31/08/2015

Ser

No início, quando ainda nem sequer era o Verbo, pareciam muitos, e indistintos. Vestidos da mesma forma, sentados em carteiras iguais, ocupando salas idênticas. As horas pareciam as mesmas, as idas e as vindas idem, as saídas e as entradas repetições quase lineares.

Tentei aprender-lhes os nomes todos logo no primeiro dia. Frustrei-me, claro. A memória ainda não falha, mas tem limites. E afinal é disto que se trata: de limites que podemos galgar, atravessar qual areias de deserto, pedindo licença, com gentileza, para avançar mais um pouco, até começar a perceber uma espécie de trama fina de intimidade em processo de formação. Em pouco, pouquíssimo tempo. Não sei se haverá algo mais luminoso.

Tiramos os quês, as explicações, as palavras desnecessárias da escrita. Abriram-se os porões das propostas, e lá foram elas, acolhidas com destemor e abertura. Cada vez que acontece, eu me vejo nadando nas águas dos milagres humanos. Não tem coisa igual.

E bastou menos de um mês. Não para aprender os 360 nomes diferentes dessas pessoas novas que agora povoam a minha vida, nem de saber com certeza inabalável qual corresponde a quem. Mas bastou um mês para que a ilusão da aparência idêntica abrisse espaço para as diferenças e as peculiaridades - as grandes e pequenas coisas da identidade de cada um, esboçadas em gestos, em olhares, em tropeços aqui e ali, tudo quase invisível. Bastou um mês para que se estabelecesse, em meio a correrias de sala para sala e bons dias de sorriso aberto, um reconhecimento e um esteio de amizade e afeto. Daqueles que valem tudo na vida. Como, assim, não ser e se declarar feliz?


Foto: Giovani Ferreira






16/08/2015

Calma, vaca!

Sabe aqueles dias em que você chega à conclusão de que talvez a humanidade esteja perdida mesmo? Hoje é um desses.

Eu estranho, há anos, essa mania de energético. Cada vez parece mais impossível encarar a vida sem um estimulante qualquer. O paladar vai-se, e a noção das coisas junto. Assim, inocentemente, dentro de uma latinha charmosa.

Hoje dei de caras com o antídoto do Red Bull: a Relax Cow. Em vez de precisar de energia, e de se tornar um Touro Vermelho, você precisa relaxar e se acalmar? A salvação chegou: você toma uma Vaca Calma e tá tudo resolvido.

Eu sei que tenho amigos que se queixam de que penso demais, de que levo tudo ao pé da letra, de que às vezes faz parte deixar as coisas passarem. Pois eu parto do princípio de que, se está escrito, e é com letras, é para olhar para elas - e pensar. Essa faculdade tão fascinante que nos distingue dos outros animais, e nos permite fazer aquilo que Aristóteles resumiu numa frase que vou citar de cor: se você tem capacidade para fazer uma coisa, também tem capacidade para não a fazer. Depende é do que você pensa, e do que você decide depois de pensar nas coisas - mas, ó céus, como dói pensar! Como desacomoda, como incomoda, como fraciona, como nos desdobra diante dos olhos um mundo que preferimos não ver...

Para acalmar um Touro Vermelho, só uma Vaca Calma. E deixe pra lá todas as mensagens subliminares embutidas, das machistas às demais, aquelas que poderiam dizer-lhe que você é apenas um ser fácil e pateticamente manipulável.

Ou então preste atenção às linhas e às entrelinhas (faça um curso de Análise do Discurso se começar a se confundir), e faça escolhas a partir das suas conclusões. Os que prometem "esfriar a sua mente" em 296 mililitros de estupidez enlatada, prescindindo do seu esforço, da sua busca, da sua posição e do seu afeto, querem você assim: uma Vaca Calma que não incomode, que não dê trabalho, que se contente em seguir a boiada para onde ela for. Ainda que seja o matadouro.

03/08/2015

Presença e companhia

Ainda ontem me disseram que importante mesmo é cultivar o estado de presença. Gosto de observar a maneira como as palavras se dobram à vontade do freguês, rindo-se sorrateiras daquilo que nem vemos: que as maneiras de as usarmos altera, silenciosa e quietamente, a maneira como pensamos, como vemos o mundo, como nos oferecemos e recebemos o outro.
Estamos todos à procura de presenças – de estarmos presentes para nos sentirmos úteis, de querermos o outro presente para estarmos seguros, levantando a mão afoitos e quase que gritando “presente!” quando alguém duvida que não estejamos engajados. Queremos ser presentes na vida de nossos filhos, ensinar-lhes a importância de viver o presente, sabendo que o passado já foi e o futuro a Deus pertence.
Fui cavoucar a palavra, já tarde da noite. Presença deriva da palavra praesentia. Surgiu com a junção das palavras prae (à frente) e esse (estar, ser). Presença, portanto, é estar à frente. Ali adiante. Presença não é estar lado a lado. E nessa nossa obsessão moderna pela presença, pela busca incessante por estar presente nas coisas e nas pessoas, nem vemos que ficamos é distantes, separados por esse “à frente” que estabelece uma linha entre eu e o outro, feita de tempo e de espaço.
Talvez estejamos é necessitados de companhia. Em vez da miragem de uma mão estendida, dedos palpáveis e quentes ao seu lado. O que lhe parece?
Companhia também é uma palavra latina, e deriva de compania; está formada porcom (com) e panis (pão). Companhia é aquele estado em que as pessoas repartem o pão que têm. Imagino-as lado a lado, olhando-se nos olhos, agradecendo internamente por terem não só o que compartilhar, mas também o com quem. Não estão presentes, estão em companhia. Pode ser em silêncio, pode ser em conversa animada, diante de um por do sol ou dentro de um elevador apinhado. Quem seu pão coloca na mão alheia, e dela recebe o pão que lá existir, está em companhia, e nada mais é preciso.
Como dizia Einstein, só existem duas formas de viver a vida: ou você sabe que não existem milagres, ou você sabe que tudo é um milagre. Isso aprende-se, ensina-se, vive-se – sabe-se quando ainda se é criança, e desaprende-se com essas manias adultas de dar voltas às palavras para fugir ao que é essencial e deter-se no supérfluo.
Nunca é tarde para virar a esquina e decidir tudo ser diferente. Desistir do olhar vulgar que tudo cobre de tédio e insatisfação para vestir os olhos com a cor daquela pequenez que os enche de água agradecida. Talvez o milagre não esteja ainda nessa mudança de olhos – mas chegará, mais cedo ou mais tarde, porque as boas companhias chegam, por afinidade com esse seu novo olhar para a vida, e, de repente, você encontrará ao seu lado uma mão aberta cheia de pão. Aí, então, terá com quem compartilhar o seu pão sabendo que a sua mão e a do outro jamais estarão vazias.


Publicado originalmente no site http://paraentender.com.br/presenca-e-companhia/