12/01/2017

Os tempos morrem como morrem os homens

Os tempos morrem como morrem os homens. Podem haver imagens que fiquem gravadas e guardadas, mas há uma espécie de espírito, uma certa forma de vida e sentido, que se enterra quando aqueles que eram seus guardiões descem à cova. Morrem os homens, porque morrem os tempos? Porque a luta manifesta-se distinta? Porque os punhos se cansam de viver erguidos e sucumbem ao peso da passagem dos dias?

Vejo as imagens do primeiro dia de maio de 1974, em Lisboa (é desse dia a fotografia que encabeça esta memória, com Mário Soares e Álvaro Cunhal em primeiro plano, e é desse dia o link ao final). Sei-me ali, criança em estado de encantamento coletivo, entre aqueles que gritam o-povo-unido-jamais-será-vencido; sei-me ali entre os que ouviam Cunhal que já partiu e Soares que partiu estes dias. E penso em que como continuará no mar esse navio sem alguém à proa. Penso na memória que precisará (já precisa) ser lembrada, a memória que tenderá (já tende) a esquecer os Álvaros Cunhais, os Mários Soares, os Josés Saramagos todos que se vão sem nos deixaram no legado uma substituição à altura.

Talvez porque não haja altura. Penso Portugal e sobe garganta acima uma tristeza entre o quase raso e o quase fundo, balançando ao vento numa linha de pétalas vermelhas de cravo. Uma tristeza ocre que vou chamar de saudade desse povo que acreditava, de pés no chão e corações ao alto que, unido, jamais seria vencido.

Apetece-me gritar o mesmo. Porque a divisa mantém-se, e enquanto não nos unirmos, seremos fatalmente vencidos.

A Mário Soares, com o coração cheio dos poemas que soube de cor até o fim, uma viagem boa, uma passagem serena, uma visão perfeita de uma vida cumprida na defesa do que entendeu mais e mais importante que tudo: a democracia de um país destroçado por uma das mais longas ditaduras da história humana, como em todas as outras uma ditadura com milhares de torturados, mortos e desaparecidos. Mais importante de tudo era poder gritar aos quatro ventos essa fantástica conquista da Revolução de Abril: ser livre e ser feliz.






05/01/2017

Assim que consigo falar com a amiga querida que aniversaria hoje, essa amiga que mora longe e que eu tão pouco vejo, ganho vontade de escrever-lhe umas linhas, e a palavra que primeiro me vem à beira dos lábios é a palavra fé. Talvez porque ambas saibamos que é preciso, mas nem sempre é fácil nem eterno manter a fé a nosso lado. Ou talvez porque na missa de sétimo dia de um vizinho querido que partiu, ontem de tardinha, eu tenha ouvido várias vezes essa palavra quase-conjuro mágico: eis o mistério da fé. De vez em quando, um pouco em forma de ordem e comando, lá se repetia a mesma palavrinha de só duas letras, aqui e ali, como se nos fosse exigido tê-la, guardá-la e garanti-la a toda hora, não perdê-la de vista nunca. Como se nos fosse dado o direito, o dever e a possibilidde de manipulá-la e retê-la, fazendo-a dançar ao som da nossa própria música. Sendo que não, porque fé é matéria bastante invisível, é um desespero não a ver ao nosso lado, e um tormento imaginar poder controlar a sua presença. A fé tem vida própria. É instável. Etérea. Rebelde. Ora vem, ora está, ora vai.

De fides, palavra da qual deriva a nossa fé, nasce também a palavra fidelidade - a qualidade daquele que é verdadeiro. Veja: tem fé aquele que é fiel. Portanto, ser verdadeiro é condição sine qua non àquele que deseja a fé. E, vice-versa, é fiel aquele que tem fé, aquele que tem fides - tem confiança, crê, promete (e cumpre, imagino). Aquele que crê (credere) é aquele que acredita, aquele que acredita é aquele que confia, e todos eles têm, ao fim das contas, fé. Só que não é fácil ser verdadeiro, nem consigo mesmo nem com o outro. Atrapalham-nos mil coisas, da educação recebida ao ego inflado. Da auto-estima defeituosa ao desvio de caráter. Da sociedade que nos abalroa, ao nosso cansaço interno inconfessável. Tão difícil ser verdadeiro, quanto ter confiança (coisa que se constrói dia a dia), quanto acreditar (coisa volúvel).

A fé exige, às vezes e ainda por cima, recusar a contenda. Aceitar a perda. A incompreensão. A falta de entendimento de algo que a princípio pareceu bastante simples. A fé exige dobrar os joelhos.

Desistir. 

Render-se. 

Render-se que é dar-se outra vez (re, outra vez + dare,dar). Render-se que é entregar-se novamente, de corpo e alma, sem limites nem premissas, a algo que você já se entregou. E se entrega outra vez. 

Talvez essa seja afinal, com bastante chance de ser percebida, uma forma visível de manifestação da fé. Crê-se tanto, é-se de tal forma fiel, de tal forma verdadeiro, que a entrega é inteira, íntegra e outra vez e sempre renovada. Igualzinho como é preciso com a fé - renová-la a cada dia, através desse dar-se sem fim, sem perguntas e de olhos fechados. Como uma amizade antiga que não precisa atravessar o espaço para encontrar tempo, ou como a morte que não nos separa e antes nos ilumina o sentido da vida com mais precisão e contraste. Ou como em definitivo a entrega, a sua capacidade de mesmo de pernas quebradas resistir e render-se à necessidade constante e urgente de ter sempre sempre fé na vida e fé no outro.