30/05/2012

Moléculas estrelas


Fragmento encontrado numa gaveta de Júlia, a personagem suicida

"Não há diferença entre a respiração daqueles que dormem ao meu lado. Cada qual busca em mim pessoas diferentes, mas a respiração do sono mergulha-os a todos numa mesma imensidão distante. Acordo e olho em volta, e estou sozinha diante desse mar que não se altera. O horizonte está à mesma distância sempre.

Quem dorme ao meu lado crê ter visto aquilo que sou e desejo - mas não há nada entre nós a não ser essa respiração pausada, lenta e inconsciente. Todas as palavras que brotam ao lado dos que dormem precisam ser esfregadas desse sal transparente e áspero que se lhes agarra, o suor das almas imersas no sono, arrepiadas e aturdidas das presenças alheias. É preciso ocupar-se, no dia seguinte, da sua limpeza, da água que livre o corpo dos destroços do espírito, dos reféns feitos poeira por entre as janelas da noite, e poder revisitar-se outra vez sem medo, sem culpa, sem temor. Só água.

Como moléculas impregnadas daquilo que passa e jamais fica. Moléculas de densidade móvel, que se esvaem quando se espera o contrário. É um erro, esperar qualquer coisa. É preciso ficar-lhes a salvo, sobreviver à causticidade agreste com que se impregna seu núcleo. Querem-se doces apenas enquanto abertas. Depois, quando se fecham, quando decidem dedicar-se aos seus afazeres mundanos, distanciam-se, embrulhadas firmemente num esquecimento de agruras calmas. Calmas, mas ainda assim agruras.

Fazem crer, sem que se dediquem a isso, que suas membranas são permeáveis - mas acontece apenas quando e se querem. Não há entrega incondicional entre moléculas; selecionam dentre o que se lhes oferece aquilo que querem, e descartam sem o instinto da piedade o que não lhes parece útil. Ainda que seja, e não o saibam: porque moléculas não possuem órgãos de audição definidos, nem estão empenhadas em saber das suas vizinhas por outros meios. Tateiam suas presas com as fímbrias dos seus tentáculos e engolem-nas como peixes sedentos, matéria que se amalgama à sua pele transparente e a torna mais brilhante, mais potente, mais tentadora.

As almas que se permitem a entrada de moléculas assim precisam precaver-se, ainda que a precaução seja sua própria antítese. Precisam, a todo custo. Para que não se incendeiem a ponto de não reconhecerem as próprias cinzas. É preciso, urgente, que marquem a si mesmas com a cor que a só elas pertence, a única que sobrevive à queima em alta temperatura. Depois, no esfriamento dos dias que se seguem, abrir os olhos para os sinais da fênix que vive em cada qual, dispostos de maneira peculiar dependendo do estado do céu. Abrir as asas à ave, caso não solte as últimas cinzas, limpar-lhe o bico para que se alimente dos restos de si mesma, uma arqueologia de morte. Um desafio e a benção da memória. Para quando a próxima queima se aproximar. Porque as almas que se permitem a entrada de moléculas assim são desta forma: de queima em queima, de renascer em renascer.

Aqueles que dormem ao meu lado são moléculas soltas num universo sem forma, pedaços de mim mesma espelhados no outro, criaturas como crateras, poros em expansão por dentro das minhas vísceras, estrelas a tantos anos-luz de distância que não se sabe se vivem se morrem. Moléculas estrelas, que se apoderam de meus melhores bocados, que os engolem sôfregas, que transitam pelas galáxias da linha do céu, que não se alteram e me devolvem de outras cores. E eu permaneço quase a mesma, forma plástica no horizonte inalterado, os pés sendo engolidos pelo avesso das moedas de troca, a alma cheia dos pontos de luz da estrela que explode."


Imagem: Betelgeuse, supergigante vermelha da constelação de Orion, a 1270 anos-luz de nós.

28/05/2012

A cidade nova XII - o abacateiro de seu Ambrósio

Até agora, só conhecia seu Ambrósio por dentro. Por dentro do seu corpo debilitado por uma sequência de pneumonias mal curadas. Os muitos raios-x que encontrei no armário de um dos quartos aqui de casa mostram-me as suas costelas estreitas, os finíssimos véus brancos em alguns pontos dos seus pulmões. Passei um bom tempo olhando-o, assim que cheguei, tentando relacionar-me com essa pessoa ida.

Seu Ambrósio morava na casa onde eu moro. Dona S, aqui na casa do lado, já me contou que era homem de gostar de árvores, uma espécie que ela parece não entender muito bem. Duas casas mais abaixo, dona F diz-me que seu Ambrósio vivia plantando mudas na calçada, que alguém arrancava durante a noite. E ela faz aquela cara muito óbvia de que desconfia, justamente, de dona S, tamanha a aversão que tem a folhas sujando a calçada. "Como se folhas fossem sujeira, nunca vi tanta vontade de limpeza", completa a desconsolada senhora, que me parou na calçada para saber, preocupada, se eu cortaria ou não o abacateiro do quintal. E abre um sorriso quando lhe digo que o quintal foi justamente o que me conquistou, com seu abacateiro de mais de 50 anos.

Seu Ambrósio era enfermeiro; trabalhou muitos anos no posto do INSS de Araraquara. Fazendo curativos e coisas assim, pelo que me contou dona S. No dia em que fecharam o ambulatório, não teve dúvidas: abriu a sua casa para quem precisasse dos curativos, sem cobrar nada. Ocupado só com a necessidade do outro. É aí, creio, que reside a diferença entre preocupar-se e ocupar-se: na ação. Naquilo que migra do pensamento e se transforma em visibilidade. Acho que eu andava à procura do coração de seu Ambrósio por entre as costelas radiografadas.

Sua esposa, dona Djanira, pertencia à Assembleia de Deus. Levantava-se todos os dias uma hora antes do necessário (aos olhos do mundo) porque havia muita gente no mundo que precisava da oração dela, e ela usava pelo menos uma hora para essa tarefa, enumerando essas pessoas e lançando seus nomes na direção de Deus, para que ele as amparasse na sua inextinguível glória.

É Jane quem me conta tudo isso de olhos cheios de lágrimas. Dona Djanira era tia dela. Toca a campainha de casa porque precisa cobrar a laje que me vendeu, e eu esqueci de pagar. A laje que agora cobre o quartinho onde dona Djanira rezava, percebo. Todos os dias, sem um sequer de descanso. Uma vizinha de fundos adoeceu, certa vez, e dona Djanira, aflita por ajudar, fazia faxina na casa toda semana. Queriam pagar-lhe, mas ela sorria e dizia que era um serviço que ela fazia melhor só pelo prazer de ser útil ao outro., mesmo que a artrose de seus dedos lhe doesse à noite. "Ah", dizia, "Ambrósio cuida disso pra mim." E sorria, consigo até imaginar que um sorriso alquebrado de dentes. Jane nem quer entrar, diz que vai emocionar-se muito, e precisa trabalhar o dia todo. Fica feliz só em saber que eu gosto de saber. E eu prometo-lhe uma crônica - promessa que ela não entende, mas assim mesmo é o que posso fazer.

Entrego-lhe os cheques de pagamento e de repente dá-me um abraço, enxugando antes as lágrimas com as costas da mão. Diz-me que com certeza serei feliz nessa casa, porque durante décadas e décadas abrigou duas pessoas que faziam o bem sem olhar a quem, e sem querer ter retribuição. Não era nem questão de  esperar retribuição, mas de querer mesmo.

Aos poucos vou reconstruindo a imagem desse casal que deixou tantas marcas pela casa, e que se entranham na minha vida de pouco em pouco sem motivo aparente. Olho o abacateiro de seu Ambrósio, e as dúzias de abacates que caem prodigamente ao chão todos os dias. Certamente seriam outros, estes dois velhos, e não aquilo que ouço deles  agora, e é bom pensar que as marcas que deixaram no mundo fazem jus àquilo que havia de bondade neles. Que os tropeços, os desajustes, as torpezas ficaram no passado que se esquece, e que sobraram os dias bons, os gestos bonitos, as formas gentis de se ser humano. Coisas que inspiram a semana que começa.

20/05/2012

Dos advérbios

Dizem-me que esqueça os advérbios que uso. Aquelas palavras invariáveis que modificam as ações nas suas circunstâncias. Sejam elas quais forem. Palavras que nunca modificam as coisas, mas aquilo que fazemos com elas, os verbos da vida. Normalmente reajo com docilidade a esse tipo de conselho. Reajo atendendo. Até porque percebo, neste, um tom de advertência, mais nos olhos de quem diz do que nas palavras em si.

Mas de repente, quase como se num movimento que não domino, ao contrário do que busco, fervilha ao meu redor a inevitabilidade do que é invariável como o advérbio. E me apavora, porque é fixo. Imutável. Poluem-me todos os quase, todos os aos poucos, todos os além, todos os em volta, embaixo, ao redor, aquém, atrás, dentro, em algum nenhum lugar. Todos os quem sabe. E em especial todos os -mente, que são tantos e não transformam nem variam o íntimo do ser das coisas. Apenas o que fazemos com elas.

A meio da madrugada, uma junção de letras que se compõem a céu aberto para me oferecer, de bandeja e em excesso, uma palavra que desconheço: vicariamente. Martela-me por horas, tento mantê-la afastada para dedicar-lhe tempo mais tarde, quando o tempo haja, quando o sufoco ceda, quando possa encontrar-lhe solução, dicionário quem sabe.

Vicariamente diz daquela capacidade que se tem de obter prazer a partir da experiência de prazer do outro. Ou sublimação. Ou conhecimento. Algo que faz as vezes de outro, um lugar em que nos colocamos usufruindo em plenitude aquilo que o outro perfaz. Sorrio, inevitavelmente. A sina de sempre aproxima-se da minha pele, aquilo que pertence ao outro e me com-penetra, aquele estado de alteridade que frequentemente me pergunto não será o que acelera a construção da humanidade em nós, mais do que a autoridade do conhecimento que se obtém (ou se julga obter) por si mesmo. Quando fazemos as vezes de nós mesmos.

Como se à entrada de uma caverna inexplorada, preciso de fato deixar os advérbios tão abstratos guardados, ajustar o foco nos substantivos da vida, porque os verbos que me cercam não dizem, mais ludibriam e sufocam. E deixar os advérbios, ali, de lado e em silêncio - como fazem aqueles se entregam e assumem o lugar alheio como seu próprio. E se satisfazem e são felizes desse modo, vicariamente.


Imagem: advertência à entrada de uma caverna na Austrália. Como se um portal.

17/05/2012

Exercício - a flor

"Júlia chega tarde, tão tarde que nem consegue desculpar-se. Em cima da sua mesa há um vaso de flores azuis e brancas, que a sua avó chamava de forget-me-not. Ela sabe que há um nome em português, mas não consegue lembrar-se.

Desconfia que quem as enviou quer que seja essa a mensagem. Que ela não o esqueça. E Júlia sabe também que o nome da flor em português fala de ouvir, e sua mente embaralha-se querendo lembrar-se, os primeiros sons da palavra brincando de esconder-se debaixo da sua língua. E Júlia sabe que não deve esquecer as palavras que ouviu, e que esse forget-me-not cantando azul em cima da sua mesa significa que aquilo tudo que ouviu, tudo aquilo que se gravou em sua mente e que não a deixa sossegar e que ele disse junto a seu rosto quando achou que ela dormia, são palavras para não esquecer, para serem guardadas dentro do seu ouvido, em algum recôncavo que as amplifique de vez em quando. Quando ela arriscar esquecer-se, por exemplo, e arriscar perder-se entre casa e trabalho, e arriscar pensar que talvez nada valha a pena e que talvez apenas o nada valha alguma coisa, pouca pouca coisa.

Júlia desvia seu olhar dos papeis à sua frente para as pequenas flores azuis. Tenta lembrar-se do nome outro, que lhe traz a Grécia mas não sabe a razão. Apenas a Grécia, o branco das colunas projetado no céu tão azul quanto o mar atrás de tudo. Mas nenhuma palavra, só imagem e azul. Por que de repente a sua memória fica tao arredia? Por que se esquece de coisas banais, tão banais como o nome de uma flor? E de repente vem-lhe uma necessidade imensa de correr até onde ele está e pedir-lhe colo. Talvez tenha sido o azul. Ou a pequenez de cada flor. Ou o sentir-se desprotegida, a pele nua diante do aço da manhã. Colo, ela pede entredentes. Baixinho, apenas o suficiente para se ouvir dizendo a si mesma a palavra, duas, três vezes. Colo, naquele sentido de ainda verbo latino, e de novo a sua avó segredando-lhe a vida por trás das palavras. Colo no sentido de cultivar, de constituir morada. No sentido de ser cultivada, preparada, o amanho da terra que são os seus ossos, o passar do arado por entre os espaços das suas costelas, o lanço da semente em suas covas, a chuva que faça brotar o plantio. E a colheita, o corte, o arrancar: colo em que ele a cultive e colo em que se abaixe para recolher os frutos quando for hora. E, tendo-a plantado e colhido, que forme sua cabana junto às dunas de areia quente, e que aí estabeleça a sua morada. Sem que os ventos a demovam nem o removam. Dentro de si, que nada precise ser aparência, apenas essa sensação de ser e pertencer, de morar em algum qualquer canto.

O chefe observa-a do outro lado da mesa. Júlia endireita-se na sua cadeira, ajeita-se diante da mesa e coloca seus fones de ouvido. Recomeça o trabalho abandonado a meio, atrasado como ela. Farejando as possibilidades de fuga, como sempre. As flores olham-na com seu olho amarelo. E a palavra surge-lhe leve e sonora dentro da boca seca, fazendo com que seus olhos se fechem como se lhe sentisse o gosto entre os dentes e as gengivas: miosótis."


15/05/2012

A cidade nova XI - os ovos

Dona S. abordou-me há alguns dias na porta de casa, quase eu entrava, quase ela saía. Costume seu, não me incomoda. Gosto de observar os costumes alheios, pensar quem seria eu fossem meus esses hábitos que preenchem os outros. Com um psiu acompanhado de um movimento sutil da mão magra e rugosa, aproximou-se de meu ouvido para cochichar um conselho. Sobre comprar ovos. É um nunca parar de espantar, esta minha vizinha.

Diz-me, mais do que pergunta, que (logicamente) comemos ovos. Respondo-lhe que sim, achando graça que presuma em vez de perguntar, fazendo de conta que perguntou. Contente, aperta os lábios e meneia a cabeça, confirmando-me que de fato já sabia.

- "Pois então, não sei onde que você anda comprando... mas os ovos que valem a pena são os do Wanderley". E sorri um daqueles sorrisos satisfeitos sobre os quais algum poeta já escreveu: não é possível saber se a satisfação lhe vem de si mesma, do que diz ou do fato de ter podido contar a alguém. Eu rio-me, mas só por dentro que não a quero ofender. E pergunto, como que confirmando, como que querendo que diga mais: "Do Wanderley, dona S...?". E ela: "É, filha: são um pouco mais caros, mas são grandes. Ovos? Pra mim, só os do Wanderley".

E aponta o barzinho do fim da rua com o dedo esticado, e o Wanderley varrendo com vagar e método a calçada da sua esquina. Wanderley é um ser cheio de fleuma. Abre o bar quando quer, se quer e se lhe der na telha. Há uns horários escritos na parede, mas não representam a realidade, são só um norte, conforme me explica. E há alguns horários sagrados, em que nem ele nem o bar são de ninguém: entre as 13h e as 15h, não me chamem, não me peçam, não me incomodem. No resto do dia, vê tudo do seu posto avançado de observação da rua, o banquinho alto atrás do balcão antigo, de azulejos velhos trincados na beirada, a pedra de mármore rugosa de tão velha cobrindo a superfície, abrindo espaço para a estufa onde se encaixam uns nos outros os melhores torresmos da cidade. Wanderley vive atento, cumprimenta todas as vezes em que eu passo na sua porta, como se fosse a primeira do dia. E quando paro, um dia ou outro, sorri e diz: "Hoje seu dia foi cheio, hein?". Assim, como se soubesse muito da minha vida.

Dona S. não me larga. Quer garantias de que também eu, a partir de agora, farei jus aos ovos do Wanderley. E a sua maneira é peculiar, como em tudo é peculiar esta minha vizinha:

- "Mas, viu? Você é quem sabe... quer pagar mais barato, pra ter ovos menores? Problema seu. Agora, se me pedir ovo emprestado, faz favor de me devolver dos bons, é só pedir pro seu menino correr na esquina e comprar do Wanderley."

14/05/2012

Exercício: as cartas

"Armindo,

Tudo isto que abres em mim, nada mais é do que pura entrega. Porque não cabe em mim tudo o que sinto, preciso entregar-te. Porque não há espaços vazios. Porque as superfícies todas que trago em mim são o teu corpo, o ar em volta é o teu hálito e eu mesma não respiro senão o líquido dos teus olhos. E porque a distância invade-me como as ondas do mar, como a areia da infância a arranhar-me as costas às margens da lagoa, a corrente na direção do mar a querer arrastar-me, e a areia a querer-me manter à margem, na margem, num destino fixo. Como se tivesse combinado algo comigo, mas eu não me lembrasse.

E eu mergulho, e eu deixo-me levar, como folha desfeita, molécula de entregas secretas expostas à água salgada. Todos os dedos que me vibram recobrem-se da tua pele, e nem grito, nem me debato, porque sou em mim o que és. E não sei como conter esta avalanche, e nem quero, e a vida que vivo acena-me de outra cada vez mais longe margem, um eco do que deixo de ser desde que as tuas mãos me erguem cavernas desde então meu refúgio. Diz-me: quem é esta que afloras e não conheço, esta pedra escavada e atravessada de sangue, granito líquido?

Tua,
Isaura"


(Tempestade de neve no mar, William Turner)

Amigos no feriado


À Vera e ao André

Visito um casal de amigos, no último feriado. Amigos antigos, com aquela qualidade rara de nos olharem nos olhos e nos verem as pontas da alma. De perceber nuances que outros, mais recentes, podem nem ver passar. De sentir as intranquilidades que assolam os barcos antes do embate nas rochas. Por isso, não é preciso dizer nada, e em um instante, como em volta de uma fogueira, um céu de estrelas iluminando as ideias, é dito o que precisa ser ouvido, e é só.

Olho meus amigos e penso no quanto a maneira como a vida se escolhe se modifica ao longo dos anos; o quanto depuramos e transgredimos as certezas de um dia para vivermos o seguinte; o quanto nos afirmamos a partir de negações internas; e o quanto gostamos, ou não, do caminho que seguimos. As escolhas modificam-se, assim como a maneira como olhamos em volta para o outro, para nós mesmos; a maneira como consideramos a entrada do outro na nossa vida, o como nos abrimos em espaços que sequer sonhamos antes para que ele se faça em nós. Esse outro que nos reconstrói, que nos oferece com um sorriso de ternura a sua visão de mundo, completando e melhorando a nossa; esse outro que é nossa possibilidade de reconstrução da própria humanidade, nossa salvação, renovação da capacidade de amar, enriquecimento mútuo.

Com todos os rombos, todas as tempestades, todas as marés que sobem e descem, é um alento passear no passado e encontrar antigos futuros transformados em presente real. Mesmo com as rugas, as marcas, as dores todas do corpo que não se reconhece, somos mais que um simulacro do que éramos antes. Olhar para amigos antigos, perceber dentro dos braços o mesmo abraço, dentro dos olhos o mesmo sorriso, rir das aventuras passadas e perceber o quanto vive de ingenuidade dentro das nossas certezas: em tudo, formas de reviver e olhar a própria presença, acendendo a essência que dormia.

(Foto: Estância Ecológica Canto da Garça, em Juquitiba, onde moram a Vera e o André.)


Exercício - no analista


Júlia precisa inventar-se, nos últimos tempos, várias vezes por dia. É o que diz a seu analista, nessa sessão que começa a meio de um dia de névoa que parece não se desfazer nem na água do rio que corre ao lado do prédio do consultório. Júlia levou consigo, para dentro do elevador, uma alma enevoada, com ela subiu os 6 andares nessa máquina lenta de ferro, e com ela entrou na sala estreita. Inventar-me olhos, pele, percepções do mundo que de repente não se referencia a si mesmo, diz ela. Porque abandono seguranças antigas e nesse de repente do mundo mudado, pergunto em volta onde o apoio do pé? Não sei se um começo de queda ou se um braço estendido agarrado à outra margem do abismo. Que momento é este? Não sei se corro no vazio, alimentando meus passos da esperança (a doce ilusão) de correr em terra firme, e estou prestes a cair e não sei, e de repente de novo cada vez mais longe dos galhos sobreviventes das árvores, aqueles estendidos desde a margem aos náufragos de passagem. Que momento é este?

E seus braços fazem os gestos dos galhos quando perguntam ao rio e seu rosto molhado de lágrimas é o próprio rio na passagem desse destino desconhecido. Júlia afasta o cachecol mas o frio diz-lhe que mantenha o casaco junto ao corpo. Não está frio, mas ainda assim Júlia sente frio.

E o analista intervém. Inventar no sentido que lhe confere a palavra raiz: criar a partir dos restos do que morreu. Mas Júlia diz, não reconheço com facilidade as mortes à minha volta; nem com facilidade lhes levo as velas de defunto, as ladainhas das carpideiras, o caixão, os olhos fechados, as mãos contritas unidas no centro do peito oco. Olho para dentro delas e devolvo-me um vazio, um não ser que não sei se alívio se tormento. Se não estão aqui, para onde foram, essas mortes? E um vazio de silêncio opaco estende-se entre o divã que é poltrona e a cadeira que é cadeira, onde o corpo vestido de cinza do analista a olha com compaixão.

Eu sei, diz Júlia antes de levantar-se e desistir da sessão e dizer que não sabe se voltará um dia, ou se essa noite será o seu último passado, eu sei: crio-me a partir dos restos do que morreu em mim, e nessa arqueologia da alma, vejo que outras coisas morrem, e quero correr com elas para a reciclagem, mas elas dizem-me que querem-se mortas e enterradas, e que eu obedeça o escorpião que me rege e lhes dê o que é da sua natureza. A morte. E o desenho dos seus dedos na maçaneta ainda está lá de manhã, quando o analista desce as escadas para comprar pão e leite. Quando voltar, dentro do elevador, sentirá a presença da névoa, e os menores cabelos da sua nuca se arrepiarão de frio. E a maçaneta devolverá o calor à sua mão, ao entrar na sala estreita e sentar-se na cadeira que é cadeira, vestida de cinza como ele próprio.

(Desenho de Ale Félix, que não tem nada a ver nem com a Júlia, nem com seu analista.)

12/05/2012

Dos diários III


"As coisas que estão mortas aliviam-me as próprias curvas, os abismos em que se precipitam os cada vez mais cheios rios que escorrem sem tempo por dentro das minhas veias. A cada cair, aumentam o seu caudal, o tamanho da sua força. A minha alma, suspensa na margem, está toda molhada da sede que avança.

As coisas que estão mortas são silêncio. Nada as interrompe nem altera. Jazem parecendo quietas, invisíveis debaixo do chão, sem ar, sem tempo, sem escolhas.

As coisas que estão mortas só foram, e as marcas que deixaram são tão invisíveis quanto elas, agarradas à terra debaixo do chão.

As coisas que estão mortas não se ferem, não se movem, já não são, e ainda assim sente-se a maciez do toque do que foi e permanece no que é."
(Dos "Diários de Hope", a personagem em busca de contorno)

11/05/2012

Exercício - o sonho


A mulher acorda com uma palavra entre as pálpebras. Lezíria. Vê as letras através dos cílios, dentro daquele tempo diminuto que vigora entre sono e vigília. Nem sabe exatamente se é assim que se chamam as margens transbordadas dos rios das planícies quando chove além do previsto. Ou quando chovem as águas certas no tempo certo. 

Lezíria. Há um traço de infância por entre os espaços das letras.

Deixa-se estar na cama, cortinas ainda fechadas, um azul filtrado pela cambraia branca. Dentro do seu sono há um árabe campino por trás da palavra – a galope, barrete vermelho, sua vara de tocar o gado erguida como lança preparada para a guerra. Não se lhe veem os olhos, nem a boca, transida num esgar amargo de vida mal preenchida. Atravessa o campo alagado, os cascos respingando água nos olhos entreabertos da mulher que ainda agora dormia. As margens do rio não param de transbordar, a lezíria inundada, o rio escorregando pra dentro da terra, sem força, sem peso, sem pressa. O mais fértil dos mundos debaixo d´água.

Quando as águas refluem, a terra encharcada abre-se à semente. Sua e contrai-se, a água em si que se seca, a terra magra, escura, como ossos que se desenterraram e secam ao sol. O campino toma emprestado o vigor que o rio lhe concede, e atravessa os campos cultivados com tranquilidade e orgulho, seu cavalo de cabeça baixa sem nada respingar.

A mulher vê-se atravessando a ponte de ferro por cima da lezíria e do rio. É ela, mas está magra e ossuda como a terra. Reduz a velocidade a meio, os campos alagados a seu lado virando-se sobre si mesmos para vê-la passar. A mulher freia e para. Desce e anda pela margem; a chuva que já se sente inchando o caudal do rio, as beiradas de bocas abertas à água que se anuncia. A colheita está feita e no campo só sobra o restolho amarelo queimado de sol. A mulher anda sobre ele, e ele estala sob seu peso. Fios de água escorrem por entre as hastes quebradas; molham-lhe as pernas e fazem-na voltar à ponte.

As cortinas ondulam na janela, abandonando a sombra do campino que já é passado. A mulher levanta-se, o lençol em desalinho, os olhos encharcados como lezíria em flor. Como um dia após o outro, a chuva, a semente, a colheita.

08/05/2012

Notícias do canteiro

Perguntam-me sobre a obra. Aliás, perguntam como ficou. Como se alguma coisa por estas bandas estivesse no ponto de "ficar". Só rindo, mesmo! Não: tudo movente, nada fixo, como queria David Mourão Ferreira, o poeta português perito em lapidação de palavras e formas. Lapidar a vida: deve ser essa a lição que preciso aprender.

O ponto da obra, então. Ontem o céu se entalou entre os palitos de laje. Faltaram as escoras, por isso mais um atraso no advento do fim. Em breve (espero) haverá um teto, mas por enquanto o que nos cobre é esse céu azul pleno, semeado da esperança de que não chova. Roupa? Não se lava mais, perdeu-se o varal, a tomada... Lavar o chão? Sem sentido, igual lavar calçada. Deixam-se as coisas como estão. Assim como a alma, atropelada pelos carrinhos de cimento que circulam até mesmo de noite e até mesmo quando o pedreiro não vem, espremida por todos os lados da vida.

Estranho viver num canteiro de obras. Mesmo sem mania de limpeza, irrita o pó por todo lado, brincando de esconde-esconde com o bom humor, atrás dos tijolos que aguardam a parede que não vem, a fome, a sede, tudo agoniado do lado de dentro da gente. Um teste de paciência para o tempo que passa tão devagar, o dia de amanhã custando a chegar.

05/05/2012

A cidade nova X - o presente

Dona M. fez aniversário dia 25 de abril. Achei tão simpático (e revolucionário) fazer aniversário nessa data que resolvi visitá-la e levar-lhe um presente, e ainda umas flores. Flores, por aqui, é fácil encontrá-las; a duas quadras do cemitério, não faltam floriculturas em volta. Dia bonito, vou a pé escolher uma orquídea chocolate, suas flores miúdas delicadamente traçadas a marrom escuro. Bonito demais. E grande. Sorrio satisfeita, não tem coisa melhor do que dar presentes aos outros.

Volto para casa e embrulho um de meus livros. Não tenho papel, então o embrulho será invisível, mas a fita que o amarra fará as vezes do movimento de abrir que um presente demanda. Presentes abrem-se, deixam-se entrar, percorrem-se com os olhos, com as mãos, com a vontade. Deixam-se ficar ali, empoleirados em algum lugar da sala, e a cada vez que a vista pousar neles, quem fez a oferta materializa-se. Oferecer multiplica-se em quem sabe receber.

Dona M. espreita de dentro de casa com um sorriso espantado, e só então me dou conta de que talvez o presente em uma das mãos, o vaso repentinamente descomunal na outra, a visita a essa hora em que ninguém se visita, tudo isso junto, seja demais. E coro, vermelha de súbita vergonha de ter-me preenchido tanto da vontade de agradar ao outro que de repente tenha me perdido dos limites que se respeitam em situações assim. Mas o sorriso estampado de Dona M. não é desse tipo de espanto, mas da vida não lhe trazer presentes e flores todos os dias para diante de seu portão, que ela nem consegue abrir de tão atrapalhadas ficaram as suas mãos. E eu, que tinha pressa, e precisava só dizer-lhe com um gesto o quanto me alegrava e confortava a sua presença na minha vida, vejo-me rebocada para dentro dessa casa desocupada de quem já morreu. Passeio pelos quartos que se mantêm como se seus ocupantes fossem voltar a qualquer momento, como se os filhos que se foram pudessem sonhar ainda nesse travesseiro macio à meia luz, como se o marido morto pudesse perambular ainda e criticar-lhe as compras feitas sem raciocinar, diria ele. Dona M. conduz-me pela mão e eu deixo-me ir, porque eu não gosto de não deixar-me ir. Permito que entre em meu tempo e o desalinhe, que agarre a minha mão e a faça percorrer a sua vida, o seu passado, a colcha de presente que ganhou da nora viúva e de que não gostou, mas usará porque não importa o seu gosto, importa retribuir. Porque presentes, diz-me ela, são pedaços do outro, e pedaços do outro guardam-se para que o outro não se falte. Filósofa, minha vizinha.

Dona M. gosta tanto de receber presentes quanto de os dar. Mostra-me um freezer cheio de doces que não pode comer por causa da diabetes, e que faz para dar aos outros. Um armário cheio de panos de prato debruados a crochê, para quando perceber que alguém pode gostar. E conta-me tantas histórias que perco a hora, perco o compromisso, chego atrasada. Mas passo o dia sorrindo, pensando em Dona M. que pensará em mim no seu caminho da sala pra cozinha, e tropeçar nas flores, e da cozinha pro quarto, quando se deitar à noite, colocar seus óculos e me deixar embalar-lhe os sonhos.