17/09/2014

Como as palavras, as pessoas

Poema da palavra exata
 
Eu dou-te uma palavra, e tu jogarás nela
e nela apostarás com determinação.

Seja a palavra "biltre".

Talvez penses num cesto,
açafate de ráfia, prenhe de flores e frutos.

Talvez numa almofada num regaço
onde as mãos ágeis manobrando as linhas
as complicadas rendas vão tecendo.

Talvez num insecto de élitros metálicos
emergindo da terra empapada de chuva.

Talvez num jogo lúdico, numa esfera de vidro,
pequena, contra outra arremessada.

Talvez...


Mas não.
Biltre é um homem vil, infame e ordinário.
São assim as palavras.

Quem hoje me ensina, tardia e repentinamente, é este poeta, António Gedeão. Releio seu “Poema da palavra exata” depois de muito tê-lo lido. Depois de muitas aproximações. Depois de ter-me deitado com ele e levantado na manhã seguinte, inúmeras vezes, pensando ter conseguido degustá-lo em toda a sua extensão.

O poema parte da oferta de uma palavra: “Eu dou-te uma palavra e tu jogarás nela/e nela apostarás com determinação.” Pessoas são como palavras, e é isso que o poema descortina diante de mim, numa clareza que assusta: recebemos uma pessoa, e nela (nos) jogamos e apostamos com determinação.

“Seja a palavra biltre”, continua. Fala de uma palavra, o poema da palavra exata. A palavra biltre. E, como se fosse uma pessoa, a quem se confere beleza, sentido, forma, construímos significados em torno da sua sonoridade, da coloração mais ou menos esmaecida com que impregna o ar à nossa volta. Talvez biltre possa ser, diz Gedeão, um cesto prenhe de flores e frutos. Talvez uma almofada delicadamente amparada num regaço, onde mãos ágeis tecem complicadas rendas. Talvez um inseto a emergir suas metálicas antenas da terra empapada. Um jogo de bolas de vidro.

Uma palavra, como uma pessoa. A quem construímos, com a delicadeza da renda, uma atmosfera respirável. A quem dedicamos o pensamento atento. A quem queremos ver com os olhos que vêm o que talvez exista, sem nos preocuparmos de que a possibilidade se invente realidade. Porém, por vezes, a atmosfera é estéril. Enganosa. Nada nela respira, a não ser essa nossa dedicação e disposição. Porque talvez (e há tantos talvez nesse poema quantos talvez existam naquilo que vemos do outro) não haja frutos nesse cesto, talvez nem sequer cesto exista, nem regaço, muito menos amparo. Mas nós apostamos com determinação, porque a palavra-pessoa nos encanta, e como encantados agimos. Como encantados negamos as evidências que tentam romper a cortina translúcida atrás da qual se esconde a palavra-pessoa.

Não. “Biltre é um homem vil, infame e ordinário.” Nada do que lhe construímos altera a sua substância primordial, o seu caráter, a sua essência. Jamais poderá um biltre ser um delicado cesto, um amoroso colo, por muito que o amemos e lhe insuflemos ar puro. Nada fará com que um biltre deixe de ser aquilo que nasceu sendo. As pessoas, como as palavras, prestam-se aos talvez que lhes emprestamos. Talvez o sofrimento, talvez os revezes da vida, talvez o silêncio signifique palavra e a palavra signifique amor – e assim nos embrenhamos nas matas densas da ilusão.

Não. “Biltre é um homem, vil, infame e ordinário.” Temos dicionários que explicam as palavras. Que as tomam suspensas no ar da sua origem e as expõem, nuas e cruas e verdadeiras. Mas não há manuais de etimologia que nos elucidem as almas das pessoas, o seu passado, o lugar de onde vêm, o senhor a quem servem. E pensamos que o cheiro que sentimos ao encontrá-las é delas, e não do nosso próprio olfato. Pensamos que o gosto com que as degustamos é delas, e não da nossa capacidade de construir sabores.

Num susto, a palavra revela-se no poema, e a pessoa revela-se no dia. Porque, diz o poeta, “são assim as palavras”. Assim como as pessoas, que de repente se apresentam, como biltres vis, infames e ordinários. De repente reconhece-se a estatura e o peso das pessoas, e o alcance que tem essa palavra traiçoeira, reconhecer. Depois que os véus se rasgam, e que a confiança no talvez se desfaz, não há volta atrás. Aquilo que é, permanece no tempo.


04/09/2014

Celebrar

Começa a época do ano em que, aqui em casa, mais há aniversários. Momentos bons de festejar a passagem do tempo. Penso nas celebrações, na sua importância.

Não são apenas festas, veja bem. Gosto destas também, mas quando o impulso da celebração está presente, o resultado é outro. Não é apenas sair para dançar, ir ao cinema, passear nos bosques - todas essas atividades, por si sós, podem ser celebrações. Mas só quando se quer que assim seja, e se age nessa sintonia. É preciso preparar-se.

Celebrar significa honrar. Deriva de celeber, que é algo várias vezes repetido, e por isso notado e percebido, e por isso digno de honra. Celebrar opõe-se à indiferença que grassa pelo mundo. Significa separar um tanto de tempo para dedicar-se a algo ou a alguém que é notado e percebido. É preciso re-parar na pessoa, e perceber que lhe é necessário, para a sua existência plena, ser notada e percebida em todos os seus lugares. Celebrada, portanto. É preciso saber olhar, e é preciso desenvolver uma capacidade que nos vem sendo negada.

Dentre as muitas verdades ancoradas no continente africano, e que reconheço como formadoras do que sou, o impulso da celebração é básico. Para viver é preciso celebrar. Por isso todo casamento africano é uma grande celebração compartilhada, que invade a cidade com seus cantos pelas ruas. O nascimento de uma criança é uma celebração. A conquista de um novo emprego. Uma viagem que se vai fazer. Uma viagem que se fez. Um ano que se passa. Um ano que se passou. Não é que africanos gostem mais de festa do que nós. O ponto é que eles sabem da importância que tem o que acontece a cada um, e o quanto o que acontece a cada um acontece a todos. E por isso a celebração é o reconhecimento da sublime importância do coletivo na vida de cada indivíduo.

Nas nossas vidas ocidentais, tão ciosas dos seus espaços e amores próprios, fazemos questão de delimitar com muita acuidade os lugares nossos onde os outros não entram. E o problema é que esses lugares modificam-se por estarem vazios do olhar do outro. Tornam-se lugares perversos, morada da obsessão, do enevoamento, da estreiteza, do medo. "Em conversa de marido e mulher não se mete a colher" significa que aquela problemática, ali, daquele casal, não me diz respeito. Não há nada que me ligue a ela. E por isso ela cresce até implodir. E, na sua implosão, às vezes perde-se tudo.

Meu amigo Aléssio, que me frequenta diariamente de uma forma africana de viver, contou-me ontem do caso do rapaz assaltado que pulou do carro dos bandidos deixando com eles a namorada. Morreu, que Deus o tenha. E ficamos ambos nos perguntando o que teria acontecido à moça, e o que teria passado pela cabeça e pelo coração do rapaz ao deixá-la ali, vulnerável e frágil, no carro dos assaltantes. Sentimo-nos mobilizados porque isso nos disse respeito. De quantos carros cada um de nós pula, deixando à mercê das sombras aqueles que estavam conosco? O que fica de nós dentro do carro, e o que levamos com nosso pulo?

Eu, gosto da vida celebrada. Compartilhada. É-me muito difícil conviver com tudo o que não pode ser celebrado e cantado, tudo o que se esconde atrás dos medos, das inseguranças, das convenções engessadoras que nos empurram a abrir mão da liberdade do bem viver. De vivermos da maneira correta, de acordo com a nossa verdade interior. (A verdade é relativa, ouço você dizer. Quiroga fala disso em sua coluna de hoje. Leia aqui http://blogs.estadao.com.br/sincronia/adaptabilidade/) Como viver, sem compartilhar com quem está ao meu redor as minhas alegrias? As minhas tristezas? Os meus avanços? Os meus retrocessos? As descobertas que faço nos caminhos que trilho? Os sustos que encontro dentro das florestas que me habitam a alma? Como fazer com que isso seja a minha verdade sem que os olhos dos outros me devolvam a mim mesma?

Não. É preciso reinventar a vida.

É preciso reinventar o dia, a hora, o abraço. Transformar os aniversários em celebrações de quem avança no tempo, sabendo que, com ele, avançamos todos. Convidar o outro para que participe da nossa festa interna, e permitir que todos os outros entrem também. A felicidade, como o amor, não se esgota. Quanto mais se compartilha, mais cresce, e mais ganha sentido. Um sentido que nos transcende como indivíduos e que brilha nos olhos dos outros, unidos a nós pela atmosfera tão sutil da celebração.

Tenho tido a sorte, ou o merecimento, de compartilhar momentos inesquecíveis com um novo grupo humano que agora me habita. O merecimento de celebrar, junto a esses meus novos irmãos, o poder que tem tudo aquilo a que se dedica sentido, unidade, inteireza, confiança e entrega. Meu maior desejo é que, desta união que transcende o espaço físico, e se aloja em lugares tão acessivelmente longínquos, nasça um eu cada vez mais verdade, um eu que possa transportar e celebrar a vida, em todo lugar: com você que me lê, com você que me escuta, com você que faz a minha palavra tornar-se maior e mais verdadeira, porque deixa de ser minha, para ser nossa. Mais que o "meu", eu quero o "nosso", em cada gota de sangue. E quero o sangue correndo livre pelas veias da terra. De outra forma, o sentido é parco, a vontade é escassa e a vida é pela metade.