28/01/2013

Coisas que parecem iguais

Não sou espírita, como não sou muitas outras coisas que me interessam, e das quais me aproximo de vez em quando. É bom, por vezes, precisar de ajuda e recebê-la, pelos caminhos que for; tanto quanto oferecê-la a quem dela precisa. Nessas trocas, nem sempre iguais, nem sempre equivalentes, há momentos em que é preciso pedir socorro, atitude que se aprende a ter, acho que não se nasce sabendo. O socorro é pedido, e depois é ficar atento, porque ele vem, na forma que escolher. Ontem, por exemplo, a meio de uma palestra no centro espírita que tenho frequentado, soube que há uma grande diferença entre acreditar e ter fé. Mas grande mesmo.

Voltei para casa pensando nisso, o que normalmente, dentro desta minha estrutura imperfeita, resulta ser positivo. No fundo, acreditar não é difícil. Primeiro porque, como se diz, cada um acredita no que quer, o que não deve incorrer em grandes prejuízos para ninguém. Há quem acredite em vida extraterrestre, em reencarnação, em comunicação entre espécies, em gnomos e fadas. Escolhe-se no que se acredita. Seja da boca pra fora ou da boca pra dentro, acreditar não demanda muito mais do que observar e anuir, consentir, concordar. Quase que uma atividade passiva. Acreditar nos outros: fácil, desde que não criemos expectativas que eles não possam atender e nem imagens a que não possam corresponder. E, assim como se acredita, é fácil desacreditar. Fácil e rápido.

Já a fé é feita de material distinto. A fé implica em viver conforme aquilo em que se acredita.  É ação, a fé. Decisão. Compromisso. Pode-se acreditar, mas não ter fé. Pode-se acreditar, mas não se conduzir conforme aquilo em que se acredita. Pode-se ter fé na vida extraplanetária, mas não considerar, no corriqueiro dia a dia, que há gente diferente da gente pululando por essas galáxias afora, e agir consoante o que se considera, conduzindo os próprios passos a partir do que eles podem impactar essa vida na qual se acredita - e se tem fé. Pode-se ter fé na reencarnação, mas não se conduzir de acordo com os pressupostos (dizia o palestrante, que se apresentou apenas como Paulo) que a reencarnação considera - pode-se fazer aos outros o que não se gosta que façam a si, pode-se desprezar o preceito fundamental da fraternidade, aquele que nos une a todos e permite que sintamos as dores alheias como se fossem as nossas próprias, esquecendo de fazer o que estiver ao alcance para reduzi-las ou aplacá-las. Pode-se acreditar na comunicação entre as espécies (e o assunto está fresco porque terminei de ler o livro da Sheila Waligora, "Eu falo, tu falas, eles falam..."), mas viver sem que esse acreditar nos faça agir e viver considerando e evitando aquilo que as magoa, que as insulta, que as agride, que as diminui na sua condição de seres viventes. E nas formas mais simples: posso acreditar que meu cachorro me entende quando falo serena com ele, mas esqueço-me e dou-lhe um grito quando ele pula em cima de mim.

Claro que ter fé é mil vezes mais difícil, mas muito mais, do que acreditar. Talvez porque ter fé seja, antes de qualquer coisa, compromisso, e nós tenhamos tanta, mas tanta dificuldade de nos compromissarmos, de abdicarmos de nós mesmos em função de outro. A fé num outro que demanda olhar, admirar, acompanhar e ser-lhe presente. Para mim (porque não há como generalizar) a fé no outro, nesse outro em que acredito porque está bem diante de mim e existe, e palpita, e me reconhece, demanda ver-lhe a parcela luz, a parcela divina que antecede a sua própria existência. Demanda acreditar que antes de tudo é matéria de irradiação luminosa, e demanda agir consoante o que acredito. Por isso, não posso barrar-lhe caminhos, não posso empedrar sua estrada, não posso podar os seus galhos nem quebrar-lhe os seus membros. O que posso é estar aqui onde estou, que aqui me encontrará quando lhe for necessário.


Imagem: Antonieta Miranda


22/01/2013

Do simbólico

Dia desses,  fiquei com vontade de comprar lã para tricotar. Há tempos que uma vontade dessas não aparecia. Comprei. Gosto de tricô desde pequena. Vivi a infância cheia de peças por acabar, casacos e coletes e meias começados e nunca terminados - a vida tinha a peculiaridade de me perseguir com novos brilhos e insistências, desviando-me dos meus reais e bem intencionados propósitos. Minha avó, observadora, tentou inutilmente ensinar-me crochê, achando que talvez me fosse mais fácil e rápido, mas desde o começo desgostei-me com aquela pobre agulha solitária; mesmo que não chegasse ao fim da peça, preferia o par de agulhas conversando entre si através do fio em transformação. Eram bonitas, as peças de crochê que ela fazia e com as quais me tentava, mas no fundo também ela preferia tricotar casacos e mantas e xales para toda a sua grande família. Também ela ouvia o diálogo silencioso entre as agulhas, como se fossem pessoas construindo afetos, e o fio entre elas a matéria prima da troca.

Tenho agora um par de agulhas em mãos. Iguais, do mesmo tamanho e espessura, e do mesmo material e cor. Tenho também um fio, lã que quis macia ao toque, duas cores entrelaçadas que quase se escondem uma na outra, porque querem desejar-se, talvez, invisíveis. Não creio que vá desmanchar nada do que tecer com estas duas agulhas, mesmo que estranhamente me apeteça a paciência e a espera de uma Penélope que trocasse o tear pelo tricô, mas presto-lhes atenção: por serem da mesma grossura, oferecem-me um tecido harmonioso, sem falhas nem inconsistências. São congruentes, estas agulhas. Interpretam o fio que se lhes oferece, trabalham-no sem esforço mas com constância e firmeza; não o largam, nem o quebram; não o apertam, nem o deixam frouxo. Minha avó dizia-me que nem uma coisa nem outra fazem bem, um ponto firme e solto ao mesmo tempo é o que se quer no tricô e na vida.

E o fio estende-se, uma metamorfose tecida sob o movimento articulado das agulhas. Cresce em comprimento e largura, deixando-se entrelaçar nesse diálogo sem palavras que ouço tilintar entre os meus dedos. Minha avó tricotava à noite, assim como rezava após o almoço. Terço entre os dedos, parecia dormitar, mas meditava. Em um e outro momento, eu invariavelmente mergulhava ao seu lado num livro, atividade que preferia a qualquer outra. Mas de vez em quando levantava os olhos e observava-a, demorava-me nos movimentos de seus lábios e de seus dedos, como se soubesse que ambos momentos eram semelhantes e eu precisaria da lembrança mais tarde, para mergulhar dentro de mim mesma de uma ou outra forma.

Nesse universo palpável que nos rodeia, onde tudo é símbolo de realidades mais profundas e internas, que acessamos ou não dependendo do quanto olhamos para as coisas com olhos de ver, são-me oferecidas estas agulhas, este fio, este tecido terminado. São chaves, capacidades dormentes em minhas mãos. Uso a mesma estratégia de menina: levanto os olhos e observo, em silêncio. A peça pronta que, dias depois, seguro nas mãos, porque não sou mais criança e aprendi a terminar o que começo, é a resposta à pergunta que faço.




11/01/2013

Limpeza

Passei um bom tempo em Minas nesta mudança de ano, revisitando espaços e práticas e pessoas que não via há tempos. Em Figueira, onde as coisas mudam conforme a necessidade se apresenta, coisa muito saudável e rara, reconheci um pedaço de passado que reincorporei à minha vida. Em meio às mudanças e às novas determinações nesse lugar inusitado, algumas coisas mantêm-se como eram há 20 anos, e deram-me uma sensação reconfortante de "nem tudo mudou na vida".

Um exemplo. Em Figueira, assim como em outros lugares, fala-se de "harmonizar" os espaços e as coisas quando se quer dizer limpar e arrumar. São ações práticas, importantes e indispensáveis à vida humana sobre o planeta. Eu não tenho nada contra qualquer uma das três palavras, mas concordo que "limpeza" e "arrumação" soem mais entediantes do que "harmonização". Percebo que as pessoas sorriem com os olhos quando dizem "vamos harmonizar os banheiros" ou "acabei de harmonizar o armário das vassouras", e provavelmente a mudança de palavra ajude a perceber a tarefa também de uma nova forma, a abrir uma nova janela na superfície cotidiana da vida. Uma consciência mais consoante com o propósito geral de Figueira, que é, entre outras coisas, manter a consciência naquilo que se faz. 

Hoje de manhã, "harmonizando" a casa, dispus-me a essa forma de presença. Limpei e arrumei, feliz da vida, retirando de pelo meio os empecilhos que podem atrapalhar o dia a dia. São coisas às vezes invisíveis, poluição mental transformada em cantos impenetráveis.

Atenta, vou pensando que há uma medida, nessa ação toda - não quero limpar a ponto de perder de dentro das coisas aquilo que são por causa do que passou por elas. Há os cheiros que é preciso preservar - que cheire a limpo, mas que não desapareça o cheiro adquirido com a vida. Há as pequenas manchas que se limpam, mas não de todo - como as rugas, são marcas do que viveu. Passo de um cômodo ao outro, e sou comedida em algumas ações, porque quero, muito, preservar a história.

Termino, e olho em volta. As coisas que ficaram, tal como ficaram (e que vou chamar logo mais de lembranças), olham-me de volta com um sorriso agradecido, porque não as tirei delas mesmas; um travesseiro deixou de ser um travesseiro, um copo deixou de ser um copo, até um cabo de vassoura deixou de ser um cabo de vassoura, porque há histórias marcadas em tudo, e reconheço-as pelas marcas, que às vezes são manchas, às vezes amassados, às vezes uma trinca por onde o passado chega e me atinge, inteiro e verdadeiro. As presenças alheias estão impressas até o mais fundo das coisas, que é onde vive o espírito com força e verdade. Por isso cuido das coisas, por isso as limpo mas sem as perder, por isso as olho e as afago, porque a vida pulsa dentro delas, assim como pulsa dentro de mim, que as limpo e acolho dentro das minhas mãos abertas e gratas.


Foto: Tai Ribeiro

05/01/2013

Novo ano

São as mãos da esposa que correm à lembrança do Pontes*. Lembra-as com todos os detalhes possíveis, o dorso de veias fortes, as palmas de sulcos profundos, a delicadeza dos dedos, a força do aperto. Conforme escreve, observo-o, absorvido pela ação da memória. Vejo-o balançar a cabeça de vez em quando, nesse esforço de se recordar de umas mãos quaisquer, desde que importantes. Outros lembram-se das mãos da mãe, das mãos do filho, até das mãos de Deus, aquelas que são invisíveis mas podem sentir-se. Por todos temo que seja excessiva a tarefa de lembrar-se; é um terreno sombrio, este da memória dentro de um presídio. 

Trago as mãos da esposa de Pontes para casa, dentro da pasta. Digito-as, a todas as suas letras, para mandá-las como presente a ela. Não me pertencem, estas mãos. E agora que é noite, e recolho as folhas para as ler outra vez, ao mesmo tempo em que percebo os avanços inegáveis na pontuação, vejo por entre as linhas de caligrafia harmoniosa e serena os sinais impronunciáveis  da dor da saudade e da ausência. Se entrecerro os olhos, quase consigo imaginar essas "mãos de dedos que se abrem e fecham como leques" descobrindo na tela do computador o quanto estão presentes dentro do marido preso. Imagino-a rodeada pelos oito gatos que são como filhos, e ao lado os dois filhos de fato dormindo no sofá, e os olhos que piscam porque já é tarde, e levantaram-se cedo, e estremecem eles também com a luz ofuscante da saudade. A mesma insônia que faz Pontes não dormir avança por entre as ruas da cidade escura até chegar às mãos da mulher que também não consegue adormecer.

Neste novo ano, Pontes anseia pela sua saída da prisão. O mesmo desejo e a mesma expectativa de muitos destes homens - ser este o ano da sua libertação, do regresso à vida da família. Não há nada, parece, que tenha mais importância na vida desses homens do que a mulher e os filhos que ficaram do lado de fora.

Brandão é diferente - cada vez que se aproxima o dia da saída, de alguma forma ele consegue uma punição de mais seis meses. É-lhe insuportável pensar em voltar a ser uma pessoa lá de fora. A cadeia, de certa forma, protege-o e oferece-lhe um lugar no mundo. Brandão conta piadas e alegra o ambiente assim que chega, às vezes atrasado e sempre bem humorado. Mas o olhar trai o seu receio, e quando conversamos e olho em seus olhos, ele desfaz o sorriso que usa como máscara.  E seus olhos ficam cinzas de tão tristes. Brandão conhece a mulher do Pontes, e enquanto ouve o companheiro ler o seu texto em voz alta, a meio de um silêncio respeitoso feito catedral, emociona-se e diz-lhe ao final:

- Caramba, Pontes, é assim mesmo, eu lembro das mãos dela, é que nem você fala, eu queria saber falar das minhas coisas bonito que nem você faz.

E enxuga os olhos com as costas da mão, e é preciso que o lembrem do texto que escreveu agorinha mesmo, quando todos sentiram a sua mesma emoção no gosto da caranguejada que gosta de preparar com a ajuda do pai. Estão todos emocionados, com a força e a verdade das lembranças próprias e alheias. E eu também. E quem mais estivesse aqui sentiria o mesmo, porque a empatia ainda é o nosso dom mais precioso, e sentir a dor alheia, solidarizar-se com ela pela lágrima que escorre ou pela mão que acolhe, é uma possibilidade preciosa de redenção e de humanidade.

A todos, um feliz ano novo, cheio de oportunidades de olhar e sentir o outro na sua dor e na sua alegria.


*Todos os nomes usados são fictícios. Já as histórias não - e podiam ser as minhas ou as suas.