material que envolve o gargalo contamine o vinho; como beber o primeiro gole para que ele se abra persistente contra o céu da boca; como fazer para ver e ouvir, com olhos nem abertos nem fechados, o que está escondido por trás dos líquidos; como desfrutar de um jantar, uma festa, um encontro, horas antes que aconteça. Pensar em quem atravessará a porta, e por isso preparar assim a mesa, por isso mudar as cadeiras de lugar, por isso fazer as compras e cuidar dos pratos, por isso conseguir as flores e acender as velas, por isso ter tudo pronto uma hora antes do horário combinado, para poder imaginar os encontros antes deles se fazerem. Poder dançar na liberdade da casa ainda vazia, mas por pouco tempo. Desfrutar sermos nós próprios antes de nos despedirmos dos nossos desejos e vontades, para que imperem soberanos os dos outros, que entretanto chegam.

Muitas dessas pequenas coisas invento-as sozinha, até porque a parte da cozinha não era da responsabilidade do meu pai; mas é um espírito que se instala no ato de receber, uma espécie de alegria incontida que não acontece tanto no momento do encontro quanto no gozo da sua antecipação.

Gostaria de tê-lo tido ao meu lado nesta noite, conduzindo meus tortuosos passos, vendo-me repetir vigilante o que o vi fazendo em mim tantas e tantas vezes, guiando-me a mão nos trajetos e segurando-a no ar para que nada se quebre nem se desfaça, sejam vidros sejam outras coisas. Espero ter podido estar em mim com a mesma dose de atenção e amor (hoje sei) sinceros que ele me dedicou em tantas rolhas arrancadas. Espero que a sua sombra, que me acompanha insone nestas horas que lhe são perfeitas porque cálidas e tardias, eu consiga ser-lhe fiel na busca do que é, e não do que parece. E que os demais, ao meu lado, possam aproveitar-se dessa sensação de beatitude com que ele contagiava o mundo à sua volta nesses momentos.

Um vinho, dizia-me ele, é como uma casa que só aos poucos se torna nossa. Não basta experimentar um gole, de maneira fortuita e sem lhe prestar a atenção que merece. É preciso, como a um ser humano, oferecer-lhe dedicação sincera, acompanhá-lo uma e outra vez em sua viagem dentro de nós, refazer seu caminho, convidá-lo a nova visita, estar atento, pretender que não seja apenas o eu, mas também o ele. Uma amizade e um conhecimento de um vinho não são momentos à toa, acontecimentos banais, coisas que possamos deitar fora e pôr-nos a andar.

Um vinho é como um amor nascido, uma alga que se agarra às nossas pernas quando queremos sair do mar, uma música que queremos ouvir mas nos toma tempo encontrar. Como com os homens, um vinho demanda respiração pausada para observar antes de agir, num longe constante. Pede que se fechem os olhos no instante em que escorrega úmido pela garganta e nos suspende expectante os sentidos. Espera que se entreguem um ao outro o corpo e a alma, e que ambos se naveguem nas possibilidades do desconhecido.

Se conseguimos, se nos abrimos, se nos permitimos e nos revelamos mais verdadeiros a nós mesmos, o vinho surpreende-nos com a sua delicadeza, seu toque macio, seu sorriso vermelho escondido por trás do translúcido de vidro. Se nos entregamos, e nos deixamos permear, podemos até fugir, dizer que não, que não queremos, que vamos continuar com nossas velhas escolhas, com a nossa antiga e paciente felicidade. Podemos sonegar-nos novidades ao paladar, impedir a proximidade do vazio, do vácuo preenchido por esse tipo de vinho que chega e nos engole, de tão poderoso. Mas a um passo do abismo paramos, e assim caminhamos com as mãos e os pés atados, perseguindo as videiras da nossa sepultura.

Quando espalhei as cinzas de meu pai, sob o céu da cidade que ele mais amou entre todas as que habitou, além da sua música preferida, havia uma garrafa do seu vinho predileto, a melhor safra das melhores uvas do centro de Portugal. O bouquet esvaiu-se no ar com mais rapidez do que de costume, tive a impressão, quando a rolha foi puxada. Como se algo se libertasse e lhe desocupasse as cinzas da vida terminada, e ele pudesse preparar-se em paz. E nós pudéssemos ficar apenas com as boas lembranças, como essas de uma noite entre amigos, que o fazem retornar na sua melhor e mais perfeita forma, tão fora do mundo dos vivos quanto as garrafas que foram abertas ao longo da noite.

Confissão de fim de julho

Posso agora confessar, terminado o mês de julho, que nada mais fiz, para escrever as 16 crônicas deste mês, do que seguir os conselhos do organizado e ortodoxo Saramago. No aconselhamento que fez (e não só a mim, esclareço, que eram vários os pomposos “jovens escritores portugueses”, para que ninguém pense que posso me dar ao luxo de manter alguma espécie individual de correspondência com um prêmio nobel), contou do seu próprio processo de escrita. A sua sólida formação comunista (que imagino austera, circunspecta e metódica), rendeu-lhe uma disciplina que ele aplica há anos à sua própria produção: todos os dias, um x de páginas, à mesma hora, no mesmo local, 365 dias ao ano. É assim que ele melhor produz, a sua maneira de escrita. Há ainda alguns detalhes sobre a vista da janela, a posição da mesa, o instrumento de escrita etc., que não vêm ao caso porque não estavam dentre os conselhos dados que me pareceram relevantes. Já o da meta da quantidade, sim. O básico, mesmo, eram as x páginas por dia, sobre qualquer coisa, que poderia depois ser (ou não) lapidada, recortada, cortada, acrescentada, mexida, eliminada, reconstruída, multifacetada, fundida etc etc etc.

Eu juntei esses conselhos a outros que li, uns que Manuel Bandeira deu a seu tempo a João Cabral, dizendo que o que escrevemos é pra ser lido, senão pra que é que é escrito, faça o favor de publicar seus poemas. Alguém mais já disse a mesma coisa, mas minha memória que se sabe fraca esqueceu. E eu posso esquecer mesmo, porque isso faz todo o sentido do mundo, e é a mais pura verdade. As teorias literárias da recepção e do discurso estão todas aí dizendo igual.

Confesso, portanto, que nada mais fiz este mês do que seguir os conselhos do amigo Saramago, e por isso a avalanche de crônicas neste alobairro, vítima perfeita dos meus ataques (um tanto obsessivos, disse-me alguém antes de viajar para as terras do meu amigo Abdib) escriturescos. Juntei ainda uma outra, e com ela fiz algumas experiências, que ainda preciso digerir sem somatizar: não ler. Não ler nada. Para quem começou o caminho pela limpeza de uma biblioteca, não deixa de ser curioso. Mas o fato é que, comparado a todos os meus julhos desde que fui alfabetizada, neste eu não li praticamente nada, fazendo-me virgem para a minha própria escrita.

O saldo, para mim, é positivo: a escrita brota agora absurdamente loquaz; os assuntos de hoje ligam-se poderosamente a outros do passado; transformo meus demônios todos em matéria digerível; decomponho todas as minhas neuroses; afino um pouco das minhas frustrações (aliviá-las acontece melhor em verso); falo de outros sem falar deles; tenho imensa ocupação nas minhas noites de insônia (acordo com 2,3 4, ideias para crônicas na cabeça e não durmo mais com medo de perdê-las; escrevo-as e adormeço placidamente); e descobri que um que escreve tem o poder de acordar os outros na escrita. E essa é com certeza a melhor parte, se eu tivesse de escolher uma delas. Como não tenho, fico-me com todas.

Agora, vida normal de volta ao campo de visão, pergunto-me como farei. Não posso (ou não quero?) perder o que conquistei, mas precisarei mudar tudo aquilo que gerei pós-conselhos saramaguísticos, e que agora identifico como o positivo do saldo, talvez erroneamente, mas é o que consigo hoje. Os horários não poderão mais ser os mesmos, aliás eu serei ainda menos dona do meu tempo, mesmo que pareça o contrário. Como farei para encontrar esse estado mental parecido ao vácuo, em que permito que o passado, o presente, os demônios, as confissões, as palavras, as insônias todas, não só as da noite, se encontrem e se amalgamem? Como conseguirei que nesse movimento me reconstruam a cada encontro, espécie estranha de auto-terapia que se parece com o que uma amiga querida chama de “strip-tease da alma”? E, por outro lado, como farei para não o fazer? Como é que vou conseguir fechar os olhos e decidir que isso que se apresenta como caminho fique à espera, num standby de luz vermelha que aumenta o gasto de luz sem de verdade iluminar nada? E só ficar à espera?!

Confesso que tudo isso hoje me atormenta, mas a simples menção ao tormento, aqui, alivia-me dos meses que se avizinham volumosos. Não resolve, apenas alivia, mas assim posso ainda dormir um pouco, antes que amanheça. Hei de perguntar ao Saramago como é que ele faz para resolver as suas crises de inadequação ao mundo.