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28/12/2010

2011 resistente ou resiliente?

Esta crônica estava engavetada há meses. Quis escrever algo sobre essas duas atitudes que dão título a estas linhas, sem perceber que na verdade a sua vocação era fazerem-se texto conforme se aproximasse 2011. Agora que já cheguei ao final do que queria escrever, e apenas volto aqui em cima para introduzir o tema de forma menos enervante que o parágrafo que se segue, sei perfeitamente qual era mesmo a minha questão com essas palavrinhas.

“Resiliência” virou moda - muitos usam e nem todos conseguem exatamente explicar do que se trata. “Capacidade de adaptação”, disseram-me outro dia. Quase lá, a julgar pelo Aurélio roído de traças daqui de casa: com alguma relação escondida, resiliência tanto é a “resistência ao choque” quanto “a propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora de uma deformação elástica”. Do campo da física, e do inglês por assimilação saxônica, a palavra migrou para a psicologia, e de lá para o campo da educação - é só procurar no google que logo aparecem muitos e muitos links que remetem ao conceito.

Para tornar-se conceito, de fato, é preciso que muitos usem uma determinada palavra, sobretudo quando esta se desloca de um campo do conhecimento a outro, passando a ser necessário estabelecer algum parâmetro mínimo comum, criando um repertório que nos permita a troca de ideias. Mecanismo básico da comunicação eficiente. Ainda assim, não resolve a situação, até porque nem o Aurélio, conceituador mor por definição, dá conta de explicar o que vem a ser a resiliência fora do espectro da física. De qualquer forma, ser resiliente tornou-se uma qualidade, senão uma competência, que os educadores devem desenvolver – parece garantia de sobrevivência, mesmo que não se saiba exatamente do que se trata.

Eu achava (antes de escrever esta crônica e ler um pouco sobre o assunto, na ordem inversa já se vê) que tinha um tanto de qualidades resilientes. Imaginava que, quando permitida minha forma original, devolvia de boa vontade toda a energia represada. Como se um movimento de equilíbrio de forças yang e yin, adequado aliás a nosso século de instabilidades climáticas e emocionais. Só não chegava a ver com grande clareza a quem devolver essa energia contida, e que muitas vezes nada tem de agradável: ao agente da minha deformação? A quem assistia a tal deformação e nada dizia? Ou a quem nem deformava, nem assistia, mas permitia? Talvez quem sabe aos recantos que ficaram em mim quase mortos por inanição, enquanto partes de mim deformadas se ocupavam por vontade e imposição alheia em reter a energia que lhes pertencia? Discussão interna desnecessária, como se verá.

O tal “resistir ao choque” adapta-se aqui de forma no mínimo canhestra: resiliência seria então a propriedade de devolver a energia que estava travada, seja lá a quem de direito, mas também “resistir ao choque”? Estando comprimido, resistir ao choque? Apesar de contido, apertado, deformado: resistir ao choque? Resistir. Seria mais fácil, se fácil assim fosse, falar de “resistência” e desistir dos empréstimos ao campo da física.
Resistência está ligada à ideia de oposição, de suportar algo que não agrada. Resiliência pressupõe o desenvolvimento de sete capacidades, e já se vê que só por isso é conceito mais elaborado e abrangente. Longe de incorporar a ideia de oposição, o ser resiliente é aquele que 1) administra suas emoções (ou seja, mantém-se sereno em situações de estresse); 2) controla seus impulsos (ou, em outras palavras, auto-regula as suas emoções); 3) é otimista (acredita que tudo pode mudar para melhor); 4) analisa o ambiente e assim evita colocar-se em situações de risco; 5) é empático, ajustando as suas atitudes a partir daquilo que percebe das emoções alheias; 6) é auto-eficiente (acredita ser capaz de resolver os próprios problemas com aquilo que tem ao seu dispor); e 7) sabe relacionar-se e criar vínculos com outras pessoas, sem receio e sem medo de fracassar. Não tive problemas em reconhecer a quantidade de lacunas nas minhas capacidades resilientes...

Isto de escarafunchar o meio das palavras é uma verdadeira lição de vida, tinha razão Isidoro de Sevilha (hei de contar-vos sobre ele um destes dias). Olhar para dentro delas, para o fora que se tornou história, para os caminhos que tomaram enquanto aprendiam a andar e começavam a falar, para a sua ressonância em meus ouvidos e em minha alma. Escrevo-as de várias formas, encontro-lhes significados ocultos, cabalas imensas a bailarem diante de mim ainda que nada delas entenda – encantam-me. Só por brincar com elas, as palavras, sei o que desejo a todos neste 2011:  a intenção firme de resistir (portanto não ceder, portanto defender-se, portanto fazer frente) aos choques que venham na direção de cada um. E assim que passarem (e passarão assim que o novo ano avançar, sou otimista afinal porque sou pelo menos um pouco resiliente), que todos devolvam a si próprios a energia que outros desperdiçaram, enquanto se dedicavam a oprimir, comprimir, apertar, deformar o que foi feito para viver livre, solto e em paz.

21/11/2010

Do intraduzível

Traduzir tem variadas utilidades. Mesmo que às vezes seja possível ligar uma espécie de piloto automático, na maioria é indispensável parar, absorver, ler de novo, apoiar-se quem sabe no dicionário de sinônimos abandonado na prateleira lá de cima. Nem sempre é fácil encontrar a palavra certa, a tradução exata. Quando o texto é técnico, vá lá, mas quando tende ao literário, ao fazer-se arte através da palavra, fica difícil passar adiante.

Há textos em que se aprendem coisas novas. As descobertas por vezes ocupam tanto espaço que é fácil esquecer o que era mesmo que se fazia - tentar ganhar a vida traduzindo. Usa-se o tempo para divagações sem fim, técnica da qual este texto é um bom exemplo, indiferente aos arquivos que se acumulam na caixa de “a traduzir”.

Alguns (muitos) anos atrás, fiz algumas traduções para a revista Casa & Jardim. Alguns artigos sobre paisagismo, algo sobre reciclagem já naquela época, linguagem coloquial fluente, fácil de entender e de traduzir. Numa das matérias, sobre flores (estava a primavera por perto), apareceu-me um “pensée sauvage” pela frente, que eu demorei um tempo a desenvolver dentro de mim. Digo desenvolver, porque algumas palavras desenvolvem-se, desenovelam-se, criam algo parecido com uma raiz dentro de nós antes de se lançarem na língua para a qual se pretendem traduzidas. Essa foi uma delas – gostei da sonoridade, da ideia de “pensamento selvagem” que com certeza não seria a tradução correta para os futuros leitores jardineiros... Fui à procura de quem entendia. Cheguei ao nosso “amor perfeito”, que é a tal flor, nomeada na nossa língua. Essa descoberta tomou-me é claro ainda mais tempo - fiquei encantada com a possibilidade de que o que para nós é um amor perfeito para um francês seja um pensamento selvagem. Pensem um segundo – é de ficar muito tempo pensando!

Há ainda aqueles textos em que as palavras são completamente e de fato intraduzíveis. Quando isso acontece, há duas possibilidades: ou o autor não soube mesmo se expressar direito (e você que dê seus pulos para entender o que ele mesmo parece não ter entendido que queria dizer), ou soube expressar-se tão bem que chega a se materializar ao seu lado e você imobilizado pelo terrível que soa qualquer escolha – querendo ou não, sempre se perde.

No fundo, no fundo, não há grandes diferenças entre traduzir e sentir. Há os sentimentos que entram no automático: não se pensa muito neles, fazem parte, aí estão. Há os que nos dão um susto – e ainda ocupam tempo, espaço, energia, dão-nos voltas e voltas e demoram a sair de nós com autonomia. São pensamentos selvagens vestidos com as roupas dos amores perfeitos.

E há os intraduzíveis, divididos também naquelas duas possibilidades: aqueles que não se explicaram e aqueles que, por meios incomuns, se explicaram tão bem que nos imobilizam. Esses, palpitam ao nosso lado, às vezes com força, outras apenas insistentemente. Somente roçam a nossa pele e deslizam os olhos pelos contornos da nossa sombra. Ainda não encontrei outra solução a não ser respirar e entrar num outro estado. Metros acima deste nosso, caracterizado pela força da gravidade, vibram com a leveza de um arco, entram e saem de nós sem portas e sem travessas, fluem por entre as nossas células como vento que nos atravessasse sem criar cadáveres. A esses intraduzíveis sentimentos, como com as palavras, imagino um dia encontrar-lhes a tradução perfeita, o espaço exato, e por isso esforço-me em guardá-los onde nada em mim os atinja, para que, quando possam, me atravessem com a simplicidade de um pássaro liberto.

16/10/2010

Entre Uche e eu

Hoje parece um daqueles dias que não querem corresponder-se comigo nesta língua que falo – por isso, talvez, meu amigo Uche venha em meu socorro. Conheço-o há poucos meses, e nosso encontro reveste-se de muitas das palavras da sua língua, o igbo, porque foi por causa dela que cheguei até seu endereço de skype. Faço-lhe imensas perguntas, tudo quero saber, e, a certo momento, Uche sugere que eu faça o curso de igbo online que um amigo dele desenvolveu. Decido parar de perguntar, talvez o aborreça, penso, e seja uma maneira educada que usa para me dispensar o resto das perguntas. Agrega que isso seria bom, claro, antes de viajar para seu país, como se fosse algo simples e óbvio de acontecer na minha vida, tanto aprender o igbo quanto ir passear à Nigéria... Continuo interessada na língua, mas já aprendê-la, não sei, o igbo é uma língua tonal, e línguas tonais são um desafio à parte, mesmo sendo maioria entre todas as que fala a humanidade. (Por exemplo, o chinês: usa a mesma construção, Wo yao mai yi bai bao, por exemplo, para dizer coisas tão distintas quanto “eu quero comprar um leopardo branco” ou “eu quero vender cem castelos”. A diferença está na entonação que se dá a cada palavra. Para nós, que fazemos parte da humanidade falante de línguas não-tonais, não é muito fácil.)

Uche vive nos Estados Unidos. Nasceu no sudeste da Nigéria, região que muitos de nós lembraremos melhor pelo nome de Biafra. Uche é o único sobrevivente de uma grande família, despedaçada pelo genocídio ímpar que presenciou. É só isso que me escreve, e eu quase posso tocar a espessura quente desse silêncio impenetrável em que ficamos. Retorno inevitavelmente às imagens que chocaram o mundo na década de 70, e me fizeram querer atravessar o estreito de Gibraltar a nado que fosse, como se tivesse o poder de mudar alguma coisa. Sei que seu silêncio me adverte do incômodo de saber que os outros sabem de nós e nos reconhecem apenas pelas atrocidades, os descalabros, as infâmias. Por isso, nada lhe digo do que me passa pelos olhos quando ele diz “Biafra”. A minha ignorância é obviamente imensa e tão densa quanto este silêncio que se fez.

A comunicação à distância é um perigo para palavras esparsas – e o Uche usa poucas palavras. Quando lhe sugiro que talvez pudéssemos conversar com câmera e microfone, ou ao menos microfone, tanta vontade tenho de ouvir a sua voz modulando os sons do igbo, diz-me que não, que não gosta que o vejam ou ouçam à distância.

Demoro para lhe responder qualquer coisa, porque também eu não gosto que me vejam à distância, antes prefiro a proximidade táctil, o calor da pele, os olhos dentro dos olhos. Preocupado com o meu silêncio, digita com lentidão, escrevendo e apagando muitas vezes, como se pensasse e pensasse e pensasse, sem saber que a máquina trai aos meus olhos o seu pensar. Aos poucos, posso ler: “se escrevemos sem nos vermos, é como se estivéssemos mais perto, tal é o poder da palavra”. E de fato é a palavra que me leva até ele e me traz a sua pessoa, que nunca verei realmente como posso ver através das palavras que escolhe, creio que algumas a medo, com receio de ser mal interpretado. Pensa em sua própria língua, imagino, parece procurar o tom correto no agreste e gutural saxônico.

O que mais me aproxima de Uche é que ele escreve pelos mesmos básicos motivos que eu: sobrevive à custa de palavras ao peso do pior dos dias, revigora-se da decepção do alheio com cada letra que desenha no espaço aberto da escrita, o único verdadeiramente livre que ocupa na vida. Descubro, através do Uche que me escreve, que é a consciência de cada letra que escrevo que me faz gostar de escrever – porque diz-se muito mais do que se diz ao falar, porque a letra que se desenha sobrevive à voz que morre, porque é um buscar da eternidade, da verdade, do outro em nós.

Ao longo dos dias, o Biafra que me habita incorporou a imagem deste Uche feito só de palavras escritas, sem som, sem imagem, experiência de língua pura ao longo de compridas e simples madrugadas. Esse meu Biafra particular ficou maior e mais luminoso, como se uma entonação diferente o emoldurasse, que não ouço com os ouvidos de sempre. Mesmo mantendo a fome, o descaso, a indiferença, a agonia lenta, em algum lugar as  coisas brilham.

22/09/2010

Ócio ósseo


Talvez todas as minhas últimas questões ósseas sejam apenas um alerta da minha necessidade de ócio. Tendo a me divertir trabalhando, o que, vistas bem as coisas, não deve estar totalmente certo. Senão, não estariam estes ossos quebrados me alentando a sentar-me diante da televisão para, ociosamente, assistir algum dos excelentes filmes com que meu companheiro cinéfilo me inunda, embora ressentido de que raramente consiga eu assistir a algum deles muito além das primeiras vinhetas. Ou me levanto, ou adormeço.

O fato é que, de tanto procurarem encontrar-me razões de todos os tipos (sofismáticas inclusive) para os males que me afligem (como diria Josephine March), decidi-me eu mesma a procurá-las, por entre o conhecimento que tenho de mim mesma, que ainda errado é o que de mais longa data se conhece sobre a minha pessoa.

Pois não consigo encontrar motivo melhor que esse do ócio. Reviso com atenção cada um dos que me foram dados: ”deve ser que você precisa parar” é o de maior ibope, rivalizando com o “você faz coisas de mais, é isso” – mas fica-me um “parar o que?” pendurado na soleira dos dentes, e não consigo mesmo decidir sobre o que se acha que deva parar em mim afinal. Será essa propulsão louca de querer ser e estar o que sou? Essa dificuldade escorpiana que a cada ano mais se fortalece de não conseguir abstrair as coisas que chegaram ao fim, mas ainda é preciso carregar na mala? Será isso que querem que pare? Mas, como quem me avalia assim só levanta as sobrancelhas como se fosse pra lá de claro, como se só eu não percebesse o que tanto em mim deve parar, continuo como antes.

E assim sento-me aqui para dedicar-me ao melhor dos ócios: ler a esmo o que quer que seja, ouvir todas as conversas que queiram depositar-se em meus ouvidos, perceber alguém encantado com o poder do “hálito da música ou do sonho” de um Pessoa desassossegado, e incorporá-lo ao próprio discurso. Posso ter mil tarefas a cumprir, cartórios, contadores e receitas federais a visitar para resolver pendências antigas que se acumulam diante da minha porta, mas de repente meus ossos avisam, como se fossem encarnações de um stephen king dentro de mim, que “os monstros e os fantasmas vivem dentro de nós e de vez em quando eles ganham”.

Vive dentro de meus ossos uma voz que me alerta, e que apenas eu ouço. O que os outros pensem, o que os outros digam, é preciso que se saiba que são reflexos do movimento do coração. Doem, mas como me disseram ontem, o que mais dói são os ossos. Por isso, decidi dar-lhes ouvidos.

15/07/2010

Revisão

Estou ocupada há dias, na revisão das páginas que escrevi faz hoje exatos doze meses. Sem a intenção ou o feitio de se constituírem diário, estas quase cem crônicas, que finalmente preparo para a edição em papel, reinventam cada um desses meses que viveram. O fato de tê-las compartilhado através deste alobairro transfigura-as, e é por isso que o texto que faz as vezes de introdução ao livro usa a palavra “alteridade”. Além de usá-la, torna-a palpável ao longo dos parágrafos, aproveitando a intensa troca de emails a seu respeito, palavras de alerta, de ânimo, de correção e de provocação.

Os outros são-me um tema caro, os outros dão-me a medida dos pés, os outros elaboram meus passos e meus horizontes. Mesmo quando os desconsidero, ou quando os considero maiores do que são, converto-os em algo além de si próprios, subvertendo-lhes o tamanho concreto. Não me importo de ver o que não existe – dentro do papel, se me apetece, existe.

Uma a uma, cada crônica evoca um momento, uma pessoa, uma situação – e aquilo que senti ao escrever retorna; o que já estava engavetado, apagado, remediado, aceite, revive, com a mesma carga de dor e amor do seu próprio dia. Pergunto-me (quem ao escrever não o fará?): o que isso que escrevo fará brotar em quem se aventurar leitor?

Página a página, preciso resistir à vontade de agarrar o telefone e recompor o presente, transvesti-lo com gestos do passado, como se o que foi feito pudesse ser apagado, como se não contasse, como se pudesse hoje alterar o que foi gravado a fogo meses atrás.

Não posso: a gráfica está à espera desta revisão. Pode ser que alguém espere meu telefonema do outro lado da linha, mas também pode ser que não, e hoje eu sei o quanto a minha alma não comporta mais nenhuma decepção. Hoje, não. Hoje meu coração feito de folhas não aceita desilusões. Prefere manter-se iludido, rodeado dos feixes de luzes que criou porque era livre para isso, num milagre que atravessa as primaveras e os outonos e vem estacionar-se ao meu lado, dando-me cobertura para o rigor dos dias que se aproximam.

25/06/2010

Aos homens que se escrevem com maiúscula

Saramago não me dá trégua: passei a semana a lê-lo, creio até que se me cola aos dedos, seres autônomos que agora querem brincar de evitar as pontuações padrão. Resisto-lhe um pouco, agarro-me às minhas próprias sombras porque os dias e a escuridão também não me dão trégua, e logo ele volta, com mais um pequeno segredo a que eu não tinha prestado atenção na primeira visita. Com isso, continuo rodeada dos seus livros, aquilo que lhe sobrevive na ausência, como ele quis. Lamento os que não comprei em inúmeras ocasiões e fico feliz porque a ele sim, ao fim e ao cabo, pedi um autógrafo. Olho-o longamente, a esse desenho que forma o seu nome, e dá-me assim uma certeza de coisa toda inteira na página em branco deste livro. Simples e austero, como seu autor. A tinta forte, sem espaço aberto a dúvidas. E embaixo o ano, porque o tempo é o amigo das coisas que se querem lembradas.


Talvez o que não me deixe afastar-me da sua memória seja o tê-lo descoberto, ao longo desta semana, no tamanho da sua integridade pura, da sua absoluta desesperança sem fé em nada a não ser na força do trabalho das suas próprias mãos. Reconheço-lhe traços que se vislumbram na sua carta natal, mas imagino que ele, lá de onde está, se ria ao ver-me por dentro a pensar semelhante disparate. Não creio que ele olhasse para as estrelas dessa maneira. E ele olhava-as. Longamente.


E provavelmente não exista nada de riso em seu rosto ao ver-me pensar ou fazer seja o que for, porque se tudo tiver dado certo e ele tiver ido para onde gostaria de ter ido, está neste momento disperso no éter do não ser, do não tempo, incorporado à substância vital e criadora do universo, e mais nada. Tanto se lhe dará o que eu ache.


Há uma espécie de verdade com maiúscula que me atravessa quando o leio. Uma espécie de grandiosidade do pequeno. Quanto menor ele se apresenta, maior e mais intenso me atinge.


Tenho-o diante de mim em muitas fotografias. Em gestos que se fizeram ternos com o passar dos anos e o encontrar do outro. Mudou a si próprio sem recriminar o passado nem angustiar o futuro – um dia atrás do outro e de cada vez, na sabedoria camponesa sem ambições dos seus pais e avós. O tamanho da vida de um homem que se escreveu a si próprio com maiúscula.


Releio mais uma vez as anotações que fiz sobre a sua vida, interrogo-me sobre algumas das suas ações, quem dera pudera perguntar-lhe de onde lhe veio tudo isso, se da certeza do caminho, se da teimosa decisão de ser austero, grave e incisivo na sua observação da realidade, dessa matéria por trás das palavras que engulo como alimento.

Sinto-o ao meu lado, na pretensão que muitos devem a esta hora reconhecer em si, e acho realmente uma sorte que uns permaneçamos vivos enquanto outros se vão. À maneira de Cícero, que dizia que a memória preservada em veneração e ternura naqueles que sobrevivem faz com que quem partiu seja feliz na morte e quem ficou honrado na vida.


O sentimento ou a necessidade da honra traz-me os que partiram nos últimos dias, e eu conheço. Apresso-me a percebê-los de novo, procurando-os nesse estado sem estado. A memória preservada é tarefa diária, assim como é diário o esquecimento do que importa e é leve o bater das asas dos que partem de nós.

15/06/2010

A vértebra

Creio ter conseguido, finalmente, delimitar o espaço exato do nascimento de uma crônica. Entre a 3ª e a 5ª vértebras torácicas, o que não é assim um ponto realmente exato mas assim é a vida, nem tudo o que parece ser o é de fato e é bom que nos acostumemos sem demora a isso. Mas de qualquer forma um espaço feito de incomum amálgama de agonia e êxtase. Uma necessidade imperiosa dentro de um recipiente feito de um tipo de vontade que se dissolve violenta em si mesma.

A dúvida entre a vértebra exata está na posição que o corpo assume ao escrever, e não nas palavras em si. Depende muito mais do lugar onde se escolhe escrever, que por sua vez está muito mais ligado àquilo que dentro decidiu dizer. Se de lado ou se sentada, a vértebra em questão altera a sua posição em relação ao eixo que considero, que é o da minha percepção de onde estão céu e terra. Dependendo, portanto, desse eixo, muda a sensação da vértebra por onde se escapa, às vezes num suspiro, a crônica.

Não importa: perceber nesta manhã que é de uma vértebra que as crônicas se sopram de dentro para fora foi deveras surpreendente. As crônicas desvanecem-se no ar, dissolvem-se num átimo porque é da sua natureza. Iluminam por um segundo os milagres pequenos do dia a dia e infiltram-se no nosso cotidiano coração sem que depois nos lembremos disso. Desaparecem em meio aos nossos ossos e quase nos esquecemos de que nos existem. Se não me apresso e agarro esta que me sai agora, fica-se perdida para sempre.

Por mais que tente recuperar aquelas duas palavras que de repente davam início a um turbilhão de pensamentos em absoluta desconexão entre si, não consigo, frustro-me, irrito-me e digo a mim mesma que a idade está chegando e eu perdendo a memória.
Mas não é nada disso. É claro que a idade está chegando, seja ela qual for, mas a memória está onde sempre esteve, apenas menos interessada em guardar números e endereços. O problema é da natureza da crônica e da minha incapacidade de lhe localizar o ponto de saída de mim e entrada no mundo.

Mas agora esse é um problema resolvido, e assim que acordar de novo a meio da noite, com as ideias preciosamente alinhavadas dentro de mim, basta-me ajeitar a vértebra no lugar e deixá-la recolhida, em silêncio e penumbra como se gostam os partos, como uma asa ainda sem despregar, guardando os segredos dos voos sem queda das palavras. E, ao acordar de fato, depois de ter voltado a dormir, lembrar-me de descolar do meu corpo a minha vértebr-asa com cuidado, já com o papel e o lápis na mão, chamando-me de volta à vida com um sorriso de triunfo e conseguimento.

16/05/2010

Viagem de ônibus pelo Rio de Janeiro

Recebi um email hoje de manhã que me perguntava “Ouve lá... o que achas mais inteligente, o livro ou a sabedoria?”. Diverti-me um bom bocado (estou divertida até agora, aquela espécie de diversão abençoada), imensamente recompensada pelos encontros linguísticos que permeiam a vida. Repararam? O “ouve lá” é obviamente lusitano, induz-me a ouvir atrás dele o “psiu...” lisboeta com que tantas vezes um amigo comum da mesma pessoa que me escreve me chamou quando podíamos nos ver ao vivo. Já a pergunta, que por acaso sei de onde vem, põe-me o Rio de Janeiro diante dos olhos, e não qualquer Rio, mas o que me acolheu quando pus os pés no Brasil. Duas cidades lado a lado, com suas palavras, acentos, curvas e pessoas. E já que hoje é domingo, às vezes dia de ficar aqui observando sem pressa os próprios pensamentos, eu vou responder com gosto à pergunta. Ainda por cima, acho que o tema combina mesmo com o domingo.

É de José Datrino, que nasceu em 1917 em Cafelândia e aprendeu em criança a amansar burros, que o email simpático da Nita, uma portuguesa que vive em Famalicão e eu só conheço virtualmente, me fala. A Nita é poeta, e leitora de poesia. De vez em quando trocamos poemas. Às vezes ela manda-me coisas que descobre do Brasil, para ver se eu conheço e se sei mais do que ela descobriu. Vamos construindo, Nita e eu, uma relação baseada no crescimento mútuo – assim de longe, eu digo-lhe o que acho de seus poemas, ela diz-me o que pensa dos meus. Há dias em que põe o dedo na ferida, e eu olho para o que ela escreve desacreditando que ela tenha me dito o que me disse, será que não vê que assim me faz sofrer? Sentir-me idiota? Querer desistir de escrever? Leitora crítica, sem dó de mim, esquarteja-me os versos para me fazer ver o quanto tantas vezes são pueris, óbvios, presos à abstração que não quer afundar os pés na concretude das coisas. Algo da poesia de Nita é concreto e duro por demais, faz-me lembrar às vezes uma Orides Fontela nos idos da infância – e ela não deve gostar também quando lhe digo isso, com provas circunstanciais ainda por cima. Mas é por isso que nossa correspondência cresce, porque é uma sorte termo-nos uma à outra assim, leitoras em construção de uma amizade que impede que coisas maiores nos magoem com mais força; encontro na Nita o espaço de exposição segura da minha alma., e cuido para que a dela não fique desamparada. Mesmo quando não me diz nada, eu sei que algo prepara, porque nunca a Nita me deixará sem resposta, perdida no universo da indiferença que me abate. A Nita pode ser cruel, mas nunca infiel. Quando demora, é porque está a pensar.

Voltando ao José Datrino. É provável que qualquer um saiba sem saber que saiba de quem se trata. Digo a Nita que ela precisa ouvir a Marisa Monte cantando a pergunta que ela me fez, e bem rapidamente estamos as duas com a tela do youtube aberta, e decidimos contar “um, dois, três e... já!” para entrarmos juntas na viagem de ônibus entre o cemitério do Caju e a rodoviária NovoRio. Consigo ver ao longe as lágrimas que se formam nos cantos dos olhos de Nita ao passar pelas pilastras que seguram o viaduto graças às palavras que  as colorem e resignificam, quando o movimento que a câmera faz lhe descobre as flores distribuídas, o amor em ação pelas ruas da capital carioca. Conheço a canção de todos os cantos, porque gosto dela e de ouvi-la, mas nunca antes lhe prestei uma atenção desta natureza, com uma companhia ao longe que sabe que eu vejo e sinto os mesmos caminhos que seus olhos e coração veem e sentem.

É claro que a pergunta que ela me fez foi apenas um convite a estarmos juntas, um pretexto para reacender o diálogo, porque às vezes são precisos pretextos para reencontrar coisas perdidas que não queríamos ter perdido, pessoas que correm o risco de se esfumaçar no tempo se não inventamos as perguntas que as concretizam novamente à nossa volta. É claro que ela já tinha encontrado e sabia quem era Gentileza, o profeta que nasceu José Datrino, na Wikipédia, no youtube, no cifras.com e em mil outros lugares que oferecem o que quisermos se soubermos procurar. Faltava-lhe encontrar o nosso espaço comum, a nossa amizade feita carne, sangue, ouvido, boca, a alegria de poder viver com o outro o que lhe nasceu de repente numa manhã. O meu domingo, deste lado do atlântico, com sol e silêncio ao redor, no meio de uma trégua decidida entre as dúvidas da semana que se inicia, ganhou firmeza e verdade, ausente da solidão que ataca e desconstrói as nossas melhores disposições de gentileza. Como já dizia o profeta: “Amor, palavra que liberta”.

Que profeta? Este!

18/04/2010

Entre o ver e o ouvir

Uma das vantagens da audição é poder ouvir o que dizem de nós, nesse movimento que alguns gostam de chamar de “espelhamento”, o saudável exercício de refletir, observar, pensar, especular afinal. Quando o espelho não é baço, encoberto e acinzentado pelo tempo, ou alterado pelo desgaste dos produtos que usamos, querendo deixá-lo insana e artificialmente brilhante e reluzente, é ótimo. Quando o momento de espelhar está bem determinado, e se limita àquilo que compreende a função para a qual se usa o espelho, ótimo também, e o mesmo acontece quando o olhar que desdobramos na direção do outro está permeado de amor e compaixão, na sua forma concreta que não quer despertar dores desnecessárias das quais nada sabemos. Com condições assim ideais, podemos confiar na imagem refletida como sendo, de fato, parte da nossa própria reflexão, e aproveitar-lhe todos os momentos para ir e voltar e ir uma vez mais à morada da nossa própria percepção.

Gosto por demais dessas oportunidades, até pela dedicação que, de um jeito ou de outro, pressupõe o movimento do outro especular sobre nós mesmos olhando em nossos olhos - o que nos permite, a nós os  observados, conhecer os outros através daquilo que eles dizem ver. A especulação bem formada engrandece o que especula e o especulado, e cria um entendimento profundo e verdadeiro entre almas. A reverberação dos sons que os outros escolheram para definir o que veem como nosso reflexo abre caminhos dentro de nós, suaves ou agrestes, enevoados ou luminosos.  Nem todo espelho reflete o mesmo lado de nós mesmos, e provavelmente por isso alguns nos percebam as curvas sinuosas, outros as planícies serenas, outros o mar em fúria, outros o espaço aéreo entre as falésias e as ondas, e outros ainda duas ou três dessas paisagens ao mesmo tempo, seja porque estão por perto há mais tempo, seja porque a história nos antecede a todos e alguns sabem disso sem saber e sem se lembrar.

Nesse espelhar do outro, há quem prefira não abrir os olhos, furtando-se a ter o outro refletido em seu cristalino. Pode ser que receie encontrar-se naquilo que reflita, o que pode ser um problema, e assim olha-se só para dentro de si próprio e confunde-se a própria imagem com aquilo que era suposto refletir. E outros, ainda, decidem observar o que lhes interessa e aquilo que vai ao encontro de seus desejos e propósitos e, por eles, quaisquer observações cabem e valem. Mas estes são entre nós muito raros, quase inexistentes, e não vale a pena oferecer-lhes muito do nosso tempo.

Nesses processos, pode ser que às vezes ouçamos falar do nosso avesso como se ele fosse o direito, e como se devesse transformar-se e viajar para os lugares onde outros acreditam estar o que é direito. Imagens de que gostamos, e cultivamos, aparecem repentinamente transvestidas com as peles do desequilíbrio, da instabilidade, da insatisfação, da ausência. Estivessem esses olhos abertos, talvez conseguissem ver como se mergulha até o fim dos poços da vida, e se bate o pé no fundo e se volta à tona com o diamante que com esse mergulho arriscado conseguimos abraçar e trazer lá de baixo conosco. Mas, penso comigo, talvez só nos sonhos de Alice os espelhos mergulhem sem antes garantir seu tubo de oxigênio, numa entrega que não se preocupe em dividir quantos lances de escada se vencem a cada dia. 

Imagens projetadas, e não mais refletidas, provocam o desconforto do próprio movimento. A projeção agudiza a consciência dos tentáculos por trás das superfícies espelhadas das paredes do poço em que se mergulha, estreitando-se para não deixarem passar aquilo que de fato somos. Na escuridão que essas superfícies formam, há aquilo que deixa de valer a pena, ainda que resistamos em manter acesa a luz que nos permita encontrar a saída e, com ela, o caminho que nos leve ao nosso destino.