22/04/2014

Mãe de abril

25 de abril de 2014

Mãe:

Este dia, mais do que qualquer outro, é teu. Mais do que o dia dos teus anos, ou o dia de Natal, ou as tantas datas que aprendi a festejar pelas tuas mãos. Este dia, dia maior, devo-o a ti. 

Devo-te também o gosto pela preparação das festas, mais do que o gosto pelas festas em si. O gosto pelos livros, e o gosto pelo cheiro dos lugares onde se guardam: as livrarias, as bibliotecas, as salas de leitura, os chãos dos corredores empilhados de livros órfãos de prateleiras. O gosto pelas Ilhas, incomensuráveis dentro do teu coração. Devo-te o gosto de inclinar-me sobre o fogão a pensar nos outros, o gosto de ir às compras a pensar nos outros, o gosto de, antes de em ti, pensares nos outros. Devo-te uma generosidade única, sem medidas nem limites. Essas medidas e limites que às vezes (uns mais que outros, mas todos) não sabemos como medir e limitar dentro de nós. Essas medidas e limites que ora apertam ora afrouxam com exagero. Essas medidas e limites com que te ocupaste a vida toda, e foi nas faltas, nas falhas e nos descompassos que mais me foste ensinamento de entrega e presença. Sem medidas, e sem limites.

Dentro do avião, ao teu encontro há algumas semanas, pensava no quanto quisera ser-te o que me tens sido. Mas agora, hoje, à beira dos 40 anos desse dia de Liberdade que me ensinaste a cantar com os olhos em luz, penso que te sou exatamente o que me foste. Sou aquilo que me desejaste, ainda que, à distância desse desejo, possas olhar-me com olhos inquietos, e não entenderes porque caminhos andam os passos que já não guias. Li e fiz carne da minha carne todas as tuas lições de liberdade, e engendrei dentro de mim uma face que não esmorece, nem se cansa, mas é capaz de dizer chega quando o fim se anuncia. Isso, no lugar que me cabe, é ser livre a olhos plenos.

Talvez te dissesse hoje que terias feito melhor se pensasses mais em ti do que nos outros, mas que sei eu dos caminhos que nos levam aos lugares onde é suposto irmos? Sei, ao ler esta carta da Clarice Lispector que me caiu nas mãos por estes dias, que é tarefa delicada mexer sem cuidado naquilo que somos, ainda que não nos agrade ou ainda que não saibamos o que fazer com essas coisas desconhecidas que assomam dentro de nós sem aviso nem pedido. Dizias-me, da última vez, coisa semelhante. E o teu olhar refletia-se sério nas paredes imaculadas à nossa volta.

Dizias-me, com palavras do teu âmago, isto que me diz Clarice: até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro. Não sei quais defeitos quiseste cortar em ti, e talvez tenhas pensado, num súbito, que o teu amor pelas festas, e pela sua preparação, o amor pelos livros e pela face livre da verdade, esse amor pelos outros antes que o amor por ti mesma, fossem defeitos. Mas pergunto-te, como sei terás perguntado ao espelho diante de ti: será em algum tempo o amor defeito?

Talvez possas ainda ter pensado que o teu amor à liberdade pudesse revestir-se dessas peles com que se aderem os defeitos, e talvez tenhas pensado que deverias ser e viver como outras mulheres viviam e davam de crescer a seus filhos. Talvez pensasses não ser aquilo que esperavam de ti. E talvez não fosses. Talvez nunca tenhas sido. E eu agradeço-te por, mesmo a meio desse meio em que não te decidiste a ser o que querias ser, teres me legado esta sensação interna que me diz "sê"  antes de me dizer "considera".

25 de abril, sempre.


Foto de Moreno Ribeiro


20/04/2014

Re-nascer-se


Renasço hoje cedo vendo uma entrevista antiga do Laerte. Não andava à procura de nada em particular, um clique levou a outro e o último à tal entrevista. E gostei, gostei demais, e recomendo. A entrevista é do começo de 2012, pouco depois do célebre incidente do banheiro da pizzaria.

Laerte escolhe roupas de mulher para se vestir. Dizia aqui à minha filha menor que, a rigor, é mais ou menos como acontece com ela, que gosta de usar roupas de equitação. Cada um escolhe aquilo de que gosta, e eu me emociono (ela percebe) com esse presente de manhã de Páscoa de um homem que não desiste de si mesmo e nem de ser, a cada momento, aquilo que é. Veja: não é só abdicar de ser os que os outros gostariam que você fosse, mas abdicar de ser hoje o que se foi ontem, e saber que amanhã poderá existir-se de nova ou velha forma. Essa liberdade interna, que ele resume na frase "não quero me proibir de nada", é um renascer-se diário. Bom pra ver neste domingo de Páscoa. Laerte vive em coragem. Há um tipo de dor que faz a espinha dorsal dobrar-se sobre si mesma. E a meio da dor resistir. Essa é a coragem do processo e eu ouço-me em algumas das suas palavras. E sinto que, além de processo, a vida é sobretudo encontro.

Minha filha, aqui do lado, acha "esquisito". Gostaria de ajudá-la a construir-se mais despreconceituada. Mas o mundo às vezes pode mais, e por isso fico feliz de que esteja aqui junto a mim, enquanto assisto esse homem lúcido que distingue sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual, e distingue para saber o que escolhe e por que escolhe. Não que ela preste atenção em nada disso (nem precisa), mas eu presto, e, porque eu presto, ela percebe que há espaço para todos em todos. Mesmo não ouvindo, quando olha de soslaio para a tela, percebe essa calma na fala, essa calma no gesto da mão, essa calma  no olhar - e talvez no seu íntimo registre tudo isso como "calma na alma". A calma na alma de um homem que gosta de se vestir como uma mulher, e se veste, porque se sente no direito genuíno de ser e fazer aquilo que faz sentido para si. Quem sabe essa calma na alma tatuada na sua própria alma dilua os preconceitos que o mundo queira impor a minha filha, como esta impressão de "esquisito" que não é dela, mas do mundo. Este homem vestido de mulher é apenas um homem vestido de mulher, na busca do ser si mesmo, sentado diante de uma mesa e de uma câmera, em fevereiro de 2012. Oferece-me, de bandeja à distância de um ano, a dose de coragem, beleza e integridade que eu precisava neste acordar de Páscoa.



O link para a entrevista é https://www.youtube.com/watch?v=uxD1xXvQWYM
e a tirinha encontrei-a no blog que publica as tiras diárias, o Manual do Minotauro


14/04/2014

De dia, como de noite

Maria Lúcia Bertonelli, nascida a 2 de março de 1912, falecida a 30 de agosto de 1947


Maria Lúcia trabalha há anos na fábrica de camisas. Um emprego bom, cheio de rotinas pequenas e desimportantes que lhe dão sentido à vida. Maria Lúcia cultiva a desimportância. Os botões que se enfileiram diante das pregadeiras, organizados por tons e tamanhos e números de furos. As capas das máquinas de costura, debruadas de vieses no mesmo tom do tecido grosso. À distância de dois palmos, nem se percebem. As coisas da vida de Maria Lúcia estão a dois dedos de distância de seus olhos.

Todos sabem quem Maria Lúcia é, e cumprimentam-na à entrada. Ela é, sempre, a primeira a chegar, e a sentir o ar morno e silencioso do vão aberto. As costureiras enfileiram-se como botões nas suas cadeiras eretas, suas roupas escuras como pontos de bordado, os óculos de aros finos e duros à espreita na frente dos olhos. Escolhem pelo tato o tom, o tamanho e o número de furos dos botões, e pregam-nos sem aproximá-los da vista. Os olhos encontram, às vezes, os de Maria Lúcia. Duros e estéreis, as mãos entrelaçadas escondidas atrás das costas e do sorriso perolado que não se desmancha.

Maria Lúcia não fala com a boca, mas com os olhos. Nem com as mãos, só os olhos. E só à distância. Talvez, no fundo, Maria Lúcia não veja nada à sua frente. Talvez a redução de seu horizonte de dois dedos lhe dê a dureza daqueles que se mantêm ao longe dos outros por terem medo de si mesmos à frente do espelho.

Nem sempre fora assim.

Pequena, sonhara grandezas. Semeara nos colchões das pequenas camas de suas bonecas cada um de seus sonhos maternais. Em cada fita de cabelo das pequenas filhas de sorriso estático, amarrara com firmeza seus desejos e pedidos. Jamais recolheria essa vontade, pensava sem saber que essas eram as palavras do seu pensamento, mas não as de seu destino. Maria Lúcia não sonhava. Maria Lúcia vivia, ali naquele mundo paralelo de quatro paredes forradas, sem saber de que matéria se tece o mundo.

Cresceu e foi à vida. Levou as bonecas dentro dos olhos, as suas particulares lentes de contato para medir a realidade. E a realidade foi-lhe dura e estéril. Maria Lúcia foi recolhendo os olhos, mantendo os sonhos bem perto deles, e pequenos, cada vez menores. Precisou trabalhar, nessa família que não tinha posses. E seu trabalho deixou-se mansamente contaminar por esse gosto incolor pelas coisas todas pequenas do mundo. As grandezas dos sonhos de menina encolheu-se dentro da caixa de botões, imperceptível como o menor dos furos. Estreitou-se por entre as agulhas alinhadas na cartela. Na alfineteira em forma de coração.

Durou pouco, a Maria Lúcia. Um dia escolheu a moldura da sua fotografia última. Quis quatro flores de pétalas ímpares, que brilhassem ao por do sol. A fotografia há de esmorecer, pensou, mas a moldura ganhará distinção, e a impressão primeira dos passantes, em domingo de cemitério, será a da distinção sóbria, e não a da finitude da imagem. Maria Lúcia quis esses brincos e esse broche na eternidade, e o seu sorriso de preferência, a fieira de pequenos dentes perolados, como botões minúsculos das golas das camisas.



12/04/2014

Bala de canela

Para a minha xará tão querida

Virgílio fez ontem 54 anos. Viúvo, grisalho, envelhecido, olhos encovados pelo peso das contas da mercearia. Vende de tudo. Ou vendia. Caixinha de fósforo, batata, Tubaína, pão francês fresquinho que o menino vai buscar ao forno antigo de dona Bastiana. Na prateleira mais lustrada, dentro de vidros leitosos, sonhos de valsa a granel para os gulosos e balas de canela, vermelhas e redondas. Como os calos novos nas mãos antigas de Virgílio.

Ciça vinha só de férias. Tinha a vida noutro canto, mas de vez em quando aparecia, e Virgílio espreitava pelo canto da porta. O carro cor de rosa em que todos reparavam. Ciça vinha à janela, o cabelo escuro ao vento, os olhos curiosos à procura dos olhos morenos na esquina da mercearia tosca. O rapaz descia os dois degraus com a pressa de quem sabia que o tempo é justiceiro cruel, e corria atrás do carro, a mão agarrada ao pacotinho marrom recheado do que Ciça mais gosta. São as balas de canela, e o punhado de sonhos de valsa.

Os vidros grossos de tampas de latão estão lá, com as balas e os sonhos de valsa sem envelhecer. Não mudaram de lugar, e nem Ciça e Virgílio se casaram. Virgílio acertou-se com a filha de dona Bastiana, e a mercearia fundiu-se com a padaria. Ciça ficou na cidade grande, onde a família lhe desenhava o futuro. A alegria de encontrar os olhos de Virgílio sucumbiu diante das luzes do longe. E Ciça não voltou mais, e nem Virgílio a foi procurar. Nem quando Bastiana morreu, e o sonho do carro virando a esquina lhe atravessava os dias, o cabelo ao vento, os olhos úmidos de saudades.

Hoje cedo, ao café com que a surpreendem na cama ao acordar, um pacotinho marrom faz o coração de Ciça parar de valsar dentro do peito: os sonhos estão ali dentro, agarrados às balas de canela que existem só pra disfarçar. Ciça tem os olhos cheios de água, esse amor que atravessa o tempo, e ele, ali, tão fresco e recente, sequer deve ter reparado.