29/05/2013

Homeostase

Minha vida é uma homeostase entre o que eu quero, deixei de querer, e o que sei que nunca vou ter.
Moreno Ribeiro

Entre as várias bençãos que se anunciam e se estabelecem ao se terem filhos, algumas estão no campo do imponderável. Um dos que tenho a sorte de ter trazido ao mundo aponta-me, desde o outro lado do mar, uma porta de saída para a aflição do momento: homeostase. Demorei um tempo até conseguir acessar a vaga gaveta onde foram alojar-se as aulas de biofísica. E o que lá encontrei foi  algo relativo a equilíbrio, o que é bom e necessário, e eu diria até que urgente e inadiável.

Acontece em sistemas abertos, a homeostase, e dedica-se a regular o ambiente interno para manter uma condição estável. Quem anda por perto de mim nos últimos dias deve estar gargalhando da precariedade homeostática que vem observando...

Os sistemas homeostáticos, que são abertos, e por isso se deixam permear, às vezes até invadir, além de extremamente estáveis são, ao mesmo tempo, muito imprevisíveis. Tão imprevisíveis, coitados, que passam a vida imaginando e organizando formas de manterem sempre e a todo momento o próprio equilíbrio. Parecem gente. Nessa doidice de se manterem balanceados, usam duas formas de se estabilizarem. Uma positiva, outra negativa. Ou colocam em ação uma força contrária que discipline aquela que se descontrolou, ou dão o gás todo a essa descontrolada, até que ela se canse dela mesma e decida parar de causar (espero ter entendido direito...). E assim os incomodados se retiram e o belo do sistema mantém-se aberto e equilibrado. Parece um sonho. Um tanto paradoxal, já que essa coisa aberta é, ao mesmo tempo, estável e imprevisível...

É assim que anda meu coração, para quem se pergunta a troco do quê tudo isto. Como de praxe, aberto: quem quer um coração fechado?! E, como sistema que é, porque composto de tantas partes, busca tenazmente o equilíbrio e com a mesma tenacidade perde-o de vista a toda imprevisibilidade que se apresente. Costumava, nos tempos idos do antigamente de uns anos atrás, ocupar-me do retorno à estabilidade através da retroalimentação positiva. Mas de repente (dizem-me aqui no bate-papo que deve ser da idade, só não sei de quem) parece que me dedico com afinco a retroalimentar-me negativamente, dando o gás todo àquilo que me desnorteia e, pasme-se, fere!

Este meu filho, com poucos minutos de nascido, olhava para mim com olhos de não reconhecer o mundo a que chegava. Hoje, que não tenho seus olhos por perto, olho-o nas palavras que escreve e vislumbro dentro de mim o mundo que quis construir no dia em que ele chegou. Graças às suas palavras, e ao meu coração que teimosa quero manter aberto e pulsantemente amoroso, tenho as minhas de volta. Com alívio imenso, porque o silêncio dos dedos que escrevem é o pior de todos os silêncios, próprios e alheios.


(Para quem sentir falta de saber a que propósito essa página de um livro, fotografado há semanas em São Paulo, eu sugiro que leia de novo e crie o seu próprio propósito. Vacas são seres que ruminam, e que precisam digerir as coisas várias vezes até estas se tornarem  parte delas mesmas.

22/05/2013

Escavação de memória



Marisol desembarcou em Guarulhos hoje à tarde. Uma mistura de sentir-se perdida e haver-se encontrado. Está sozinha, tudo lhe parece grande e lhe é desconhecido, mas ainda assim consegue encontrar um espaço para si mesma numa cidade em que a memória está por todos os cantos. Com a mente cheia de imagens, começo da ação da memória, acaba de sentar-se na mesa ao meu lado no restaurante espanhol para onde me deslocaram nesta noite paulistana.

Marisol olha o escuro noturno pela janela, protegida pelo voil da meia cortina. Encolhe-se na cadeira em que se senta e está vestida de negro. Ninguém a seu lado. Balança a perna cruzada com o ritmo de quem espera algo que não acontece. Pediu, como eu, um triângulo alto de tortilla. Neste momento, ocupa-se em esmigalhá-lo com o garfo. Seus dedos lembram-me outros, distraídos e espanhois como os dela. São eles que meus olhos recortam, depois de recortá-la a ela, dentro deste espaço onde as pessoas se acotovelam e pedem, ao balcão, mais um tinto de verano. Apesar do frio.

Marisol abre-me este buraco côncavo escavado dentro dos ossos a que chamamos memória. Depende do osso a quantidade da dor. Os sólidos e espessos são os mais fortes. Ou talvez as memórias mais sólidas e espessas. Não sei. Difícil é andar os dias no trabalho de processar as memórias alheias - digestão lenta, incomum, gritando por enzimas que reduzam com mais rapidez essa amargura com gosto de término que leio nos papeis que me entregam. Cavam buracos convexos, absurdos paradoxos anatômicos que a razão não tem ferramentas para deglutir. E assim, do osso, migram ao coração, que em desespero as engole e faz passar de um a outro ventríloquo, uma e outra vez e outra e uma ainda.

Restaurantes, que são justamente lugares onde as memórias e as digestões confluem, são bons lugares nesses momentos de aperto. Este, em especial, e hoje com Marisol como testemunha, é um desses bons lugares - o tom certo do barulho que fazem as vozes na conversa, os copos ao serem lavados atrás do balcão, a porta da cozinha no entra-e-sai de pratos. Copos cheios, talheres ocupados, mente sossegada. Pode ser que não resolva, mas alivia, enquanto se espera pela próxima manhã.


O Maripili ("tasca española"), fica na Alexandre Dumas, 1152, zona sul de São Paulo. Vale a pena pelo acolhedor salão, nem pequeno nem grande, os garçons atenciosos na medida certa, os preços que não pedem fígados e, sobretudo, a variedade de pratos espanhois de fazer pedir por mais. A tortilla, essa que Marisol e eu comíamos, é das verdadeiras, como se nos sentássemos em Sevilha diante da Giralda e pedíssemos uma igual. Difícil é ficar no primeiro pedaço apenas...  Como de todas as vezes que lá cheguei estava lotada, vale a pena o telefone: 11-5181.4422)