20/12/2012

Eliazar


Seu Eliazar tem lugar marcado em nossos encontros: fundo da sala, numa das cadeiras ao centro, as pernas invariavelmente cruzadas. Bastante cabelo, quase todo branco, olhos vivos enevoados por trás das lentes grossas. Fala baixo e pouco. O que ele gosta é de escrever.

Sustentou mulher e filhos com a venda das músicas que compunha e com os bicos como carpinteiro, nessa ordem de importância. Trabalhava de dia e avançava pela noite em busca da medida certa entre melodia e palavra. O violão, não abandonou nunca, a carpintaria trocou-a por outra profissão, e a pequena cidade onde morava substituiu-a pela capital. Sempre que alguém novo aparece por perto, em pouco tempo ele se oferece para cantar as músicas que escreveu e viraram sucesso na voz de Jerry Adriani.

Seu Eliazar ocupa a mesma cela 23 há oito anos. Refaz-se todos os dias escrevendo e fazendo o bem sem olhar a quem, como gosta de dizer uma e outra vez. Como se pela palavra seu desejo se realizasse.

Trabalha na lavanderia montada dentro dos muros da prisão. Dois hotéis da cidade usam os serviços; é um sucesso. Qualquer trabalho, no presídio, é um sucesso: a cada três dias trabalhados, um dia de remissão de pena. Seu Eliazar nem pensa nisso: não sabe bem como enfrentará o mundo lá fora, o que ele quer é ocupar o tempo de hoje.

Recebe a visita da mulher muito de vez em quando. Escreve-lhe longas cartas, elaboradas e apaixonadas, como se a tivesse ao lado, disposta a ler as palavras difíceis que gosta de usar, e recebe de volta bilhetes curtos e apressados, notícias dos filhos e dos dois netos que entretanto chegaram. Um deles já foi trazido para conhecer o avô. O outro é ainda pequeno demais, diz a filha que o visitou uma vez e nem abraçá-lo conseguiu.

Se lhe perguntam qual o pior dia de sua vida, Seu Eliazar não titubeia: aquele em que decidiu entrar pra polícia. Achava bonito, usar farda. Ser respeitado. Ter um trabalho de horas certas, com progressão de carreira, possibilidades de futuro, dinheiro certo e garantido ao fim do mês. Passou sem dificuldades pelas provas e testes. Todos os lugares comuns desfilados.

No dia em que foi preso, a mulher apresentou-se diante do comandante responsável pelo presídio. Olhos inchados de tanto chorar, levantou-lhe um dedo e disse-lhe:

- O senhor veja o que vão fazer com ele aí dentro. Entreguei um homem pra corporação, os senhores desfaçam esse monstro que querem me devolver.

Tudo isto aos gritos, o que deixou Seu Eliazar com fama de bem casado no presídio. Seu Eliazar encolheu os ombros, e não conseguiu olhar-se no espelho. Ainda hoje se procura por trás das rugas que o aumentam em uma década de anos.

Seu Eliazar serviu durante anos como achou que devia, descobrindo mês a mês que o dinheiro garantido não fechava as contas. Montou uma pequena marcenaria nos fundos do quintal e decidiu ensinar os dois filhos homens. Não tinham gosto, preferiam a rua. Seu Eliazar inquietava-se, e a mulher também.

No dia em que prendeu o traficante, não havia trânsito, a temperatura era amena, todos de bom humor em casa, todos de bom humor na delegacia. Sentiu-se poderoso e cumpridor ao trazer o indivíduo algemado, entrando na delegacia pela porta da frente. A vingança não demorou: os filhos foram assaltados na rua, a mulher dormia assustada quando Seu Eliazar estava no turno da noite, acordava com pancadas na porta, a filha recebeu bilhetes com ameaças anônimas. Os olhos de Seu Eliazar injetavam-se de sangue com cada vez mais facilidade. Na delegacia, os colegas percebiam-lhe a cólera crescente, filha do medo. E sorriam entre si, “Eliazar agora que é um dos nossos”.

Seu Eliazar passou em casa na quinta feira em que foi preso, tarde da noite. A mulher dormia exausta, os dois filhos homens também, a filha ainda faltava. Sai pra procurá-la. Aflito. Encontra-a na esquina antes de casa. Não tem dúvidas: dois tiros deixam dois corpos de homem no chão, sem aviso e sem perguntas. A filha aos gritos de “o que você fez, pai?”, e as sirenes a seguir, e os gritos da vizinhança. Abuso no exercício do poder, disse-lhe o comandante ao dar-lhe voz de prisão. Dia de muito azar, disseram os vizinhos que todo dia viam alguém morrer. Perdeu a insígnia, a arma, a farda e a liberdade.

Anteontem, Seu Eliazar conta que vai ser libertado. Está como no dia em que chegou a casa e sentiu falta da filha. Aflito, não sabe como suportar os olhares dos de fora, a vida inteira pela frente com uma marca nas costas.  Escreve pouco nesse dia, levanta-se para ir ao banheiro, está mais calado que todos os demais. Dão-lhe palmadas nas costas, felicitando a liberdade ao virar do dia. Seu sorriso é todo amarelo, e diz que vai cantar o hino do presídio: Há verdades que a falsa comédia/lhe arranca o pseudo capuz/e a plateia sorri vendo a pedra/ser lançada na cena sem luz. Seus olhos lacrimejam enquanto canta, a voz num fio fino e baixo. Quando sai, despede-se com um olhar em volta, sabendo que já não estará no próximo encontro. Seu Eliazar retirou-se da vida nessa madrugada, um pulo na frente do medo desembestado, uma poça de sangue onde boiam seus últimos versos: necessito de um deserto/de um inferno/de um buraco aberto no centro do peito.

(Os versos em itálico são de autoria do poeta Atiloa da Ribeira. 
No mais, qualquer semelhança é absoluta coincidência. As personagens são ficcionais.)

11/12/2012

Presente de Natal antecipado

Já se sabe: dezembro é tempo de agradecer as dádivas do ano. Uma, em especial, é preciso que eu agradeça antes de dia 11. Dia de último encontro de escrita criativa com o grupo de 25 detentos do presídio militar Romão Gomes, minha estreia no sistema penitenciário de São Paulo. Um grupo diferenciado, composto por policiais condenados ou em vias de (ou não), em condições de prisão bastante diferenciadas também, se formos pensar no sistema penitenciário brasileiro.

À primeira vista, trabalhar com policiais presos causou-me um certo desconforto. Puro preconceito, que tratei de desmontar com a eficácia que me foi possível antes do primeiro encontro. Ainda assim, o preconceito lá ficou, o que me fez ficar mais surpresa que o normal pelo fato de, nestas poucas semanas, o grupo ter deixado de ser "o grupo do presídio" e ter passado a ser o André, o Cruz, o Iranei, o Bélido, o Adilson, o Julião, o Ricardo, o Gama, o Barra, o Ronaldo, o Figueira, o Santinho, o Gomes, o Prado, o Sidney, o Fabiano, o Lima, o Ailton, o Soares, o Paulino, o Samuel e o Di Lucia. Seus rostos me acompanham por onde quer que eu vá; fazem-me olhar para o mundo com vontade de ver por quem não pode fazê-lo. Se fecho os olhos, vejo-os dentro da sala em que trabalhamos, cada um sentado no seu lugar cativo, o que me ajuda a lembrar dos nomes e associá-los à fisionomia, e esta àquilo que tenho entre mãos, que são os seus sonhos e o seu íntimo em forma de palavras.

Não sei de seus crimes, nem quero saber. O que me cabe está nestas horas em que somos todos seres humanos em busca da palavra exata, da construção precisa. Todos seres humanos lutando por entender-se, com dificuldade de perceber-se e urgência de perdoar-se. Prefiro olhá-los enquanto leem em voz alta o que escrevem, numa entonação que não consigo reproduzir, e que me emociona passadas horas. Como em todos os demais grupos de escrita, as dores aparecem por entre as linhas, as mais profundas esgueirando-se tenazes pelas letras que avançam seja qual for o assunto. Transmutam sofrimentos sem quase perceberem que o fazem, e eu tenho o privilégio de assistir e ser partícipe de tudo isso. Porque é fácil falar do quanto a palavra liberta a quem pensa ter a liberdade ao seu dispor; para quem sabe que liberdade é aquilo que corre nas ruas lá fora, libertar-se tem outro sentido.