26/03/2013

Domingo de Ramos (às minhas tias)


Apesar de poder ter vários motivos para ter ido à missa neste domingo de Ramos, apenas um me fez por as pernas em movimento. Poderia ter ido porque, de fato, acho que este é o mais bonito domingo do ano. E isso talvez se deva (mas não é verdade) à cena de Jesus entrando em Jerusalém ao som de Hossana-hei-sana-sana-sana-ho de um Jesus Christ Superstar que vi até os olhos me doerem. Ou talvez se deva (embora também não seja verdade) ao trecho do evangelho de Lucas, em que Jesus sabe o que se vai passar daí a horas com os discípulos, e eu inquieta “mas eles não perceberam o que aconteceu?!” porque Lucas não diz nada do que os discípulos sentiram. Aliás, Lucas conta o que se vê, não o que se sente. (É aquele mesmo trecho em que Lucas diz que Jesus diz, com uma atualidade que nos acompanha desde sempre, que “se eles se calarem, as pedras gritarão”.)

Mas não. Mesmo sendo este o mais bonito domingo do ano, não é por isso que vou à missa de Ramos, e que me lembro de levar um galho de folha de palmeira, e que entro calada e um tanto alheia dentro da igreja, e que se me enchem os olhos de lágrimas quando a procissão entra sacudindo as folhas e a igreja retumba com o padre (que canta bem) e se enche de verde, seja ou não a cor da esperança.

Estou aqui porque lá, longe, do outro lado do mar, sei que as minhas tias estão também em alguma missa de domingo de Ramos. Pressinto-lhes o passo nos adros de todas as igrejas em que estiverem, e quero que saibam que estou num adro semelhante. Assim que fecham os olhos, que também se lhes enchem de lágrimas, quero que saibam que também os meus transbordam. E não porque os padres cantem bem, ou a imensidão verde dos campos do Senhor invada as naves de todas as igrejas em que estamos. Não por isso.

Estou aqui porque preciso fazer algo que me diga, e concretize, e garanta, e torne nítido como uma manhã açoriana, que o tempo e o espaço são nossas criações, e nada mais. Que não nos vamos, porque sequer chegamos. Que o lá, e o aqui, e o do outro lado são as mesmas coisas, vestidas de tules diferentes.

E por isso, porque são criações e não realidades, com os olhos fechados neste domingo de Ramos, vejo a mais nova das minhas tias. Vejo-a no seu riso rouco. Vejo-a nos seus dedos que como os meus têm as unhas roídas. Vejo-a na sua recitação acelerada do Pai Nosso nas missas de domingo. Vejo-a deitada ao meu lado, ambas cativas de hepatites gêmeas. Vejo-a hábil à máquina de costura. Vejo-a modelando flores de papel para uma festa na garagem nas Caldas. Vejo-a gargalhando. Vejo-a por entre as nuvens de fumo dos seus cigarros. E vejo-a quando uma voz tão conhecida diz “Ó Manela, então já cá chegaste?!” e eu viro-me e são ela e meu pai, que me acenam do outro lado do tempo e do espaço, e me dizem “até logo” e se afastam, porque a minha avó os chamou também de outro lado, e eu fecho os olhos porque as saudades impedem-me de querer ver o resto.

E volto à missa, e ao domingo de Ramos: esse domingo tão lindo, acho, porque nos diz que tudo o que será já é, e nós sabemos. Só fazemos de conta, às vezes, que não.


03/03/2013

O lago de Isaura

Este é o último dia. Isaura muda-se para um lugar menor, mais apertado. Escolheu-o pelas janelas, que são maiores e deixam entrar mais luz. Tanto faz que o espaço seja menor, mas porque é menor, e bem menor, Isaura está sentada no chão de ladrilhos do seu ainda apartamento, arrumando em caixas estreitas o que decidiu deixar. Entre todas as coisas, há aquelas que não levará, e nem ao peso da recordação que se lhes amarrou. As mãos de Isaura acariciam as superfícies. Ainda estão quentes. A garrafa vazia de café. Os lábios tatuados no copo de vidro. A sombra dos cigarros no cinzeiro queimado. E outras coisas, que não tiveram tempo de ganhar nome. Também as palavras, aquelas de natureza volátil como cheiro de nuvem, aquelas que aos poucos se apagam (se apagarão) das telas das retinas dos olhos de Isaura. Também elas precisam ser encaixotadas. Como pinturas complexas e vibrantes de consistência líquida, são palavras que se descolam das retinas. Isaura observa o seu cair diante do espelho baço do banheiro. E lembra-se da escova de dentes, e volta à sala para colocá-la junto às demais coisas. Armindo ganha forma no chão da sala, feito das coisas que se lhe encostaram. Nenhuma marca de sua música, apenas as marcas de seus dedos, e mesmo elas tão difíceis de serem recriadas.

Isaura fecha os olhos, porque toda essa água que cai diante do espelho lhe dói. Porque a garrafa de café lhe dói. Porque a caixa em que guarda o café sem abrir lhe dói. O presente sem entregar lhe dói. O cinto esquecido lhe dói. Mas a água continua sem atenção à dor, e já está o chão do apartamento cheio dela, e sobe pelas paredes como se subisse através da pele da casa de Isaura, e levasse as últimas marcas. A água escorre pela garganta de Isaura, lava-lhe o corpo por dentro. Está tudo inundado, a garganta, o sexo, os espaços entre os dedos dos pés, o corpo amarrado ao colchão. Isaura escoa-se em água e está dentro do lago. Costuma ser um sonho, isso, mas Isaura sente a pele molhada como se secasse ao sol em cima de uma pedra, ao lado do rio de onde a içam quando querem.

Há um homem, na margem desse lago, e Isaura gostaria que fosse Armindo. Mas Armindo está longe, rodeando outros lagos, e ele, diz Isaura por entre a água que a invade, ele, mesmo assim, com tudo, ainda assim - Armindo não riria, e o homem na margem ri. Mas enquanto a água lhe sobe narinas acima, Isaura sabe que ninguém a não ser Armindo saberia que esse é o lago do seu afogamento. E como o riso na margem é tudo o que ela ouve, tudo o que ela ouve é o riso de Armindo, aquele que sabe do lago. Os olhos de Isaura transbordados da água do lago, os olhos de Isaura inundados da sua própria água. Os olhos de Isaura dentro do lago - esse lago parado como é da natureza dos lagos. Uma ilusão salobra, um silêncio aquático liso, interrompido pelas notas distantes do riso do homem à margem, de Armindo à margem. 

A escuridão calada da profundeza das águas move-se por baixo, sem que ninguém a veja, mas Isaura sente-a aliciando-lhe as plantas dos pés, enredando-se como hera em suas pernas, puxando-a para baixo. Pode-se fazer de conta que o lago não é triste. Pode-se fazer de conta que se pode ficar o tempo que se quiser dentro dele, as narinas cheias do cheiro antigo que o corpo reconhece, e fechar os olhos e imaginar uma outra noite qualquer em que se consiga escapar ao enfiar os pés no lago e ser sugado por ele. Fazer de conta que a solidão do lago é diferente da solidão das outras coisas, e estas diferentes da solidão dos abismos, e esta da solidão das noites, da solidão do tempo, da solidão do abandono. E fazer de conta que há um cheiro flutuando ao de cima do lago, quando não há nada a não ser o riso do homem à margem.

E o lago penetra Isaura, ela permite-lhe passagem para dentro de seus pulmões, presença de líquido onde só o ar faz morada pacífica. E só o que se ouve é aquele ruído rouco de riso de que já se falou tanto, no lago que sobe em direção à garganta. E então a janela fechada, a luz e a água que agora vive no chão da casa de Isaura invadem as narinas, e o lago está lá, ainda, seu silêncio encrustado, de mãos dadas com o riso à margem. Tudo diluído nesse fim de apartamento, quando a dor transborda os olhos para que a alma passe.