28/02/2014

Alfa códigos

Esse mundo virtual é um nunca acabar de aprendizado e de inspiração. Entre ontem de noitinha e hoje, repare a quantidade de estímulos que recebi. Por essas e por outras é que não devemos jamais e nunca em hipótese alguma julgar nada nem ninguém, nem antes e nem depois de acharmos que sabemos alguma coisa. Tá confuso? É de propósito.

Ontem de noite, sem querer e um tanto a modo de higiene mental, embarquei numa produção poética coletiva, a partir de um dos poemas do livro Pele, autoria do amigo querido Aléssio Di Pascucci. Outros (Pedro e Má) juntaram-se ao "sarau virtual", como um deles disse, e lá ficamos, umas boas duas horas, mantendo versos quase-quase paralelísticos, regulares na forma, subvertendo-a às vezes com boas sacadas morfossintáticas. Muito bom mesmo. Uma espécie de deglutição do dia que passou, fiquei imaginando, juntando narrativa, poesia e uma dose on the rocks de terapia. Cada um saberá do que falava: num átimo, o que era meu tornou-se nosso, e assim mais fácil de digerir à noite. Bom, né?

Pouco antes disso, havia me deparado com a notícia (que chegou inbox, via uol) para a qual só consegui ligar um adjetivo fora de uso, muito particular do Baixo Minho: estantia. Fiquei estantia. Estupefacta até dizer chega. Mizael de Souza, o triplamente condenado assassino de Mércia Nakashima, a quem o destino fez colocar num dos cursos que dei no Presídio Militar Romão Gomes, declara que vai escrever um livro. O Mizael vai escrever um livro. Para mostrar o seu lado. Os 20 anos a que foi condenado em júri popular, num processo transmitido pela primeira vez ao vivo pela rádio e pela tv, não renderam ibope no facebook, provavelmente porque ele teve a sorte de ser condenado no mesmo dia em que os mensaleiros foram inocentados, e mais sorte ainda porque há uma parcela da memória das pessoas que se esvai como água ralo abaixo. Mizael, aluno do curso de Escrita Criativa do presídio em que cumprirá sua pena, não escreveu na altura uma única linha. Manteve-se numa certa (vou chamar de) soberba convencida, arrogante; deu-se ares de superioridade; quis posar de pop star imaginando ser reconhecido por qualquer um em qualquer lugar. Talvez convicto de que seria inocentado. Errou.

Agora, entro na rede pra ver quem andou se deitando nela. Mole e aleatoriamente vou lendo o que ele, o facebook, sugere que leia: torpor absoluto, que só não é pior porque é consciente. Sim, eu sei que estou lendo o que alguém da além-normalidade me induz a ler. Tudo bem. Manterei o senso crítico.

Mantive, mas não estava preparada para a estultice que cairia sob meus olhos. (Estultice, como estantia, é daquelas palavras que nunca tenho ocasião de usar. Responde por ações estúpidas, insensatas, imbecis e tolas. É o caso.) O blog "Ask Mi" (Mi é uma pessoa) apresenta um alentado (porque só com muito alento mesmo) estudo, recheado de conselhos, resultado de um workshop que a tal Mi realizou com Dora Porto, que por sua vez é orientadora familiar. Nunca ouvi falar dela, mas é na linha daquele "Casamento blindado" à venda em tudo quanto é posto de estrada. Juro que fui lendo achando que a tal Mi estava de sacanagem. Que no final daria risada dos aprendizados recebidos e diria valha-me deus em que século estamos.

Mas não. Os conselhos de "Aprenda a ser uma esposa irresistível" existem pra serem seguidos e são a prova de que não estamos perdidos e há (aleluia!) luz no fim do túnel! Já que

"... a mulher consegue sim fazer mil coisas ao mesmo tempo: comandar uma empresa, cuidar do marido e dos filhos, gerenciar a casa, trocar mil e-mails,  atender o telefone, ir ao supermercado, salão, academia, dentista, médico..... tudo no mesmo dia! Ufa!! E aguentam fazer mais de 2 coisas ao mesmo tempo! O homem nem tanto (...) Eles têm outro ritmo!"

então é melhor se precaver e imprimir e colocar na porta da geladeira a seguinte pirâmide orientadora:

Assim, tudo entrará nos eixos como estava previsto no felizes para sempre e você terá seu marido perpétua e eternamente ao seu lado, como atestam a maioria dos comentários à matéria do blog.

Não sei quem é Mi, não tenho nada que ver com o casamento ou as opiniões dela. Nem as discuto, porque bem se diz que entre marido e mulher não se mete a colher. Cada um saberá das sandices, das convenções, das paranoias e das concessões das suas relações íntimas. Eu tenho as minhas, você terá as suas. Mas é impossível não pensar nessa parcela feminina que em pleno século XXI olha para a sua relação como se ela acontecesse na década de 60 do século passado, aquela mesma década que enormes contingentes de donas de casa tentaram transformar ( e veja: sem considerar que nós não vivemos mesmo na década de 60, onde as mulheres não trabalhavam fora de casa etc. etc. etc.). Isso, por um lado.

Por outro (vá conferindo na tabela), imaginar que o homem (e só ele!) queira uma fabulosa parceira sexual, e que lhe retribua as benesses sendo afetuoso, que à estudada atração que a mulher exerça o homem responderá com honestidade (leia-se: no other women), que o apoio no lar da mulher equivalha ao apoio financeiro do homem, e que a admiração feminina por seu homem criará/manterá nele qualquer forma de compromisso, é demais!

(Antes de ir, passo no mural do Ivan, que acabou de compartilhar uma receita de ovos cozidos em creme de espinafre de dar água na boca. E água na boca é o que há!)



Quer ler a matéria toda da Mi? Clique aqui:

A pirâmide puxei de lá, e os alfacódigos são (claro!) do The Matrix!

Mas bom mesmo é terminar com a tal receita de espinafres e ovos!


26/02/2014

Forma e sentido

Melhor que pensar é sentir. E melhor que compensar é consentir. Melhor do que pensar o que o outro pensa é sentir o que ele sente. Gosto, demais da conta como diz minha amiga Valéria, quando as palavras se encaixam dentro de mim em forma e sentido. E gosto de sentir com o que o outro sente. E, portanto, consinto: tanto faz que pensemos igual ou diferente. Ô sossego.

As palavras têm caprichos: pensa-se sobre elas, e elas ficam mudas, trocistas. Ocupamo-nos de outras coisas, distraídos como borboletas, e elas correm ao nosso encontro, querem contar-nos segredos. Não porque antes não quisessem: nós é que não as abordamos como elas necessitam. Leveza, abertura e sorriso: é disso que as palavras precisam para entrarem dentro de nós e comporem forma e sentido.

Tudo isso a troco do que, pensará você. Porque fiquei pensando um tempo na palavra espiritualidade, surgida a meio de uma conversa gostosa como banheira perfumada. Pensei na sua morfologia, esse ser substantivo que se ergue do raso das coisas para afirmar-se existente. Pensei naquilo que dela dizem os dicionários: qualidade ou condição do que é espiritual. E parei de pensar, porque a nada me conduzia. E senti a tal conversa, mais do que a ouvi.

As palavras precisam da nossa existência mais humana. Daquelas qualidades que se encontram no lobo frontal, como escreveria um neurocientista. As que fizeram Jung dizer "Eu não preciso acreditar em Deus. Eu sei". As que por causa dos gregos nós chamamos de entusiasmo: en-theos, o Deus dentro. As que fazem Leonardo Boff escrever que "é o saber-se pertencente a algo maior". E as que reverbera Daniel Bohm, discípulo querido de Einstein, quando fala da existência de uma "ordem maior subjacente à ordem sensível". São aquelas qualidades em nós que nos humanizam (e que Antônio Cândido diz ser a arte), é aquilo que nos retira do limbo do mundo, do limbo de nós mesmos, e nos estende novos horizontes, possibilidades, visões, encontros. A tal da espiritualidade. Por isso difícil pensá-la e mais tranquilo senti-la. Ou consenti-la.

Freud considerava a religião uma neurose coletiva, uma projeção do complexo pai/mãe num "Pai maior". Uma forma também de evitar psicoses: a neurose ilude, mas permite que se viva. Do ruim, o menos pior, ou algo assim. Os mistérios religiosos são por definição caminhos grupais delimitados por códigos de conduta restritos e precisos, conjuntos de rituais e crenças estabelecidos dentro de instituições e organizações. Igrejas, religiões: sobre a espiritualidade não sei o que Freud pensava e arrisco errar, mas creio que foi Jung quem lhe dedicou tempo e pensamento, quem descortinou por trás da existência humana essa sobre-existência, essa transcendência a que chamou (erro de novo, talvez) espiritualidade. Coisa do espírito, dessa nossa parcela que é a que nos confere o estado de humano, e por isso dizia eu ali em cima que as palavras precisam do nosso mais humano: porque elas são puro exercício de espiritualidade, são o próprio espírito em ação. Quando deixamos, claro e óbvio como vidraça recém lavada.

Mas isso sou eu, que gosto delas e com elas me entendo. Para outros será a espiritualidade outra coisa, porque é momento e caminho individual e pessoal, uma jornada que é um estado, e não um modo de vida. Esse fio condutor que une tudo a tudo reconhece-se assim que uma mudança interna e profunda acontece. O que a prepara, à nossa mudança, é o nosso movimento, o nosso exercício de relação e reconhecimento disso que é mais que nós mesmos e que somos nós ao mesmo tempo. O novo rumo, o novo sentido são os atributos visíveis da espiritualidade.

O que pressupõe o exercício da busca, e por isso nessa conversa surgia esse atributo: espiritualidade é exercício. Sem dúvida. São passos que se dão, com um norte intuído, que a alma percebe e persegue. Às vezes, o norte não leva a canto algum. E perde-se tempo. Ou não. Porque cada caminho é caminho e cada ser é ser. E por isso é mais fácil consentir, e aproximar-se do outro pelas forças que vivem no outro lado do lobo frontal, e que ganha o nome de coração. A geografia humana não obedece aos olhos da razão.

Leio num site que atribui a Lucas, 10, 25-37 palavras que não saíram de sua pena. Mas faz sentido: "Espiritualidade é tudo que é capaz de produzir em mim uma mudança de pensamento, atitudes e conceitos, que me colocam num novo rumo e me oferecem um novo sentido para a vida". Por isso, e outra vez consentindo: como, pela graça de deus, poderia alguém dizer a um outro alguém que a sua escolha de caminho está errada? Que a sua vivência espiritual está equivocada? Que seu caminho a nada conduzirá? O exercício da dúvida, outro atributo da espiritualidade humana, freia-nos a língua, impede-nos de dizer o indizível, de julgar o injulgável. Nos caminhos do espírito, a liberdade precisa imperar serena.

E, assim como nos céus, na terra.


19/02/2014

Marwan, Philomena, Hilda, Rosa e Chico

Devo ter visto em sonhos esse menino de só 4 anos chamado Marwan. Acompanho as notícias da crise no mundo árabe a distância segura, por detrás dessa tela onde é preciso filtrar e decodificar com constância. Desconfio de manchetes. Provavelmente porque prefira as coisas e as pessoas que não se constroem para chamar a minha atenção, mas a chamam por serem o que são. Quanto menos filtros, quanto menos encenações, melhor. Descubro, agora cedo, que Marwan não estava perdido e solitário em meio a um deserto do tamanho do mundo. A revoltante imagem do garotinho vagando pelo deserto com uma sacola na mão rodou o mundo inteiro, e sabê-lo afinal a poucos metros da família, perdido apenas na desordem do momento de atravessar a fronteira entre a Síria e Jordânia, quase parece querer retirar-lhe força. Marwan agora vive em Zaatari, um dos maiores campos de refugiados sírios. Aberto em 2012, cresceu a uma média de 1500 a 2000 pessoas por dia. Em julho de 2013, eram 144.000 refugiados. Marwan integra essa que é hoje uma das maiores cidades do país. A sua tragédia pessoal, longe de diminuir, aumenta. Catastroficamente.

Enquanto Marwan descobre sua nova morada, eu me sento confortável numa poltrona de cinema. Não sei como juntar as injustiças do mundo dentro do meu coração. Assisto Philomena. A saga de uma irlandesa atrás de seu filho, dado por adoção pelas freiras do orfanato em que vivia. Triste, hilário e emocionante, daquela forma que (acho) apenas os ingleses conseguem. Philomena é uma mulher de verdade, de 80 anos, que está neste momento engajada em forçar o governo irlandês a abrir os registros das adoções feitas no país. A sua tragédia pessoal, imortalizada como a de Marwan através de imagens e palavras, vem juntar-se às do resto do dia.

Hilda e Rosa trabalham há mais de 30 anos no mesmo salão de cabeleireiro. Nesta luta insana que travo comigo mesma para eliminar a onicofagia (palavra muito mais fina do que "roer as unhas"), encontro pérolas dentro desses lugares. Assim que sei que trabalham ali há tantos anos, e que esse salão em pleno Santo Amaro tem mais de 50 anos de idade, imagino um sem fim de histórias dos áureos tempos, as modas passando na minha vitrine pessoal num entusiasmo ululante. "Ah, Rosa, você deve ter atendido pessoas bem diferentes...". Resposta lacônica: "Que nada, gente é tudo igual". E mesmo que aos poucos Hilda comece a contar uma coisa daqui, outra dali, até chegar ao sobrinho que morreu com 4 anos, e que ela não perdoa a cunhada, porque foi ela quem o matou (a barbárie à solta por todos os lados, dois meninos de 4 anos submetidos a elas todas), eu fico com essa da Hilda. Gente é tudo igual.

Como o Chico, morador de rua do bairro de Santo Amaro, como se apresenta assim que paro o carro na padaria e ele me pede uns trocados. Convido-o para tomar um café e não damos tempo ao entregador de comanda, que procura com os olhos o gerente e não sabe o que fazer com a visita incômoda. Fico me perguntando se as pessoas que olham de lado terão se emocionado com Philomena e se desesperado com a foto de Marwan logo cedo ao ler o jornal. E penso em Hilda, e na assustadora lucidez do seu "gente é tudo igual".

E agora, quando já não sabia mais como juntar tudo isso em algo que me faça por os pés pra andar e fazer algo de útil na vida, uma amiga querida e combativa oferece-me de bandeja a frase de Simone de Beauvoir: "O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos". E eu penso, e respondo-lhe: quem, dentre nós, poderá jogar a primeira pedra? Quem, dentre nós, poderá dizer-se inocente do destino de todos os Marwans, de todas as Philomenas, todas as Hildas, todas as Rosas, todos os Chicos?


Imagem: Zaatari Camp, Jordânia. afp/getty images

Últimas notícias sobre o menino encontrado no seu peregrinar:
http://www.dailymail.co.uk/news/article-2562183/The-truth-heartbreaking-photograph-Syrian-boy-cross-border-separated-family-desert.html?ico=worldnews%5Eheadlines

Sobre o campo de Zaatari:
http://en.wikipedia.org/wiki/Zaatari_refugee_camp

Sobre Philomena, a pessoa
http://www.theguardian.com/film/2014/feb/05/pope-francis-philomena-lee-steve-coogan

14/02/2014

Com as estrelas

Eu, como várias outras dezenas de mortais, leio meu horóscopo todos os dias. Na maioria deles, o que o pequeno parágrafo faz por mim é oferecer-me uma nova luz que ilumine um detalhe ensombrecido do meu dia, ou da minha vida. Parece-me que o fato de se olhar com tamanho grau de atenção, minúcia e detalhe para um ponto luminoso no céu, e para seu encontro com outros, concede qualidades raras e importantes. E é isso que fazem astrônomos e astrólogos, figuras que aliás em sua origem eram a mesma coisa. 

Babilônicos e egípcios observavam o céu com uma sistemática absoluta, o que os fez perceber a influência que tem o movimento dos astros sobre a terra, inclusive sobre as internalidades dos seres bípedes que lá vivem, que no caso somos nós. Estrelas são coisas que brilham, e a sua observação faz outras coisas brilharem também. Por isso gosto de ler meu horóscopo: porque parte de uma região do universo em que as coisas brilham. Sweid, a raiz indo-europeia de estrela, significa isso mesmo: brilhar. Ao longo do tempo, sweid deu à luz sidus-sideris, a maneira sonora como os latinos falavam das estruturas brilhantes sobre suas cabeças. De forma entranhada, o sidério amalgamou-se a outros lugares da nossa vida, de tal forma que nem o percebemos mais. E por não saber que está ali, deixamos que passe batido.

É o que acontece com a palavra considerar. Deriva, como se percebe logo, de sidério. Portanto, da observação dos pontos luminosos. Na sua origem, considerare significava consultar em seu conjunto a posição dos astros, para comparar com algum fato acontecido ou vaticinar algum a acontecer, o que corrobora aquela teoria de que astrônomos e astrólogos tenham desenvolvido, ao longo de gerações de observação atenta, a possibilidade de encontrar relações entre os corpos celestes e as nossas vidas. Para nós, nos dias de hoje e de forma comum, considerar é observar algo atentamente: é levar algo em conta, dar atenção, pesar, examinar, apreciar, meditar em.

Ou seja: quando se considera algo ou alguém é porque se lhe presta atenção: observa-se fato ou indivíduo com a mesma sistemática e o mesmo grau de concentração que um astrônomo dedica a uma supernova. Por considerar-se, passa-se a saber mais do seu movimento particular, das partículas que emite, daquilo que lhe provoca nebulosidade e desconforto e das condições que fazem com que brilhe com mais intensidade. Considerar demanda dedicação e tempo, vontade e ação, curiosidade e interesse: sem o olho que encosta na luneta e se detém naquilo que a princípio parece distante e incompreensível, não há como saber nada sobre nada.

Levar alguém em consideração é carregá-lo dentro de si com esse grau de atenção. Desconsiderar é esquecer. Desconsiderar é deixar de prestar atenção. Desconsiderar é fechar a cúpula do observatório particular porque a vida às vezes incomoda, porque se ficou cansado. As estrelas, pensamos, amanhã continuarão no céu. E vamos dormir o sono dos justos. Mas as estrelas morrem longe de nós, embora o seu brilho demore muitos, muitos anos para apagar-se do nosso próprio céu. Só o olhar atento, cuidadoso, amoroso, o olhar tão gentil quanto o toque de um indicador sobre a pele virgem de um recém nascido, saberá dizer se o brilho que vemos no céu é de uma estrela que ainda vive, ou de uma estrela que já se tornou poeira cósmica, e da qual perdemos o tempo, o brilho, a entrega e a vida. 

Por isso, penso eu com meu horóscopo de hoje, quem tem tempo a perder, que o perca. Quando nasce em meu céu uma estrela, faço o que devo: dedico-lhe o olhar amoroso do astrônomo, dedico-lhe tempo e cuidado, pensamento e ação. E aguardo o tempo dessa nova luz cruzar seu olhar comigo, e desse encontro brilhante nascer algo a que podemos chamar o que quisermos, porque pertence a nós dois, e a ninguém mais diz respeito. E quando o tempo for passado, que o cosmos nos absorva.


Imagem: aquarelogravura de Ivani Ranieri

12/02/2014

Sensações, Sentimentos e Disposições

Dizem que no tempo em que o mundo se formava, existiam no universo três qualidades distintas: as Sensações, os Sentimentos e as Disposições.

As Sensações situavam-se à superfície da pele dos seres: delas derivam, em nós, a sensação de frio ou calor, de lisura ou aspereza, de delicadeza ou brutalidade. Naquele tempo longínquo, as Sensações respiravam livremente, sem os constrangimentos e as dificuldades que nós, seres humanos, trouxemos para a parcela de universo que nos foi reservada.

Os Sentimentos situavam-se poucos centímetros abaixo da pele dos seres. Talvez seja importante saber que a pele, nos seres dos tempos antigos, era a sua mais poderosa força, seu órgão mais sensível, mais perceptível e completo. Por isso, e não por outros motivos, as qualidades dos seres podiam ser observadas e sentidas através da pele. Coisa que nós, seres de hoje, também conseguimos, mas logo calamos em nós essas percepções tão profundas, porque a Obrigação, a Responsabilidade e a Culpa são qualidades que sobrepusemos aos Sentimentos.

Os Sentimentos, assim, viviam logo sob a pele, reino das Sensações. Nutriam-se daquilo que atravessava a então lisa e flexível membrana, recebiam as emanações das Sensações, e irradiavam-nas em forma de luz e algo que entretanto perdeu o nome, por todas as partes de dentro dos seres. Eram alimento da mais pura qualidade, e rebrilhavam na pele em seu caminho de volta. Aquilo que os olhos deixam transbordar são derivações atuais da qualidade Sentimentos. E por isso, quando o Poeta disse, "Esse seu olhar/quando encontra o meu/fala de umas coisas/que eu não posso acreditar", está realmente acessando essa memória ancestral daquilo que foram os Sentimentos na origem dos seres.

As Disposições vivem em regiões mais profundas. São, sabemos pelos antigos escritos, Sensações e Sentimentos transmutados. Tendem a ser mais lentas, mais firmes, menos abertas, mais silenciosas, talvez menos alegres. Se fosse preciso comparar, poder-se-ia dizer que as Sensações são as mais voláteis, os Sentimentos os mais plásticos e as Disposições as mais persistentes.

As Disposições gostam particularmente de tudo o que já foi esgotado e dissolvido. Desse fim a que tudo chega, resgatam a vida que a tudo subjaz. Observam-na, reviram-na, deglutem-na, amalgamam-na a sua própria matéria, e fazem-na reviver. Queimam como fênix. São os brotos nos campos requeimados. Resgatam do grande caldo amornecido que as Sensações e os Sentimentos produzem, as partículas de pura luz. Às vezes, são infinitamente pequenas, mas não importa, porque em sua evolução as Disposições aprenderam a sobreviver de quase nada. Dentro delas, quase nada é um mundo que não termina.

E as Disposições alegram-se, porque a sua tarefa é a transcendência da morte, e só elas sabem que por trás de tudo está tudo o que há. As Disposições são camaleônicas: tingem-se, vestem-se, despem-se. Reviram todos os seus avessos e ressurgem da maneira que for precisa. Só as Disposições não desistem. E só as Disposições reconhecem a mão do destino. Tem razão aquele que diz delas serem concretas: são pura concretude num mundo que tende à dissolução dos seres.




Lemniscata de luz, símbolo do amor infinito, 

06/02/2014

Insular, verbo feminino




Há palavras que dá gosto fazer passear por dentro da boca. Repare nesta, uma das minhas preferidas. Tão grande que precisa de um parágrafo só para ela.

Insular.

Gosto de pensá-la verbo, e de pensá-la em ação dentro da minha vida. Insulam-se as coisas à minha volta, agora que escrevo. Insulam-se os meus pensamentos: rodeio-os dessa substância chamada Palavra que, além de alimento, é aquilo que não me trai. Insulam-se os meus dias, e torno-me ilha.

Paro um instante, antes de prosseguir, para dizer a palavra em voz alta. Insular: sai-me por entre os dentes, sibilante como um braço de água virgem. Demoro-me nas vogais, para que o vento dessa água possa transportar-se para dentro das palavras escritas. Tenho cada vez mais a impressão de que as palavras nascem de dentro do vento. Tenho um amigo que ouve vozes-vento. Eu insulo vozes nascidas no vento.

As ilhas não são apenas palavras de género feminino: as ilhas são seres femininos. Veem-se ao longe antes de serem tidas de perto. Um assombro, estar-se embarcado durante dias e de repente, em meio ao espelho azul que é o mar, ver surgir a Ilha como que num encantamento. Todo mar é masculino, assim como toda ilha é feminina. 

As ilhas permanecem em meio a vagas e serenos, mares de todos os tipos lambem as suas praias, nuvens de espuma marítima alçam-se na direção dos penhascos mais altos das suas encostas. Nelas, abrem-se grutas secretas, onde só os primeiros olhos conseguem chegar e ver. Há ilhas lisas e calmas: toda a sua extensão se desdobra diante dos olhos sem cautela alguma. Há ilhas escarpadas, arredias, como cervos assustados ao ouvirem o tiro distante. Há ilhas que se dobram sobre si mesmas, reinventam-se a cada estação para não sucumbirem.

E há ilhas que se reconstroem, após a invasão das ondas. Choram as suas dores internas em lugares que ser algum conhece. Curam-se em silêncios de grito engolido. Há ilhas tenazes, persistentes, teimosas. O mar cobre-as inteiramente, quase parecem desaparecer. Mas os mares sempre, sempre refluem, mais dia menos dia. Vão-se em busca do seu tamanho, conscientes da ferida que é a sua natureza aquática. As ilhas reaparecem no lugar onde sempre estiveram. São novas, e são as mesmas.

Há ilhas cheias de remansos e lugares bons para os homens aportarem nas embarcações que usam como cavalos do mar. Baías e enseadas protegidas, o sol a pino a secar os corpos que nadam através das águas salgadas, do barco à praia. Estas são as ilhas lugares de acolhimento. Abrem-se sem conhecerem o que é o pudor. Permitem a entrada àquele que deseja entrar. As suas árvores, os seus arbustos, ainda que precisem de facas que os deitem ao chão, não sabem opor resistência que os homens não possam vencer. E por isso as ilhas são às vezes tomadas, às vezes saqueadas, às vezes roubadas, às vezes invadidas, às vezes magoadas.

Mas há um território inconquistável em cada ilha. A esse território, ninguém subjuga, permanece escondido e protegido e inviolável. Está por baixo dela, na escuridão do mar, espaço único onde ilha e mar são coisa única e se misturam e convivem como se fossem cada um sozinho o mesmo lugar do outro.

Gosto de pensar nesse lado de baixo das ilhas, braços de rocha a estenderem-se numerosos até o fim absoluto da terra. Imaginá-lo cheio de reentrâncias, por onde a água do mar caminha com delicadeza e suavidade, os dedos cuidadosos estendidos na direção dos lugares mais vulneráveis, e proibidos, e sensíveis. Pode haver tempestades à tona d'água: nesse lugar do embaixo, a vida corre em outro tempo, em outro mundo, de outras formas. 

Talvez seja esse o lado mais feminino da ilha: um lado que não é lado mas absoluto todo, um lado iridiscente, a luz própria de toda ilha a iluminar o mundo sem luz do fundo do mar. E o mar, então, azula-se em tons nunca vistos, um passeio do negro mais escuro aos cerúleos, aos cianos, aos marinhos, aos cobaltos, aos cárdeos, aos safiras mais faiscantes. Surgem seres vermelhos, pequenos camarões de grandes olhos, que sorriem para esse mar transfigurado. 

A ilha revela as cores do mar. Amalgama-se às suas pernas, ao seu tronco, a cada uma das partes sem nome que o mar não nos diz ter, para que achemos que ele é apenas uma massa compacta de água, e sal. Mas não: o mar, quando descoberto dentro da luz do lado escuro da ilha, cresce em tamanho e poder, e é verdadeiramente o mar que nasceu para ser. À ilha, basta-lhe insular.


Publicado originalmente em