12/07/2015

12.07


dentro do mar
anzol de pescador
na beira d'areia
coração rebrotou







06/07/2015

Manipulações, escrita e Dom Quixote

De todas as lições de escrita que recebi, aquela que me disse que o enredo e a trama vivem dentro da personagem, foi a que mais me modificou. Porque a vida imita a arte, e foi fácil ir registrando, em papéis aqui e ali: seja ficção, seja realidade, são as ações que determinam o caráter da personagem. As palavras que pronuncia, infelizmente, arriscam-se a ser ilusão bem (ou mal) tecida.

Aquilo que sabemos de cada personagem pode estar recheado de detalhes vívidos, que nos mostram quem e o que são, ou podemos receber apenas alguns traços gerais, um tanto abstratos, que nos sirvam para delinear um perfil - um perfil sem necessidade de interior. Como um saco vazio.

Tanto na vida quanto na ficção, é preciso criar uns e outros tipos, porque afinal não precisamos saber sobre todos tudo. É preciso, muitas vezes, que o seu Joaquim seja apenas o dono da padaria da esquina, que desconfiemos da sua nacionalidade portuguesa, e que saibamos que se levanta muito cedo para garantir o pão fresco à mesa do desjejum. Não afetará a nossa vida não saber nada além disso - mas certamente apenas esse conhecimento nos rouba a experiência do que é o seu Fernando, de fato e ao completo. Para fins de narrativa, não sendo seu Joaquim personagem relevante, nada a mais se faz necessário.

É isso que distingue personagens centrais de personagens secundárias. A questão é saber quem são umas e quem são as outras. E perceber que a maneira como as tratamos precisa, sim, ser diferente. Às ficcionais, nada acontece quando, ao fechar o romance, ainda temos algumas dúvidas. Quincas Borba, antes de ganhar um romance só seu, foi personagem secundária em outro romance machadiano. Nenhum problema até aqui - se o nosso domínio for a escrita. Se nosso campo for a realidade, pode iludir-nos a vida sermos conduzidos pela conversa vazia de quem se diz profundidade. 

As personagens secundárias precisam de poucos traços, porque a sua existência enquanto tipos nos basta - podemos chamá-las de planas, porque é aquilo: só têm perfil. As que têm relevância para a trama, ao contrário, demandam um preenchimento consistente, quente, pulsante, cheio de nuances psicológicas que nos permitam conhecê-las melhor do que a nós mesmos, ou quase. São as personagens redondas, cheias de conteúdos.

Sancho Pança e Dom Quixote podem ser nossos exemplos. Cervantes não escreveu apenas uma paródia humorosa aos romances de cavalaria medievais. Cervantes está atualíssimo, porque escreve uma paródia à importância que damos às coisas, às pessoas e àquilo que elas nos mostram de si mesmas.

Sancho Pança é a personagem da qual Quixote depende para estar encarnado. Raramente nos lembramos disso. Dom Quixote nos encanta: o sonhador, o visionário... Mas é Sancho quem lava, passa, cozinha e se preocupa com seriedade e constância das coisas "pequenas" da vida de seu amo. Amiúde não percebe a sua real importância, e mesmo exasperando-se com a testarudez de seu senhor, permanece junto a ele, fiel e amoroso como um cão perdigueiro. Conhecemos, de Sancho, não só o seu exterior baixo, gordinho e montado num burrico, mas também e sobretudo o seu interior - a sua bondade, a sua perspicácia um tanto tosca, a sua lealdade, a sua falta de senso de humor, a sua capacidade de enxergar as coisas da forma reta e lisa que são. Acreditamos em Sancho. E acreditamos porque a pena de Cervantes, lá nos idos do século XVII, nos faz acreditar. Acreditamos porque dele sabemos as coisas importantes que precisamos saber das pessoas nas quais acreditamos.

Também o que sabemos de Quixote é o que o autor espanhol escolhe oferecer-nos - e ele escolhe conduzir-nos engenhosamente a leitura e dar-nos apenas traços vagos de seu "herói". A visão descontrolada, as alucinações, a valentia questionável: não há traços internos reais onde possamos nos agarrar, porque tudo em Quixote é egocêntrico, desmesurado, ambíguo e abstrato. Somos jogados nos moinhos de vento e, embora não acreditemos, como Quixote, que combatamos monstros, aceitamos a sua megalomania. Não acreditamos em Quixote, até porque ele não nos dá nenhum motivo para isso, mas aceitamos, e gostamos da sua companhia, sentimos uma suave condescendência e solidariedade para com a sua "mansa" loucura, sem perceber o buraco para onde nos arrastam as alucinações mentirosas de quem se acredita acima da verdade do mundo.

Quixote é o império da ilusão. Nada do que diz e pensa é verdade, e pouco do que faz tem impacto real e duradouro sobre o mundo. Ainda assim, é a ele que voltamos os olhos e pensamos "ainda bem que existem sonhadores!". Porém, Quixote não é um sonhador, mas um ilusionista de si mesmo, um ser que de si pouco revela porque toda a sua parafernália delirante e entusiasmada é criação doentia de sua própria mente. Acredita ter o valor que não tem, ver o que não existe, lutar pelo que não tem validade. E nós aceitamos e meneamos a cabeça, entra século, sai século, granjeando a esse tipo de construção de pessoa (perdão, de personagem) o espaço e a importância que ela não tem. E, enquanto isso, os Sanchos permanecem sob luz secundária, elogiados de forma tímida pela sua dissolução no sonho alheio, ainda que nos incomode silenciosamente a sua dedicação canina e sua inamovível sensação de serem indispensáveis à manutenção da vida dos Quixotes. Por muito que saibam que Dulcineia não é dama e nem Rocinante maravilhoso alazão, é quase que uma condena que levem seus Quixotes a bom porto - ou seja, de volta ao lugar de onde saíram.




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03/07/2015

No prelo 1

Ao levantar-se da mesa, Joice apoiou-se na quina. Fechou os olhos com força e a tontura foi-se. Olhou para o lado para ver se ele reparara, mas ele estava absorto, aquela cena tão lugar comum de quem está ao lado perdido em distâncias pessoais. Deu quatro passos na direção da porta e virou-se para entrar no quarto.

Agarrou a maleta guardada debaixo da cama, pronta para caso necessário de fuga à meia noite. Pena afinal ser de dia, pensou. Deslizou os olhos pela cama, pelas venezianas semiabertas, pela luminosidade a escorrer pelas frestas. A brisa fazendo tremer a beirada da cortina branca. A colcha de flores cada vez mais miúdas. Em pouco tempo só restaria o branco.

Voltou à sala e olhou-o ainda uma vez. A expressão igual à de sempre, zombeteira no canto suspenso das sobrancelhas, a frase feita não seja boba, sente-se aqui ao meu lado, vamos, porque não pode dar-me o que quero e parar de fazer cena? Paira no espaço, essa coisa que se espalha pelo pescoço de Joice como grade. Pensa nas meias penduradas pelo fio. Nas plantas em volta das foices no quintal. No reflexo do espelho na claustrofobia do amanhecer. E a atmosfera densa abate-se do teto ao chão, madeira descascando verniz velho. Joice abriu a porta e saiu, antes que caísse sobre ela.

Susteve o último passo, ainda a ocupação com o outro. Mas o teto está no mesmo lugar, como ele à mesa, alheio, porque nada daquilo é dele. E Joice respira do fundo das vísceras e dentro da maleta os cadernos chacoalham como pedras do caminho. 

Uma a uma, meses depois, Joice retirou-as de dentro da maleta, as páginas parecendo pétalas desfolhadas e secas, pálidas e trêmulas no início da leitura, descarnadas em pouco tempo. É assim, o seu relato, entre o pálido, o trêmulo e o descarnado. E é a ela que este livro dá forma, na primeira pessoa. É ela, Joice, a mulher que escreve do fundo.

continua...






Imagem: Prensa de Gutenberg, o que legou a multiplicação.