28/03/2012

A cidade nova VII - o presente

Dona S. tem andado quietinha nos últimos dias. Quase não a vejo. Ontem saiu de casa com o genro, de carro. Arrumada e aposto que perfumada. Com pressa. Nem me viu aqui dentro da janela.

Hoje, como se a consciência lhe tivesse pesado, espreita pelo portão justamente quando chego de bicicleta. Dona S. tem uns olhos vivos que piscam sem parar, o cabelo grisalho cortado curto, jeito de andar de quem é despachado na vida. "Se eu soubesse andar de bicicleta e não tivesse vergonha de andar com as pernas de fora que nem você, também andava, sabia?". Rio, encolho os ombros e lembro de agradecer os pastéis de cebola que ela trouxe no sábado, pra mudar o rumo da conversa. Mas Dona S. é dura na queda: "Pois é, e de novo você não estava aqui, né? Tanto que você trabalha, pela mãe santíssima!". Se eu fosse me dar ao trabalho de ficar pensando que os outros querem dizer uma coisa dizendo outra, ficaria com uma pulga atrás de cada orelha. Mas é demais isso, prefiro convidá-la para entrar.

Não tem tempo, tem uma missão importante. E chega-se para perto, olhos cravados em nosso vizinho, Seu G., vindo da esquina de lá em passos hesitantes. Mesmo sem tempo, empurra-se pra dentro do portão. Seu G. não deve ser o problema: seus grandes olhos azuis esquecidos, cor de Alzheimer, perguntam-me todas as manhãs quem sou. Não se lembraria do que ouvisse.

Dona S. tem um presente pra me dar. Mas antes quer me perguntar se eu quero, que não é coisa que se dê a qualquer um, assim de qualquer jeito. Anos atrás, quando seu marido morreu, comprou um plano funerário. Desses que a gente paga a vida toda pra não dar trabalho pra quem fica quando a gente se for. O plano dela é dos melhores - não paga quase nada, um sistema que não entendo de "quando morre um tanto de gente que começa com S., que é a letra do meu nome, aí que eu pago, mas só um tantinho...". De vez em quando, tem uns sorteios, conta, assim como se fosse um consórcio. E Dona S. ganhou um dos últimos: 10 caixões para distribuir pela família. Decido sentar-me - a história vai longa e promete.

Como não tem família pra tanto caixão, quer oferecer-me um de presente. E prende entre as suas uma de minhas mãos, para garantir que não seria para qualquer um que faria esse agrado. Eu procuro, mas não encontro reação pra lhe dar. Conta-me detalhes do imóvel de vida eterna: não é coisa de luxo, mas também não é daqueles de pobre. Não que faça diferença, diz ela, mas não precisa esculhambar. Acrescenta que se eu quiser um plano desses, ela me leva lá, e ainda me consegue um desconto. Porque além do caixão, tem outros gastos, o transporte, as velas, as flores, o tapete... Ri-se de repente e diz que "de transporte nem precisamos, né? é só empurrar até o fim da rua!!" E ri com sua grande boca de risos incontidos. É que moramos na rua que morre no cemitério. Eu sorrio, aceno a cabeça, falo um "hmm" de vez em quando...

Não sei que lhe diga. Nunca me fizeram uma oferta dessas. Pergunto-lhe onde fica o caixão até ser usado: "filha, na funerária... vc queria ficar com ele em casa?!". Deve achar que eu não penso, penso. Mas penso, e estou até atônita. Não sei se quero um caixão e não sei como dizer-lhe isso. Estou quase prestes a aceitar, e a agradecer, tudo graças à boa educação que me deram, quando ela se levanta e me diz que pense, pense que isso é coisa séria, não é pro resto da vida mas é pro tempo todo da morte. E assim como veio, com pressa e dizendo que não podia entrar, foi-se, acenando pro Seu G. que entretanto nem saiu de onde estava, encostado à árvore da calçada com quem conversa todas as tardes.

27/03/2012

A cidade nova VI

Dizem-me que faz tempo desde o último "A cidade nova". Têm razão. Vou em busca das mudanças dos últimos dias, pra registro e satisfação de quem está longe e quer saber. Ora bem, aí vai!


O roteiro segue o curso do dia. Resgatado o costume civilizado de ter tomadas elétricas na cozinha, todo mundo quer cozinhar. Panquecas na hora do almoço?, pergunta um. Posso preparar um suco? diz o outro. E a todos respondo que sim, imersa num daqueles dias em que tudo é tão, tão relativo. Tudo o que querem fazer conecta-se à rede elétrica, todos felizes com a quantidade de possibilidades pela cozinha. Pena que lavar a louça não precise de eletricidade: teria 4 pares de mãos à disposição para o trabalho sem maiores discussões...




A sala, que não existia, ganhou espaço - a céu aberto, é verdade, mas o certo é que dois dos montes de entulho e terra foram substituídos  pelo chão da sala, contra piso grosseiro onde desenharam um "bem-vinda, Ana!" no fim de semana, ao lado de um "Valdete" que atesta o autor da obra. As colunas ainda lá estão, ferro sem preencher, fantasmas sob o sol do meio do dia. Sento-me a seu lado, disposta a me reconciliar com esse clima estranho desta cidade, que me faz zonzear pela rua se não ando pela sombra. Aliás, é o que me diz Luzia, que encontro de repente no meio da rua hoje cedo, mãe de amiga querida que se foi pra São Luís: "Ana, Ana... ande pela sombra, minha filha". É o que eu tento, respondo-lhe: mas no fundo eu gosto do arder do sol na pele. E me descaio da sombra de vez em quando, como se fingisse estar distraída.



E agorinha, a meio da tarde, fujo de dentro de casa, para dentro do quintal que há nas traseiras, e do qual nem quase falo. A luz que tremeluz por entre as folhas, os verdes que confraternizam no fundo desta casa de cidade fazem-me desapertar a espessura amarga da distância que se criou de repente hoje pela manhã, ao tentar desabotoar uma saudade que já se torna mordente. Não resolve, mas amaina, à espera que o tempo passe. Enquanto trabalho no que preciso.





Dores

Nunca tinha feito fisioterapia na vida. Numa sequência de médicos dispostos a me ajudar, o último finalmente acerta no diagnóstico: um nervo pinçado.  Tive sorte na escolha, baseada apenas na coincidência entre descobrir uma oficina de reparo de sanfonas e achar seu nome na lista de médicos disponíveis: Dr. Luís Gonzaga. Com a polidez que só os médicos de outrora têm, pergunta-me da vida, do sono, da alimentação. E da felicidade. Devo ter feito uma cara de surpresa absoluta, porque ele tira os óculos e sorri um sorriso de dentes antigos e diz simplesmente: porque é preciso ser feliz, não é mesmo? E recoloca os óculos para quem sabe anotar (seria bom) um "sim, é feliz".

Envia-me à farmácia e à fisioterapia.  Tenho 10 sessões pela frente, todas seguidas, um dia após o outro, sem interrupção. Nesse momento em que o mundo parece arrastar-se ao meu lado, a premência de algo que acontecerá peremptoriamente todos os dias, sem trégua, é um alívio. O consultório do fisioterapeuta é imenso, e cheio já às 7h da manhã, assim que abre. Uma porção de gente com pequenas e grandes questões, recém-operados, traumas de todo tipo, aparelhinhos e lâmpadas ligados por todo lado, despertadores que avisam a cada instante que algo chegou ao fim. Meu nervo pinçado é um detalhe irrisório no movimento deste mundo.

As ondas curtas são meu único tratamento - durante esses 45' vezes 10 momentos dos próximos dias, não preciso fazer nada, a não ser deitar e pensar na vida (se quiser), enquanto os aparelhinhos ora me formigam o tal nervo, ora me são completamente indolores. Estes últimos são as tais das ondas curtas, e são de longe os que mais me espantam.

Meu companheiro na maca ao lado, com uma lâmpada de infravermelhos sobre a articulação do joelho, diz-me que ondas curtas é tudo de bom: aquece por dentro sem se sentir nada por fora, inibe as terminações nervosas de nos fazerem sentir dor. Conta-me que faz fisioterapia muitas vezes: gosta de jogar futebol aos fins de semana e normalmente excede-se. A fisioterapia é seu sossego, acrescenta: não preciso fazer nada, aqui, e só converso se me apetece. Mesmo feliz de ter sido eleita sua interlocutora, nem consigo escutá-lo muito; tenho grudado em mim um aparelhinho que conscientemente não sinto, que não dói, que não aquece nem esfria, e que faz com que a dor realmente desapareça. Parece milagre, e eu quero prestar-lhe atenção, para que nada me escape. 

Podem não ser somente as ondas, mas também o gel e o comprimido receitados pelo Dr. Gonzaga - o fato é que a dor do corpo já se foi. E me deixa mais aliviada, mas ao mesmo tempo mais atenta às dores dos outros lugares, naquele efeito, tão bem conhecido de quem já passou por um parto, de que é impossível sentir-se dor em dois lugares ao mesmo tempo. Difícil às vezes é saber se isso é uma vantagem ou um inconveniente.

26/03/2012

Dos diários II


"Agora que você não está ao meu lado, começo a desabitação da presença. Talvez para que o abandono não me doa. Que o olhar de adeus que você lançou às minhas costas, e que fez os meus músculos se retesarem, não perfure meu espaço aéreo. Qualquer som tornaria concreta a abstração tão grande deste boiar. Por isso desabito-me de você. Imóvel e em silêncio.

Vão faltar-me os nós dos seus dedos ao baterem à minha porta, mas não me interrompo no preparo da mala em que seguirá com você tudo o que nos pertence. Não é preciso que nada fique para trás. Nem um som sequer. Nem um esboço de gesto. Bastam-me as impressões gravadas por todas as paredes desta minha casa, o molde de gesso dos dias somados um ao outro, nesta casa que você habitava até eu perceber o início da desabitação. Quando a dizíamos: nossa casa. Quando assim se tornou, assim que abri a porta e deixei entrar o seu corpo esguio e oscilante, sem perguntar quase nada. Ou perguntando apenas: o que fará comigo quando se for? 

Não houve resposta, e ainda assim deixei você entrar, e o meu espaço tornou-se seu. E o tempo em que os seus passos ecoavam nas escadas de pedra da entrada de baixo fica guardado na áspera gramatura da minha memória. E eu voltarei a ouvi-los, fecharei os olhos e sentirei atrás do meu pescoço o hálito quente do toque das suas mãos. Como se elas tivessem voltado. Como se elas tivessem se reacendido no desejo que palpitará por entre as minhas veias, incendiando todo o meu corpo até chegar ao meu centro.

Dobro-me em duas nessa falta de habitação. Escorro a mobília, tão pouca, ao longo dos corredores encerados. Dobro as cortinas ali encostadas, ainda à espera da escada que nunca veio. Doo a louça ainda nas caixas, à espera de que nos sentássemos um diante do outro, as xícaras e os pires e as taças tremeluzindo nos olhares que trocamos. E de repente passa sobre mim o voo da ave que diz que a vida acaba antes de começar, mesmo quando no início tudo é já tanto. Seus olhos de azeviche, na sua dureza cruel e crua, refletem o meu rosto. Leio nele que sequer ainda começava a ser sua. E no entanto você já se foi."

(Dos diários de Hope, a personagem nascida no sul)

25/03/2012

O homem de Porto Pim


Para Antonio Tabucchi (1943-2012)

Muitos escolheram Lisboa, ao longo da vida, como seu lugar de morada. Mais raros foram os que, agora ou antes, se decidirão a mudar horizontes apaixonados por um poeta.Foi o caso de Antonio Tabucchi. Apaixonado por um pequena coletânea em francês de alguns versos de Pessoa, estudou português para lê-los no original. Mudou-se para Lisboa para penetrar a alma portuguesa com dedicação e afinco. Para assim poder ser o tradutor de Pessoa para o italiano, tarefa que manteve por toda a vida.

Conheci  Antonio Tabucchi muito por acaso há anos atrás, nas prateleiras de uma livraria pequena em Ponta Delgada, capital de São Miguel, arquipélago dos Açores, Portugal. "Mulher de Porto Pim e outras histórias". Nunca tinha ouvido falar dele, mas gostei de conhecer a escrita de um italiano que se debruçava sobre uma mulher açoriana. Estava grávida, naquele ano, fazendo um curso sobre literatura insular, e o Tabucchi foi um contraponto agradável, que me deu leveza às noites de fim de gravidez em que os pulmões espremidos nos sufocam e não nos deixam dormir.

Depois desse encontro, acompanhei-lhe os passos aqui e ali; vi a adaptação de "Afirma Pereira", um dos últimos trabalhos de Mastroianni, um ano antes de passar-se ao outro lado. E hoje, 25 de março, quem se passa para esse outro lado é Tabucchi.

Acho estranho quando um escritor morre - já escrevi isso em algum lugar. Porque nem me parece que ele estivesse vivo, que de fato vivesse enquanto escrevia. Talvez porque invariavelmente me pareça que entre as muitas palavras que leio há aquelas que vêm de um ponto que não está nem na vida nem na morte. A arte é domínio à parte, não pertence à seara do tempo.

E lá se vai Tabucchi - que dizia de si próprio ser existencialmente um professor de literatura portuguesa na Toscana, mais do que um escritor propriamente dito. A sua rotina dividia-o entre seis meses em Lisboa, seis meses na Toscana, ensinando literatura portuguesa na Universidade de Siena.  De longe, parece-me uma vida pacata, como o é a sua escrita - forte, densa e com uma dose pacata de olhar pra vida e vê-la assim, passando por nós como barcos à beira mar. Para desejar-lhe uma boa viagem, gostaria de saber em que caixa se escondem seus livros, para poder folheá-los a todos e escolher umas páginas ao acaso, lê-las em voz alta antes de dormir. Para que ele tenha certeza, no caminho que faz, de que o que escreve fica entre nós.

Do álcool - e de como nos rimos do que não tem graça

Uma de minhas colegas de curso em Porto Alegre, na sua apresentação, declarou-se vegetariana e imediatamente advertiu e pediu desculpas por simplesmente não poder olhar nos olhos de alguém que coma carne. Declarou-se radical absoluta nesse terreno. Ninguém disse nada, embora tenha sido fácil registrar um ou outro olhar trocista dos comedores de carne de plantão. O típico.

Conversei com ela depois, na hora do intervalo, porque pessoas assim funcionam-me como ímãs. Fiquei intrigada com o pedido de desculpas, tão desnecessário achei. Ela explicou, sem muitos rodeios, que estava cansada de ser taxada de radical depois de um tempo, e preferia que a vissem logo como era no primeiro contato. Achava que todo mundo saía perdendo menos tempo. Saímos pra tomar uma água, e a dureza inicial foi substituída por um interesse pelo alheio difícil de encontrar em pessoas amena e declaradamente não radicais. Em pouco tempo que olhou pra mim entreviu um tanto de coisas, e perguntou sobre elas de forma bem radical. Gostei.

Além dos animais, que não come, ama escrever (que é o que ali nos une a todos) e ama descobrir todos os terrenos em que a humanidade é dupla, ambígua, ali mesmo onde se perde pensando que está se encontrando. E por isso começamos a conversar sobre álcool. Falei-lhe das imagens que tinha recolhido uns dias atrás pelo facebook, piadas inofensivas (se tal coisa existisse, segreda-me o Freud que escreveu sobre chistes e inconsciente) em torno do consumo de álcool - aliás, eu diria que da paranoia generalizada de como tudo se reduz a beber. E ela pediu-me que lhas mandasse. Aqui estão.

Tudo engraçado, ou quase. A facilidade do botão de "curtir" faz com que todos sejam(os) vítimas fáceis do que à primeira vista é uma piada inocente e aos poucos (olhe em volta) se torna uma realidade grotesca. À qual todos nós estamos conectados e pela qual somos todos consequentemente responsáveis. Curtindo ou não curtindo as piadas de internet, o fato é que somos todos responsáveis pela quantidade assombrosa que se bebe todos os dias em todos os lugares. Por todas as idades. O estado tenta (ou parece tentar) controlar alguma coisa, lei anti álcool batendo nas portas dos bares e restaurantes, mas nada muda e o mundo bebe.  Sobretudo, os jovens. Sem saber onde tudo isso pode/vai parar. E nesse mundo colorido pela auto-complacência fácil, nossos umbigos desaparecem nessa hora, e dificilmente nos vemos eletrocutados pelo que acontece. Eu? Comigo? Não...

Todas essas imagens são auto-explicativas, dispensam comentários. Fomentam e disseminam a ideia de que estamos à merçê do álcool: é ele que ilumina meus fins de semana, é a ele que cedo o espaço dos meus peixes, a ele que dou as mãos como se fosse família, a ele que devo obediência, a ele que salvo quando tudo parece estar perdido, por ele que procuro assim que alguém chega até mim, a ele que apelo quando me falta a serenidade.

Lembro-me delas sempre que passo de bicicleta, já noite, pelas dezenas de bares que rodeiam a minha casa; enquanto diminuo a velocidade até parar e apoiar o pé na calçada. Penso no que pensarão essas centenas e centenas de pessoas, jovens na sua gritante maioria, que os enchem noite após noite. Visito-os de vez em quando - e não há conversa que consiga sustentar-se num lugar que tem tudo, menos o silêncio mínimo que permita que se ouça o interlocutor. Ou seja, conversar não precisa. Claro que a paquera rola solta, turbinada e amaciada à segunda ou terceira cerveja - mas não há nada que me faça pensar em que daqui sairão relações que durem mais do que uma noite. Ou talvez me engane, e seja este um ponto de partida válido como qualquer outro. Certezas são sombras perigosas.

Há uma vibe intensa e uníssona, e para entrar nela é preciso sim beber uma ou duas doses - é isso que me diz um garoto, feliz da vida por ter passado na faculdade e por poder curtir a vida com aqueles que (imagina) se tornarão seus amigos. Acrescentar "pro resto da vida" seria uma licença poética exagerada da minha parte, porque nem ele diz isso nem está sequer pensando que exista algo assim como "o resto da vida". Com um copo na mão, é mais fácil conversar, a vida parece muito mais amena, a manhã de estudo muito mais longe, o garoto na mesa ao lado muito mais perto. As fronteiras, ô delícia, se dissolvem, e não é preciso comprometer-se com quase, quase nada. Nem com o dia de amanhã nem com a felicidade de ninguém.

Embora a atmosfera seja leve, alegre, descontraída, as imagens que acompanham este desabafo estão fixas nas minhas retinas, assim como se fixam dentro dos cérebros desses jovens que acreditam que a felicidade que mora dentro de uma garrafa é de fato um caminho viável e inofensivo de chegar à felicidade da vida. Que publicam e curtem todas elas nos seus murais. Que crescem acreditando que um trago a mais não faz mal. Que uma bebedeira ou duas não tem risco. Porque nós fizemos igual - ouvem em casa de seus pais condescendentes. Porque faz parte dessa fase da vida - ouvem de quem quer que seja. Porque é preciso conviver com o álcool e saber beber.

Tenho andado arredia demais pra conversar, estes dias. Prefiro observar de longe, o mais distante que possa para preservar-me a mim mesma. E por isso volto pra casa, sem saber por onde continuar, ou o que começar. Têm razão os organizadores da festa do próximo 7 de abril de Botucatu - e agora José? 






24/03/2012

Dos diários

"Lembra,  meu amor, de todos os lugares que já visitamos planejando viver em cada um deles, como se pudéssemos viver todas as vidas que temos reservadas em uma só? Uma urgência de querer ser tudo a meio do caminho de ida? Sem pensar em como fazer e já fazendo, num esboço de percurso a traços largos, abertos, amplos, que se constrói só de palavras e desejo e se satisfaz pleno? Você lembra, meu amor, aí onde você está agora?

Como, num dia, a moenda de farinha de madeira antiga plantada no centro de um vale ensolarado, um rio cruzando-o a meio, cão tão branco como a lua atravessando-o para vir ao nosso encontro. Como, num dia, a fábrica de rapadura no centro do sertão queimado, quase abandonada de tão à venda e por tanto tempo. Como, num dia, o boteco à beira mar, na calma das praias abandonadas. Ou a lua alta por detrás de um castelo medieval. A escarpa sanguinária projetando-se sobre o mar. O quintal de alfaces e couves verdes na beira da estrada de muros de pedra, uma senhora de preto acenando que entrássemos. O mercado barulhento a meio do deserto escuro e fundo. A casa abandonada do vigia das ondas do fim do mundo. A enseada tranquila que de repente alguém transforma em cenário de um amor improvável. Ou a dureza da pedra no chão de terra, a vida dupla. Ou a fome. O olhar da desgraça. Todos esses que se fizeram nossos lugares de morada.

Por isso a nenhuma cidade posso ocupá-la como lugar de vida imaginária sem a sua companhia.

As coisas passam por mim e ficam, demoram-se nas perguntas que me fazem, curiosas do reflexo que teriam nos seus olhos, se você aqui estivesse. Como esta feira livre, e o seu mar, as pessoas que compram, planejam, sorriem, falam quase que em outra língua, um novo acento na emoção do tempo. E vejo por dentro como só as solidões como esta que construo com a sua ausência me fazem sorrir os lábios. Ouço as perguntas que você faria, escuto as histórias que descobriria e vejo os caminhos que se abririam só porque somos tão diferentes naquilo que ouvimos, perguntamos, descobrimos. Como dois mundos que se encontraram e se juntaram sem saber mais onde começa um e termina o outro. Nem a ausência, a distância, o som mudo da voz que se cala mudam a vida."

(feira do Brique, em Porto Alegre, onde nasce a personagem)

23/03/2012

Hora de jantar

Coisa mais engraçada, sair sozinha à noite. Não é uma experiência que me seja muito frequente, porque seja família, filhos, amigos, há sempre quem me rodeie (graças ao bom deus). Mas é que eu perco essa experiência sublime que é observar sem ter ninguém pra conversar e distrair.

Achei que depois de um dia esquecido de comer, valia a pena enfrentar a parrillada perto do hostel. Lá fui, agorinha à noite, sexta feira de céu limpo. Não sei quem, à entrada, olha com maior desconfiança - garçons, mulheres ou homens. Estou desenvolta hoje, demoro até a saber onde quero me sentar. Procuro um lugar estratégico de onde observar - preciso de ideias para minha personagem, que aliás detesta vegetarianos. Acabo de descobrir, passando ao largo da imensa grelha bem ao fundo do restaurante. Segreda-me coisas, ela. É só uma questão de ouvir.

Assim que chega a cerveja que pedi, cantos de olho olham pra mim. Posso ouvir os pensamentos em volta - além de sozinha, a mulher bebe. Ó céus. Morro de rir. Divirto-me mais ainda porque a cerveja é tamanho grande, e toda minha. Hei demorar para chegar ao fim e fazê-lo como quem saboreia o que bebe.

A tv está indefectivelmente ligada, na indefectível novela. Metade dos presentes finge que não se interessa, até aquele casal na mesa perto da entrada, cada qual pensando no que exatamente fazer quando sair dali.  Conversavam, quando cheguei, mas aos poucos as vozes foram apagando-se, as bocas ocupadas apenas em comer. Daqui a pouco ela boceja, olha em volta e sacode o cabelo bem cortado, mas se esforça em disfarçar - o que não é difícil, porque entretanto o homem de costas curvadas e camisa cor de nuvem se interessou pelo rumo da personagem má da novela (matou um, ou dois, ou três no decorrer da minha observação), nem percebe a boca que se abre atrás da mão. Assim que chega nova peça de carne à mesa, o interesse pela novela se desloca para o sangue na tábua. E ambos voltam a conversar, comentando o ponto certo do sal e a maciez do pedaço de ancho. Não os ouço, mas posso ver os lábios da mulher desenhando as palavras.

A mesa em frente vale a pena. Três homens e três mulheres. Uma delas termina apoiada nas costas do marido/companheiro/namorado, voltado o interesse por completo para a novela. As outras duas disfarçam, mas fazem de tudo para conversar com quem está à sua esquerda, e poderem ficar de frente pra tv. Os homens, dois deles de frente para mim, trocam um par de olhares, que me fazem automaticamente prestar imensa atenção na novela. O mais novo disfarça - cada vez que intercepto seu olhar, pega o guardanapo e enxuga alguma coisa - boca, mesa, rosto, braço. Uma graça - se tivesse os dutos lacrimais entupidos como eu, podia aproveitar e enxugar o olho sem parar. Decido não desviar o olhar, é preciso forçar a personagem a que se revele, aprendi. A reação é rápida; larga o guardanapo e pega nos talheres, num súbito e voraz apetite pelos restos mortais de uma salada caesar quase no final.

Viro-me para o lado e dou de cara com a senhora sentada na mesa mais próxima, olhando para meu sapato não sei se condenando-o ou se querendo saber onde o comprei. É pena que não pergunte, e que se vire para o que julgo seja seu filho, dando-me as costas, porque eu dir-lhe-ia que é um conforto só, passo o dia andando e nem sinto os dedos dos pés. Atrás de mim, em voz mais alta que o ruído de pratos e talheres, um homem comenta do trabalho que uma aluna apresentou hoje à noite. Sua companheira ri como riria de qualquer coisa que ele dissesse, porque seus olhos estão cheios de amor e seus ouvidos sequer ouvem direito. Mesmo de costas, é tão óbvio, no soar da sua gargalhada. E ao fundo, lado direito, uma mesa ocupada por três homens, todos virados para onde estou, obviamente comentando o que, se eu estivesse perto, certamente calariam. Se os olho mais dois minutos, levantarão o copo para me propor um brinde. Lembro-me de meu pai e sento-me com o que ele chamava de juízo. 

No meio de tudo isso, também eu fico presa à novela. A televisão está no modo mudo, portanto são só imagens, que dizem tudo, e até mais entusiasticamente, do que diriam as palavras das personagens. Tal o tenebroso poder da imagem. Cristiane Torloni diabólica consegue matar um na banheira, quase outra no viaduto e mais alguns num acidente de carro. Estou tão dividida entre as personagens da tv e as personagens da sala que não sei se as confundo a todas.  Compenetrada no prato que acaba de chegar, e que me dá um minuto de trégua nessa observação cruzada, esqueço-me delas. E de repente, sem que eu achasse que aconteceria, a personagem a que preciso dar vida emerge em meio às garfadas. Bem me diziam hoje que entre comer e escrever há grandes parentescos.

Facebook lacrimoso


Acordo com uma anomalia estranha, e decido ir ao médico para ver do que se trata. Interessada em saber do SUS gaúcho, é pra lá que eu vou. Espero um tanto, mas nem tanto quanto poderia se esperar. Assim que sou atendida, uma enfermeira registra minha pressão (baixa, claro) e me pergunta o que tenho. Quando lhe digo, levanta os olhos do papel e acha melhor eu mesma explicar ao médico. E deixa o papel em branco.

O médico nem me olha assim que entro. Digo-lhe então o que me acontece: “meu olho esquerdo não para de chorar”. Longe de se surpreender como a enfermeira, diz-me que sim, que não me preocupe, que se trata da obstrução de uma via lacrimal que consequentemente provoca o lacrimejamento contínuo (ou intermitente). Olho-o digerindo o arrazoado, enxugando o olho que  chora, e não entendo como uma via obstruída pode causar um lacrimejamento contínuo (ou intermitente). Mas não está obstruída? Parece-me metáfora demais pra ser verdade. Dr. Melo não me ajuda a entender; prescreve um remédio de pingar que certamente não usarei e diz-me que isso passa, que não me preocupe, repete. Só faltou o tapinha nas costas.

Dou umas voltas pela cidade – Gazômetro, só pra descobrir que errei o mês ao ver que hoje aconteceria o fórum mundial da bicicleta (foi em fevereiro); orla do Guaíba, que vem a ser (acho eu) o calçadão de Copacabana abaixo do trópico de Capricórnio; e num de repente dou de cara com a prova de laço do rodeio da cidade de Porto Alegre. Parece-me um programa pra lá de adequado à visita ao Rio Grande do Sul, mesmo chorando ininterruptamente de um olho. Um gaúcho de bombachas me olha assim que me sento na arquibancada, e olha de novo cada vez que enxugo o olho. Se me perguntasse o que tenho, diria que choro por estar entupida. E enxugaria a lágrima. Porque cada vez que falo parece que o entupimento piora e o lacrimejamento acompanha. Fico por lá um tempo, com vontade de ter ao meu lado o Thiago, ex-aluno campeão de laço, para me explicar do que se trata, como é que se pontua essa corrida desenfreada de gente a cavalo laçando as pobres novilhas desarvoradas. Vou embora passeando por entre acampamentos que cheiram a chimarrão e carne assando.

Vou fazer o que tenho de fazer, que é escrever. Chego enfim à biblioteca da PUC, depois de andar quilômetros; confortável, acolhedora, luz e temperatura no grau certo, silêncio e solidão absolutos.

Decido experimentar soltar pelo facebook a minha inquietação ocular, enquanto aqueço a memória para continuar o que escrevia ontem. É sempre um risco, já se sabe que facebook é órgão engolidor de tempo útil. Mas ainda bem que não me inquietei com o tempo, porque agora posso rir das respostas, cada uma mais inventiva que a outra, dissolvendo um a um os nódulos que me fazem chorar.

Regina diz-me que é uma verdadeira antítese, e dou-lhe razão: a vida anda mais cheia de antíteses que de metáforas, água que escorre por rios secos. A Catarina diz logo a seguir que "a lágrima entra!", o que me deixa perplexa: as lágrimas, então, entram? E por isso nos entristecemos? Porque entraram em vez de sair? A Chris, para completar, esclarece a todas nós, porque seu filho também tem dessas coisas: isso acontece quando o canal não consegue jogar a lágrima na narina, e faz com que ela pule do olho. Ou seja, descubro: também choramos pelo nariz!

Fico me perguntando quantas lágrimas não andarão perdidas por dentro de nós, confundidas com o lugar de saída, encontrando tubos obstruídos, passagens bloqueadas, saídas não programadas que dão medo por não sabermos onde conduzem. Fico feliz destas minhas terem encontrado esse subterfúgio da epífora, nome científico dado à drenagem deficiente dos canais lacrimais. Espero que tudo volte ao normal e que as lágrimas involuntárias não demorem a secar. E a Chris volta para me ajudar ainda uma vez: "deve ser por isso, Ana, que se diz engolir o choro". Quando as lágrimas caem no nariz e na garganta, em vez de escorrerem livres pelos olhos. Agora, sim, a metáfora ficou completa.

22/03/2012

Um copo d'água no museu

Tenho várias tarefas pela frente e todas elas precisam se transformar em escrita. São escrita. É uma bênção uma coisa dessas, poder desligar-me do mundo e mergulhar no que me propõem que escreva. Por dois dias, estou na posição inversa à que costumo estar. Não preciso preocupar-me com a escrita do outro (não de forma ativa, pelo menos), e posso aproveitar o que dizem dela (e da minha), absorver cada comentário e incorporá-lo ao meu arsenal crítico interno. Posso ficar sentada sem dizer uma palavra.

Dos vários exercícios, há um que me custa. Tenho horas para completá-lo, mas ainda assim. Preciso construir uma personagem com apenas dois dados: 1) um bancário, 2) aflito com o fechamento de seu caixa. Não é pra ser narração; não há história, trama, enredo – apenas a personagem. Devo fazê-la viver, ganhar corpo, sangue, concretude, e a partir desses dois dados. E lá vou. Preciso encontrar-lhe um dilema. Pergunto-me se ela não quererá no fundo a demissão de seu cargo, para que a vida lhe seja devolvida com o último contra-cheque. 

Decido amparar-me nos processos de sempre, que se resumem a divagar e a anotar palavras a esmo pelo papel. (Vejo que o professor me observa, lá da sua mesa, por cima dos óculos; professores tendem a achar que não são observados quando observam. Sorrio-lhe de cá, ele sorri sem graça de lá.) Lembro-me da “educação bancária” de Paulo Freire, e a partir dela reconstruo mentalmente aquilo que dizia Walter Benjamin (e que E. Said retomou, segreda-me o neurônio à esquerda tomado pela variante gaúcha dos meus colegas: naquele livro que tu leu, lembras?): que a barbárie é fruto da civilização. Bancos pertencem à barbárie ou à civilização? E a aflição do bancário? E o caixa? Vou registrando, depois agruparei de alguma forma as ideias.

Dos pensadores, assim aleatoriamente, volto à exposição do Bispo do Rosário que visitei de manhã, à mostra de arte contemporânea logo a seguir e à crise de choro a meio do museu, por sentir de repente em mim o poder de cura que sei e leio e sinto que a arte provoca. Sento-me de novo, dentro da minha memória, no degrau da escada; como dizem, "lavada em lágrimas"; até que um dos seguranças, velhinho de dentes tão brancos por trás da pele tão negra, me traz um copo d’água e me diz que venha ver uma coisa que me fará sorrir – uma escultura feita de ferro e vassouras verdes, como uma aranha gigante que tudo varre. E daí me conta de como gosta de trabalhar ali, um lugar onde as pessoas vêm pra se sentirem felizes e “por isso o copo d’água, porque te vi dali chorando e fiquei preocupado, não sabia se era de alegria ou de tristeza. E precisava fazer alguma coisa, né?”. E desculpa-se por não se sentar ao meu lado na escada, mas é que não lhe permitem esse descanso. Fica-se ali, só me vendo, e sem saber me amparando e me trazendo de volta da queda.

O professor vem espreitar o que escrevo, e sorri quando vê que não é a personagem. Digo-lhe que vou chegar lá, que não tenho nada para fazer até amanhã de manhã. Bate-me de manso no ombro e deseja-me boa noite – e diz que, como eu, também pretende trabalhar de madrugada. "O importante é que escrevas, guria." E eu morro de rir desse "guria" que me traz de repente outras pessoas pra dentro do peito. 

A volta à vida de um campus, especialmente como aluna, provoca-me um formigamento interno que faz com que a memória das coisas volte a funcionar. Lembro-me de textos, de autores, de frases, tudo o que estava lá guardado, no fundo do fundo da memória. Quando o inspirador-professor conduz com maestria o curso das próprias ideias, preciso refrear meu braço para acrescentar alguma coisa. Hoje, porém, refreio sem problemas, nesse estado de ensimesmamento em que me recolhi, depois de tomar até a última gota da água de seu Eusébio, segurança do Museu de Arte Contemporânea de Porto Alegre.

17/03/2012

Promessas


Acabam de me dizer, por telefone, que o óbvio e o sutil são coisas muito próximas. Escrever, às vezes, é uma tentativa de se encaixar a vida no vão que se forma entre ambos. De forma sutil, falar do óbvio. Crônicas usam largamente desse artifício. Da seguinte forma.

Parte-se de qualquer coisa. Por exemplo, da palavra “promessa”. Porque se pensou nela. Porque se tornou semente e ficou germinando por dentro. Porque alguém falou, ou de repente lemos em algum canto. Para se partir de uma palavra assim à toa, um recurso muito útil (e que pode poupar horas e horas de análise) é um bom dicionário etimológico. Ou, enquanto se vence a preguiça de procurar um, pensar em como outras línguas traduzem a palavra. No caso de promessa: promise em inglês, promesso em italiano, promesa em castelhano, promesse em francês. Vê-se que a raiz histórica é a mesma – dá logo vontade de saber mais!

Crônicas nutrem-se da curiosidade e da surpresa. Além do humor, que rezam os manuais devam contemplar, é preciso uma pequena surpresa, filha do movimento curioso. Crônicas, aliás, são coisas que se nutrem de pequenas, ínfimas surpresas, coisas que nos fazem soltar um “ó!” súbito, quase inaudível. Diferentes de coisas mais agudas, como os romances, que nos fazem rir, tremer, chorar, se extasiar, às vezes em doses superlativas. Crônicas, não: são leves, alívios, plumas absolutas no mar estranho que nos rodeia.

A surpresa, então, pode vir do significado original da palavra que se pescou no mar de todas as demais. Promessa, à guisa de ilustração, vem da palavra latina promissus: que significa fluxo, fluir, fluindo. Promessa pode portanto ser aquilo que flui, ou o próprio fluxo. (Vai ficando interessante.)

O acaso (se tal coisa existisse) ajuda bastante a escrita de crônicas. Quase sem querer, deslizando os olhos pelo longo verbete dedicado a promissus, vejo que dele se origina a palavra spondere. Só porque gosto de palavras que começam com encontros estranhos como spon, que se derretem na boca quando começam a ser pronunciados, decido ver do que se trata. E as coisas começam a fazer sentido e a encaixar-se, naquele vão entre o sútil e o óbvio; se eu estivesse à procura de uma explicação para alguma coisa, teria acabado de encontrá-la. Ora veja:

Spondere, além de ser filha de promissus, é parte integrante do nosso verbo “responder”: re-spondere. Considerando que promissus (e spondere por proximidade) significava fluir, e que re é prefixo largamente usado que significa basicamente “de volta”, chegamos à constatação (entre o óbvio e o sutil) de que uma resposta é algo que coloca o “fluxo de volta”. Sem respostas, não há fluxo que se mantenha.

E brinquemos um pouco de mais de prefixar a vida. Corresponder: aquele “fluxo de volta” adquire o fantástico co, que nos acompanha desde que o tempo ainda não era tempo de nada: vem do proto-indo-europeu kom, que significa tanto perto quanto junto quanto com. Ou seja: corresponder trata-se de criar, perto, junto e com alguém, um fluxo que retorna. Só de pensar, a gente se engrandece.

Mas promessa dá ensejo ainda a outras coisas! O verbo prometer, por incrível que pareça, tem um passado histórico muito diferente. O latino promittere tem dois grandes ancestrais (mittere e omittere) e um prefixo que muda tudo (pro). Dando asas à imaginação, posso perfeitamente pensar que, se prometo algo a alguém, envio (mittere) meu desejo, cuidando-o e pondo-o a um lado, para que não se perca (omittere). Para chegar ao nosso prometer, preciso agregar o sufixo pro, que faz com que o futuro se antecipe: envio e cuido, mas antes mesmo que tal coisa possa acontecer. E num átimo aparece-me de novo o prefixo com, que tudo mais uma vez amplia. Quando me com-pro-meto, é porque tudo aquilo (enviar e guardar antes mesmo que seja hora) deu-se com a participação de outro(s). Algo que foi pensado, desejado, querido é enviado, guardado e cuidado – junto, perto e com alguém, antes mesmo que possa ser tudo isso.

Sempre que escrevo, percebo o quanto me com-pro-meto. Ao contrário de Menalton Braff, de quem falava outro dia, não escrevo para mim mesma. Ou talvez no fundo o faça, mas é através do outro que acontece. Porque escrevo para que o outro leia, para que o outro me capte, no óbvio e no sutil, na minha escolha das palavras e nas ideias que talvez aleatoriamente procure para torná-las carne e osso. Porque tudo, na vida, é pretexto de alguma coisa: tudo, na vida, é uma espécie de ensaio daquilo que depois, aqui, será texto, antes que seja passado. As crônicas, são sobre isso. Sobre as respostas que se dão à vida para que o fluxo não se interrompa, e para que o antes não se perca em face do depois, que talvez venha a ser só silêncio.

13/03/2012

Curar panelas: dicas para quem esqueceu


Ao Daniel e à Betina, através das conversas de um dia bom

Quando se compra uma panela de barro ou ferro ou pedra, é preciso curá-la. Prepará-la para ir ao fogo e cozinhar a comida. Há várias maneiras disso ser feito, mas hoje, quando me perguntaram por aqui mesmo como era que se curavam panelas de barro, precisei avisar que há um procedimento básico, sim, mas que cada panela é uma panela. Cada forno é um forno. Cada dia é um dia. 

O básico, conforme já aprendi em mais de um lugar, com variações que percebi serem bastante irrelevantes, daquelas coisas que se inventam e depois se apelidam de “tradição”, é: unta-se com óleo por dentro e por fora e põe-se no forno bem quente durante uma hora. Mais ou menos uma hora. Mais ou menos óleo. Mais ou menos fogo forte. Porque é preciso observar o comportamento das coisas para saber como lhes pôr a mão. Nada é igual a nada. Cada panela pede um amparo diferente. Como as pessoas.

Existem até, por aí, panelas que não precisam de cura – vêm prontas da loja, é lavar e usar. Quase como comprar roupa pronta, sem precisar ver medidas, provas, saborear aos poucos a saia nova que se vai vestir. Há as de alumínio – mas fazem mal à saúde, mesmo aquelas pesadas sem polir, que sujeitos que gostam de conversar vendem pelas ruas nuns carrinhos que equilibram dezenas delas. Há as de inox, também, mas são caras, não é qualquer um que se aproxima. As de ágata eram boas, mas só antigamente, agora vem tudo da China: espirrou, lascou. Todas elas (menos as de ágata, já se vê) duram para sempre, as propagandas frisam bem essa peculiaridade, o que pode ser uma eternidade ou o sopro de um minuto, uma vantagem ou um tremendo de um incômodo – depende muito da relação que se estabeleceu com elas. Como chegaram às nossas vidas. Pelas mãos de quem. Com quais intenções. Como as pessoas.

As de barro, as de ferro, as de pedra não chegam assim tão facilmente, tão óbvias. Tive um caldeirão de pedra por quem me apaixonei certa vez que demorei pra curar: não cabia no forno, de tão grande! Encontrei-o em Varginha, a caminho de Carmo da Cachoeira, escondido atrás de uma estante escura e empoeirada. Fui usando-o bem de levinho; untei-o de óleo dias a fio, fui fervendo um tantinho de água aqui, outro ali, sem chamar muito a sua atenção, pra não acabar trincando. Pesava muito, mas muito; era difícil a operação limpeza. Mas fez muitas sopas boas, generosas, profícuas. Por fim trincou, e ganhou uma planta  verdejante e ampla para recheá-lo. Ficou pra sempre ao meu lado – mas de outras formas, mais sutilizadas, sem a obviedade do cotidiano. Como as pessoas.

Com mais de metade das panelas ainda encaixotadas pela mudança, às vezes sinto falta de algumas delas, e não faço ideia de por onde andam. Gostaria de tê-las por perto, ainda que sequer as usasse porque a cozinha a rigor ainda só existe pela metade. Mas seria bom podermos olhar umas pras outras, respirar o ar de promessas gastronômicas, lembrar das boas coisas que se compartilharam de dentro delas, rir das bobagens que se disseram enquanto se espreitava o que se mexia com a colher de pau. Como as pessoas.

O engraçado é que, às panelas, precisemos curá-las antes de nos tornarmos íntimos. Cuidá-las num antes para que num depois não trinquem. Não percam a sua função suprema. Não nos deixem na mão, deixando derramar seu conteúdo precioso no tampo do fogão. Não queimem tudo o que lhes pusermos dentro. Porque, às pessoas, costumamos na maioria das vezes precisar curá-las depois de as termos descoberto, depois de nos termos aproximado e entrado nas suas vidas, das maneiras mais insuspeitas, depois de as termos usado no bom sentido, permeando-as com os nossos sentidos e os nossos significados. 

Precisamos curá-las porque às vezes elas trincam, elas se ferem, lascam, perdem pedaços entre o armário e a pia, o fogão e a bancada. E nem sempre nos damos conta, e quando percebemos já elas estão a caminho de outra função, porque nos esquecemos ou não conseguimos curá-las a tempo. Bom é quando se encontram pessoas que cuidam da cura e protegem o tempo, alicerçam a aproximação com sutis camadas de óleo, essa matéria densa que flui escorregando, untando - como gostam alguns de dizer, "temperando a vida", com coisas que só a vida dá.

12/03/2012

Questão de entendimento

Tem gente que entende as coisas errado. Ou as traduz sem saber primeiro falar a língua do outro. Ou, pior: decide interpretar o mundo através só e apenas do seu prisma, esquecendo-se de que talvez na língua dos outros as coisas se processem diferentes. Se encontrem diferentes. Tenham significados diferentes. Tanto faz se mais ou menos profundos por trás de palavras que parecem coisas tão simples: são sentimentos que ultrapassam as fronteiras do país da simplicidade. Seja isso bom ou não.

Acontece por todo lado, nos espaços mais insuspeitos. De certa forma, é um alívio, porque afinal constata-se que está arraigado o costume, não é coisa apenas da própria vida ou do próprio círculo.

Basta sair de casa pra ver o fenômeno acontecer. Acho até que saio justamente para que isso aconteça,  e meu coração se aquiete. Só pode ser isso: não é possível que em tão pouco tempo se esparramem exemplos tão palpáveis.

Primeira parada: supermercado. Cai-me um exemplo no colo: é óbvia a boa intenção de quem escreveu, nem é possível achar que foi falta de atenção, percebe-se o capricho. Morri de rir quando li. Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. E às vezes confundem-se as coisas, troca-se uma letra na leitura, outra na escrita, e o resultado não é o esperado. E, aqui, a ordem dos fatores incomoda o resultado. Ainda que a primeira reação seja o riso.
















A seguir, passo no restaurante da esquina. Tradicional, arejado, com cara de estabelecimento antigo onde se comia antes de comer fazer mal. Seus pratos, generosos, servem fácil até 6 pessoas, e ainda se leva marmita porque sempre sobra coisa! O cardápio quer ser internacional, provavelmente porque o dono deseje acolher também os de outros lados do mundo, o que é louvável, aplaudível, uma dose de simpatia extra que se constata assim que se bate um papo com o próprio. Mas lá vem mais um exemplo pra me cutucar e fazer escrever estas linhas, confirmando que a intenção se afasta às vezes (quantas vezes!) do resultado que se deseja. (E mais um ataque de riso.) Porque não se sabe, porque não se perguntou, porque se chegou a conclusões apressadas sobre a forma como os outros dizem (ou seja, sentem) as coisas. Com a melhor das intenções.






Mas pior de tudo, penso conforme desço a escadinha do restaurante, é quando se deve dizer alguma coisa e não se diz. Quando se guardam as medidas e as proporções e se escondem as próprias falhas e mazelas e desejos e dúvidas atrás de um silêncio que é o que menos respeita o outro e as suas diferenças. Porque as toma por incompetentes, incapazes (ainda que a intenção não seja essa). Subestima quem está ao redor. (idem) Desrespeita aquele princípio básico que já a Declaração Universal dos Direitos Humanos consagrou, de que todos nascem iguais (ibidem). Para provar, afinal, que todos nascem iguais, sim - mas uns tornam-se mais iguais do que outros, que assim ficam diferentes e não por isso podem (ou precisam, qual a diferença?!) ser entendidos, ou seja, considerados. Mesmo com a melhor das intenções.

Afinal, sol alto a queimar tudo ao redor, decido guardar a máquina fotográfica e voltar para casa. Antes que fique tarde. Antes que desanime da caminhada que me falta. Antes que decida pedir uma festa de um só e acabe dançando sozinha.

11/03/2012

A saudade


Lembrei-me da Cornélia um destes dias. Uma jersey de olhos quietos e meigos, como os das vacas são normalmente. Um amigo espanhol que me visitou anos atrás fez-me parar vezes sem conta diante de qualquer vaca que nos atravessasse o caminho, fascinado pelo seu olhar tranquilo, paciente, compreensivo. Parado e alheio, de certa forma. Ele não conheceu a Cornélia, mas quando ela veio morar conosco, parei um bom tempo diante dela, e pensei que ele gostaria de tê-la conhecido.

Durante um tempo, Cornélia ficou solta pelo quintal, agoniada que estava com a gravidez no início. Eu também estava no mesmo estado, e talvez por isso tenha ficado sensível ao significado do seu olhar. Acordava-me de manhã dando cutucadas na janela, para que eu levantasse e a ordenhasse. E depois a levasse, pela corda, para pastar em algum terreno onde hoje se construíram casas. Era um mundo de pasto, que eu estaqueei profusamente, para que ela pastasse sem fugir. Ao final de algum tempo, o campo estava todo desenhado de círculos.

Se fecho os olhos, vejo Cornélia diante de mim, ainda noite. O sol querendo levantar-se na minha frente, enquanto a ordenho sentada, o momento mais privilegiado de meditação que me lembro de ter tido, mês após mês, em silêncio. Precisando segurar a minha aflição (quando a havia) para não atrapalhar a descida do leite. O céu tingido das cores do dia a nascer e Cornélia mugindo baixinho e o leite espumando no balde de folha de flandres entre as minhas pernas. Cornélia salvou-me várias vezes do torpor da manhã; fez-me abrir a própria vida para acolher a dela; ao ordenhá-la, é como se ordenhasse (e ordenasse) a minha própria alma, nem sempre leve como a espuma do leite.

Tenho saudades dela. Saudades do levantar do sol no morro da frente. Saudades de ouvi-la mugindo baixinho com a certeza que só as vacas têm de que todo dia amanhece e anoitece, coisa que independe de podermos ou não assistir. Saudades de recolher o leite e transformá-lo em queijo e levar um deles à vizinha do lado. Saudade do cheiro cheio de verdade do estábulo pequenino onde dormia.

As saudades são terreno alagadiço, movediço. Já me afastei e fui afastada de tanta coisa na vida, oceanos pelo meio do caminho, mundos paralelos que se interditam um ao outro, que poderia ter aprendido. Saudade não é terra segura, nem alívio de nada. É condição que aperta o peito e estala as comportas dos olhos – quando estala. Quando não o faz, fica só a agonia, a falta do que se foi, e não volta, e tanto faz se é para sempre ou por algum tempo que o calendário meça. Porque o dia de hoje é o único que compete, e quando o dia de hoje se levanta sombrio, tingido pela saudade do sol que nasce mediado pelos olhos da Cornélia, que já se foi e se voltar não sei se a reconhecerei, resta o que não é lágrima, uma substância densa que amarga o céu da boca. 

Por isso se canta, e por isso se escreve. Para que a saudade, essa traiçoeira companhia daqueles que já viveram, possa ficar liberta no espaço, possa mostrar-nos para onde nossa alma quer voltar, como diz Rubem Alves, ainda que o lugar não exista mais, a pessoa tenha partido, a relação tenha se apagado, o mundo tenha deixado de ser aquele que era até ontem, a vida esteja dividida em duas metades desiguais. Talvez a dor seja essa: a incapacidade de ver através dessa vidraça embaçada que é a saudade sem lágrima, à deriva sem saber que lugar é esse que podemos chamar de nosso. Assim que o choro lavar os vidros, a visão ficará mais clara, e as minhas pernas sairão de onde ficaram presas, emperradas, com uma vontade urgente de se estrelaçarem, e sem o poder fazer. Nessa hora, Cornélia virá ao meu encontro para me puxar pela corda, nós duas em situação invertida, ela sabendo onde estão os prados mais verdes, eu seguindo-a em paz com a sua condução e o sol nascendo à nossa frente, anúncio de dia bom pela frente.

08/03/2012

A cidade nova V - As colunas


Como se fosse a minha própria sustentação, levantam-se quatro colunas nas laterais do que virá a ser a sala de casa – ou melhor, ergue-se a sua dura e rígida estrutura, férrea e oxidada. Olho-a de baixo e fico impressionada com a sua vaziez, a sua paciente espera pelo concreto que a sedimente na sua função e no seu tônus correto. Metros e metros enterradas abaixo do nível em que piso, são as responsáveis pela terra espalhada por todo canto. A mesma terra roxa que coloriu nossos pés como se fôssemos pra guerra e o chão de casa como se cenário antropólogo.

Paro o que faço para observar o esqueleto da coluna. Imóvel, extático, tão alheio a tudo o que parece a vida. Falta-lhe o tendão do cimento, a carne da pedra, o sangue da água que a tudo amalgame. O céu lá em cima assiste impávido, e o ferro sobe, cresce, galga degraus inexistentes e finalmente alcança a laje da casa que já existe. Um novo membro em estado de acolhimento. Dói em quem já estava aqui – há furos pela parede que já existia. Mas não há lamento, tudo é silêncio agora que a marreta, a pá, a enxada se foram. Apenas um incômodo visível, cheio de dores e marcas. Mas a coluna veio pra ficar, para se tornar mais sólida até, para permitir que a vida se amplie e abrace mais espaços, mais seres, que o sol que nasce para todos aqueça também todas as peles.

Valdete demora pra voltar – e as colunas ficam onde estão, à espera desse pedreiro que só vem aos sábados, pacientes e indomáveis como o tempo, resistentes e quase parecendo insensíveis. E eu continuo sentada, olhando a singeleza dessa construção de barras de ferro e arame, querendo ver a obra terminada, a casa limpa, as colunas incluídas para sempre no corpo da minha casa. Ainda que saiba que o sempre é uma categoria relativa, reconstruída a cada dia, cada dia um novo dia.

07/03/2012

"Literatura é palavra"


Só as palavras, dando os nomes, penetram até o fundo e perfuram a casca da nossa consciência?
In Tapete de silêncio


Menalton Braff fez-me pensar, ontem. Gaúcho morando no interior de São Paulo há anos, escreve a tempo inteiro. Vem a Araraquara, entre outras coisas, para lançar seu 18º livro, “Tapete de silêncio” - que eu li hoje de ponta a ponta. Encolhe os ombros se lhe perguntam para quem escreve: “escrevo pra mim, pra meu deleite, porque preciso”. Escreve porque é a sua maneira de problematizar a vida, representar numa história que é sempre a mesma diferentes maneiras de dizer. Porque literatura é palavra, diz. E palavra é linguagem.

Gosto dessa simplicidade nada simples. Faz com que me pergunte, incomoda-me a própria escrita, faz-me remexer na cadeira e querer escrever. Tiro da mochila um dos cadernos-de-anotar-coisas e a caneta: estão chegando ideias, posso senti-las descendo os degraus.

Perguntam-lhe se seus livros se baseiam em fatos reais. Ri-se – vejo-o não tão de perto quanto gostaria, estou sentada a meio do anfiteatro, mas percebo-lhe os olhos vivos que se divertem. Claro, como poderia ser diferente: “você queria que eu me baseasse em fatos irreais?!”. Com o tempo e o andar das perguntas, começa a impacientar-se: “você não acha que o escritor precisa estar a serviço da sociedade?”. “Não, não acho”, e olha para o mediador, encolhe os ombros e arremata: “O que posso fazer? Não acho mesmo.” O inquiridor senta-se, imagino que desalentado, poluído pelos manuais de seu (provável) curso de Ciências Sociais. Menalton sabe o que diz. Presidente da União Brasileira de Escritores, não se afasta da discussão política – e por isso sabe que nunca jamais o escritor pode ou deve estar a serviço de qualquer outra coisa que não seja a própria arte. Nem que seja a sociedade. Oxigênio oxigênio oxigênio.

Mais uma pergunta: “como o senhor fala de alta e de baixa literatura? Isso não é julgamento?” – 1º anista de Letras, desconfio. E lembro-me da resposta que ouvi de Zina Bellodi a uma aluna que fez a mesma pergunta em 199e/alguma/coisa: “falo porque sei, minha filha, quando você tiver lido o suficiente para pensar nisso, também saberá”. E pronto. Nem se respirava mais naquela sala. Menalton é mais brando, mais suave – mas diz quase que a mesma coisa. Eu acho que ele não vê a hora de terminar.

Quando chego a casa, tarde de tudo porque depois do bate papo continuam outros papos, nesta cidade quente onde a noite é uma bênção para degustar fora de casa, espreito a minha própria escrita. Logo vejo tantas coisas que preciso mudar, tantas coisas que de repente me incomodam, porque Menalton disse o que era preciso: as elipses são necessárias. O silêncio significante. Não se pode revelar tudo. Não se pode mostrar tudo. Não se pode antecipar o que no fundo nem se sabe que virá, porque a escrita é rebelde e se realiza de formas diferentes das que se queriam pretender. Sei o que problematizo, se Menalton me perguntasse - na escrita e na vida. Mas calo, porque o que problematizo fala de si sem precisar de mim. E onde de repente eu me descaio e revelo, é aí que a faca precisa cortar a carne.

Olho para as caixas de papelão forradas de esquemas, de desenhos, de rascunhos, descrições de personagens e lugares, de elementos que uso para estar dentro do que escrevo, a ficção tomando conta da minha vida, alterando-me o fôlego quando alterno entre o que sou e o que escrevo nesse terreno ficcional, abrindo-me portas dentro das portas que abro. E sei onde preciso cortar, finalmente. Só não sei a que horas irei dormir, a lua já cheia me alumiando pela janela aberta.

A cidade nova IV - O entulho


(Perguntam-me que história é essa dos morros 1 e 2 de entulho. Além de acrescentar que há um terceiro, incluo duas fotos que os ilustram a todos, para que se entenda, inclusive a evolução dos ditos cujos. Aí estão.)


É um pouco como aquele conto judaico, do bode na sala, sabe qual? Em vez de bode na sala (que por sinal ainda nem existe), tenho morros de entulho que preciso quase que galgar para entrar e sair. Quando chove, então, depois deste último que é só só feito de terra, é uma beleza. Fico imaginando quando tudo isto for um lugar habitável, daqueles que se varrem e limpam e permanecem limpos por pelo menos uma hora – e dá-me um certo prazer antecipar essa visão.

Essa história do bode na sala, conselho de rabino sábio, é uma das preferidas da minha filha mais nova. Passou meses do ano passado pedindo que lha contasse uma e outra vez, e eu cansada querendo avançar para outras histórias, e ela insistindo como só ela sabe fazer, até que eu cedia e contava-a de novo. E de novo. E de novo. Essa minha filha tem um dedo lá na frente, é bom ficar atenta ao que sente. Sobretudo quando insiste.

São coisas assim a que chamam premonições. Quem as tem, diz serem um fardo. Passa-se a vida antecipando o que já se sabe irá acontecer, e depois perde-se tempo decidindo decidir... o que já se sabe. A bem da verdade, um terrível de um contra senso, uma perda de tempo homérica. 

Uns perguntam-me pelo entulho, outros dizem-me que entregue – que na entrega não há sofrimento. Que não tenha medo. E eu nada posso a não ser entregar, e entregar-me, com menor ou maior capacidade dependendo do dia, da hora, do momento; assim que consigo, acontece: um fluxo de escrita percorre-me de cima abaixo, preciso urgentemente sentar-me aqui e destilar todas essas palavras aflitas por saírem de mim. Querem fazê-lo de qualquer jeito, e a minha tarefa é ordená-las. Num todo que despareça caótico, que simule lógica, que faça com que eu mesma leia e me acalme, respire mais sossegada e chegue à conclusão de que tenho algum domínio sobre mim. Só por uma questão de tranquilidade e foco - eu já sei que domínio é outra coisa.

Às vezes, dá-se através da escrita, a premonição. Como uma onda que viesse do futuro, e se captura no presente, indecifrável mas precisa. Como um feixe luminoso, milhões de nós puro brilho, súbito rasgar do véu em que se refugia o Tempo. Como uma rede lançada ao mar, na volta cheia de peixes prateados, que refulgem enquanto estão dentro d’água e assim que saem são espuma a dissolver-se no papel.

De tempos em tempos, relê-se o que se escreveu e descobre-se que já se sabia. E aí é a dissolução num oceano de encantamento, surpresa, incredulidade plena e completa. Ainda assim, os que têm esse dom mantêm que é terrível. Porque a vida vai carregando-os estrada afora, sem que se deem conta, apesar de todos os sinais que recebem. As premonições todas ao alcance, e eles alegres e saltitantes, desavisados como deve ser, para que nada pareça mesmo normal. Porque não pode mesmo parecer normal, senão como administrar, pergunto-me eu?

E é dessa forma que estes morros olham pra mim, e eu pra eles, interrogando-nos mutuamente qual a extensão do que eu já sabia, do que minha filha já sabia, do que todos já sabíamos antes de começarmos novas jornadas, sem saber mas sabendo exatamente aonde nos conduzem. Pisco-lhes o olho, feliz de estar a caminho, de mãos dadas com o destino, entregue e inteira como me pedem que seja e eu mesma desejo, mais do que qualquer outra coisa.


06/03/2012

A cidade nova III - A porta


Minha vizinha, dona S., vem visitar-me. Fez pão de torresmo e aparece quando estou sozinha: “só sobrou um pedacinho, e aqui na sua casa é gente demais. Da próxima vez faço uma receita inteira só pra vocês!”. Curiosa como ela só, transpira vontade de conhecer o lado de dentro desta obra que não acaba, destes vizinhos que lhe caíram na sorte. Cheia de opinião, não entende porque troquei as janelas da frente, menos ainda por que a entrada é por trás. “Mas filha, por trás?!”. E abana a cabeça sem compreender. Nitidamente, a maior desaprovação.

Chegamos à porta e ela estaca. “Linda, sua porta.” E é, de fato, lixada por mãos que a tornam, aos meus olhos, além de linda, preciosa. “Pena essas janelinhas, não?” E eu olho-a incrédula, com uma súbita vontade de que volte rápido rápido pros seus domínios, sua casa, do outro lado do muro. Mas ela já deu a volta ao morro número 2 de entulho e terra e entra pela outra porta, a que um dia será a da lavanderia quando esta última existir e pudermos abrir a outra porta, aquela mesma bonita das janelas, por enquanto interditada pelo morro número 1 de terra e entulho. E entra toda feliz, reparando em tudo. Não me incomoda o seu interesse. Mostro-lhe a casa toda, tarefa que se cumpre de forma bem rápida, e ela tem tantas opiniões fáceis que me deixa zonza. Se a deixo dois milímetros mais à vontade, é capaz de abrir e inspecionar as gavetas!

Assim como chegou, foi-se. E deixa-me olhando para a porta, intrigada com a sua desavença com as janelas. Tão bom, uma porta com janelas. Posso abri-las quando chove. Posso abri-las pra ver o pé de canela lá de fora (aliás, do quintal da dona S., caindo pra dentro do meu com toda a sua opulência). Pra ver a chuva. O vento. O granizo, como o que caiu no sábado, furioso. Olho de longe por entre as aberturas e fico em paz. Provavelmente porque me dê a sensação de que uma porta fechada com janelas permite que espere com mais sossego pela abertura dos portões quando as portas se fecham. Aquelas da vida, pra cumprir a metáfora.

É uma porta sem convicções, talvez: está fechada, mas abre-se. Está aberta, mas fecha-se. Dá-se a todos da maneira como a queiram receber. Só é preciso estar aberto a que as coisas não precisem ser apenas o que parecem, mas possam transcender-se e não se limitar – pra que ser apenas porta, se é possível ser janelas também? E que possam ser aquilo que são, tudo o que são, sem os rótulos que as fechem e prendam, aferrolhem quase. Como acontece com as portas sem janelas, por onde não se pode espreitar as promessas lá de fora, a não ser que se escancarem e assumam a sua única identidade. E, a essas, não é dado o prazer do olhar através – atravessa-se, sai-se ou entra-se. O máximo, máximo, é poder sentar-se na soleira, apreciando o fim de tarde e pensando em como será bom quando se puderem abrir umas janelas e dar a essa porta olhos de ver.

05/03/2012

A cidade nova II


Por pura falta de inspiração, vontade e capacidade de me concentrar no que quer que seja, decido hoje de manhã lavar a calçada – a entrada inteira de casa, na verdade, por onde caminharam carrinhos e carrinhos desta terra roxa que Araraquara celebra e que jamais desaparece das meias que a pisam. Claro que acho um desperdício de água, mas logo vi que a vizinhança respirou aliviada. Ao menos alguém se alivia.

A maioria dos meus novos vizinhos mora nesta rua há mais de 50 anos, o que já dá uma ideia da faixa etária dos mesmos. São quietos e observadores, e aos poucos vou percebendo por onde observam o movimento desta casa que parece não parar sossegada. Cumprimentam-me educados na rua, quando lhes desejo bom dia, e olham com uma forma curiosa de interesse para o monte de entulho que não some, as pilhas de tijolos que não diminuem, a areia, a terra, a pedra... balançam a cabeça (antes era imperceptível, hoje percebe-se claramente) mas não dizem nada. A mim, ao menos.

Assim que saí para a calçada armada de mangueira, perto das 8h da manhã, uma vizinha logo abriu o portão do lado esquerdo, outra atravessou a rua toda alegre e ainda uma outra espreitou por cima do muro e logo veio também juntar-se à animada conversa. Parecia que estavam à espera, cada qual atrás da sua vida. A animação tinha motivo: todas estavam preocupadas de eu não ainda não ter lavado a calçada. Nem um dia sequer! Dona S. era a mais exultante: “Mas que bom, Ana, assim eu posso lavar só a minha, não preciso mais lavar a sua!”. E eu com os meus botões pensando na minha pouca intenção de repetir o feito. Ela sorri piscando os olhos, querendo garantir que eu sei exatamente do que ela está falando. Dona M., vizinha da frente, não diz nada – e me dá a impressão de que no fundo critica o jeito todo franco de dona S., mas jamais diria nada, porque afinal a calçada ficou lavadinha. Passados uns minutos arrisca bem baixinho um “é, os paralelepípedos também podiam ganhar uma aguinha, né mesmo?” mas eu juro que escolho e prefiro não a ouvir, e seja lá por qual motivo ela não repete. Lavar a rua já é um pouco demais. Ainda assim, volto meia hora depois de vassoura e pá e recolho o que caiu da caçamba que levaram embora atulhada de entulho até a alma. Acordei com vontade de agradar a vizinhança. E mesmo rindo da situação, volto com a pá cheia pra dentro de casa.

No fundo no fundo essa meia hora de prosa devolveu-me uma espécie de pertencimento perdido – pertencimento a mim mesma, que dificilmente me percebo sozinha, preciso do outro pra me cutucar e dizer que eu sou de carne e osso, não só sangue escorrendo por dentro das veias. Pertencimento ainda que seja no reconhecer da minha capacidade enquanto lavadora de calçadas. Volto para dentro com mais forças para sentar-me ao computador e dar conta da tarefa diária, laudas que não avançam porque eu não permito, petrificada diante das folhas que preciso ler para reescrever e reescrever e reescrever. Sem parecer que avanço. Igualzinho à vida. Agora, alma e calçada lavadas, ponho-me a caminho novamente, menos ocupada com as curvas, as ribanceiras, os túneis, as tempestades todas que estão a caminho também.

03/03/2012

Entre sentir e pensar


Mestre Caeiro ensina que pensar é estar doente dos olhos. Concordo com ele em gênero, número e caso na maioria das horas. Mas hoje, como em outros dias, acordo pensando, pensando, pensando, e não há o que fazer. Tento livrar-me dessa angústia, dividi-la com os outros, mas nem telefonar para amigas queridas e distantes me ajuda: no final, estou pensando em dobro, com mais sementes brotando e incomodando o passar das horas.

Pensar tem uma estreita relação com pagar – etimológica ao menos. Embora a raiz mais aceite de pagar seja a palavra pax (ou seja, pagando nossas dívidas ficamos em paz, nada mais verdadeiro), existe um outro “pagar”, aquele que se refere a punir por alguma coisa, que tem com o pensar uma proximidade – a mesma raiz pensare. Portanto, se pensar é (também) punir(-se), só pode mesmo angustiar. E mais: pensare ainda adverte que pensar pesa. Pesa. E muito.

Para tornar tudo isso mais leve, escreve-se. Eu, ao menos, escrevo. Assim que me sento aqui e me desperto para o mundo da palavra, algo em mim se distende. Apreendo-me com outra consistência, permito-me até mesmo o que, fora do mundo da palavra, não é espaço. Volto às palavras que nas madrugadas, sem sequer acender a luz ou abrir os olhos, escrevo aqui e ali, no primeiro papel que encontro. Um manancial de olhos para dentro do que sinto, no momento em que sinto – antes de me pôr a pensar e atrapalhar a vida.

E por isso os dias em que acordo muda e pensante me pesam tanto, tanto e me fazem pensar tanto, tanto. Dias em que caminho rasteira. Quando, por mais que respire, não consigo encher-me de ar. Como se um tormento me acossasse por todos os lados, quebrando-me uma a uma todas as costelas. Como se o papel me devolvesse o mesmo olhar vazio com que olho para ele.

Há ainda um outro ancestral da palavra pensar: pendere. Que também se usava para pagar – assim como para pendurar, pender, jogar o peso para fora. O que, claro, rapidamente faz pensar que pensar nos livra do peso que o próprio pensar provoca. O que é uma charada que dificilmente conseguirei resolver neste dia, quando pensar me coloca diante do que sinto sem que o sentimento possa acolher-me, e me põe à prova, me coloca em cheque, me pergunta uma e outra vez de que lado estou e de que lado quero estar. Como se eu acreditasse que a vida tem lados em vez de espaços.

(E, quando já tinha terminado e quase me dado por satisfeita, Simone de Beauvoir vem em meu auxílio: “Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância.” Amem.)