17/05/2011

A propósito da exposição de Paula Rego


Diante dos quadros da portuguesa Paula Rego, diante de seus pesadelos particulares, suas dores feitas cor, seus desesperos e despreparos transformados em imensas telas preenchidas por pastel, não desapareço na sensação imediata de inutilidade da vida prática. Não me culpo nem me angustio pela percepção rápida de que, além da arte, além da tentativa desesperada de dar sentido aos fantasmas visíveis por entre as cortinas fechadas, não há mais nada. A onda a agigantar-se na vida de milhões, arrastando as vidas ao lado das casas, a morte à porta da escola, dentro dela, mais incompreensível e repentina que todas as demais, as pequenas mágoas cotidianas, as minúsculas causas, as mesquinhas preocupações com os prédios que crescem ao redor do próprio umbigo – o que são, todas essas coisas, a não ser o nada vazio que fica quando nos escaparmos deste estado? O que são, além de motivos e pretextos para que caiamos dos monumentos em que nos instalamos?

Ouve-se o grito silencioso preso em cada quadro. A imobilidade cheia de tensão em cada figura agarrada a cada tela. As pernas, os olhares a direito, o meu próprio grito que quer escapar mas não pode. O estado de silêncio imóvel garante: ao virar da esquina, a vida também vira. E todos estamos preparados e de punhal na mão para nos defendermos do passado caso ele queira alimentar-se da nossa saudade. Se nos lembrarmos, o punhal presentifica-se.

Por sorte, muita sorte, imensa sorte, os dias transformam-se em cristais de infinita leveza, com os que se suporta o inesperado, o atrasado, o peso meu, nosso, dos outros. Recriam-se leves, precisos, da exata medida do calor que se faz caminho entre dois. Os mais antigos, os que parecem novos, os que sempre se reinventam e se permitem, os de outros tempos retomados, os dias em que fascinados nos olhamos olhos nos olhos e percebemos o tempo dedicado, a sincronicidade perfeita dos tempos e dos amores todos. Não é preciso encarar as saídas alheias que se inventam para o que dói da vida quanto tudo é diferente, porque de repente ao redor tudo ficou agrupado e foi colhido. É possível desvestir-se das peles previsíveis e permitir novos encontros. Como se o dia fosse uma longa passarela automatizada num aeroporto tranquilo, sem pressa, ninguém em risco de perder seu voo ou extraviar sua mala. Nas paredes, em todas elas e de todos os lados, Paula Rego  ri-se e subverte a ordem que tentei dar ao meu mundo.

Até dia 5 de junho, na Pinacoteca do Estado, Praça da Luz, 2 - São Paulo.

02/05/2011

Cartas ao tempo que foi

Escrevo-te com décadas de atraso, quando já não podes ler as linhas que te dedico. Já não estás entre nós, dirão alguns, mas eu sinto-te tão perto quanto na tarde que acabou de se tornar presente, assim que encontrei agora mesmo a carta que me escreveste e da qual eu sequer me lembrava.

Esqueci-me de tanto ao longo dos anos. Por isso as cartas se tornaram elementos imprescindíveis da reconstrução do passado, e por tê-las guardado e porque foram escritas por ti, sabem dizer as coisas que, com décadas também de atraso, agora posso entender.

A passagem do tempo, que me dizias ser uma fera completamente imbatível, interpõe-se entre nós de maneira cáustica e definitiva, a ausência sempre grossa e dura entre o onde estás que ainda não me pertence e o onde estou que sei teres abandonado sem espaço e tempo para dizer adeus. Ou até logo, para que soe menos inexorável.

Se existias, perguntavas-me tu. E eu tinha tão pouca idade, como saberia dizer-te a ti, que já chegavas à curva do mesmo caminho de Caeiro, se existias? Se eu mesma tão pouca certeza tinha de qualquer coisa existir de fato? Como eu própria. Como aquilo que se materializava no espaço desconstruído entre nossos corpos.

Todos os adjetivos que me davas naqueles anos pesam-me na balança, desequilibrados pelo outro prato que se construiu nestes 30 anos de distância entre aqueles dias e os de hoje, tantas dimensões a se interporem, um coração que parou numa mesa de operação e um outro que não sabia ficar-se à espera.

Depois é sempre tarde. E eu não acreditei. E continuo sem saber como tornar verdade o que é verdade, e saber-me chegar e sair, penetrar e diluir a partir dessa verdade tão nua, tão crua e tão real. Saber que depois é sempre tarde.

Penso nas coisas intemporais tais quais as vias e me dizias: o mar, o calor sob o sol ou o rumor das fontes, e vejo-te inclinado e pesado sob a tua bengala, tropeçando nos móveis da tua biblioteca feita de paredes de livros empilhados, deitados uns sobre os outros, construindo paredes de metáforas pedaços de Marrocos conchas da Cataluña vento das praias de Cascais e sombras e perdas e saudades. Vejo-te à mesa em que te sentavas, a pequena lâmpada iluminando mortiça a tua cabeça toda branca, os cabelos que já não eram tantos em desalinho de poeta que pensa, os óculos que te caíam por baixo dos olhos inquietos, a mão trauteando as palavras que te vinham à mente ao ler o teu Pessoa, que fizeste com que fosse nosso e logo em pouco tempo meu. Vejo-te com tanta clareza, mas não me lembro do que me dizias, quando ao chegar me acenavas e abrias os teus braços e dizias algo. Que era sempre feito das mesmas palavras e eu não lembro quais.

Onde estava eu, que não te prestei a atenção que merecias? Onde estava, ao fugir assustada com a intensidade do que me propunhas, e passei depois anos e anos e anos à procura de uma intensidade assim no mundo? Como se fosses tu a ergueres o teu dedo e a decretares o meu destino, encontro tantas fugas no meu próprio caminho.

Nossos encontros feitos de letras, e de versos, e de silêncios densos e valiosos, com o sol poente de Lisboa tingindo as paredes de um quarto de hotel que se tornou o paraíso só por causa das palavras que usavas e mais nada. Nossos encontros sempre de letras, na biblioteca da editora em que te trancavas e de onde só saías quando sabias que eu chegava, sem me dizeres nada, e eu percebendo tudo isso nos olhos de quem, como tu, estava à espera do horário da saída, e o tempo não passava.

Agora que posso escrever-te, não podes ler-me, nem podes perceber que o tempo, fera enegrecida, transformou-me naquilo de que estavas à espera, tudo nas palmas das tuas mãos e sem teres onde guardar.

Quando leio que dizes que chegamos à borda da absoluta sinceridade, eu fecho os olhos de dor de não lembrar-me dessa espera tão incerta, aqui prensada nesse papel que já amarelou de cansaço e que se torna tão real, tão palpável, por trás destas letras que me deixaste de herança, e que decido tornar a guardar na mesma pasta. Certamente voltarei a elas, e sentirei a tua presença morna tal qual a sinto agora. E nesse dia não vou mais lamentar, mas perceber que o tempo que se esgota é aquele que nos preenche, e que a distância, e os anos, e tudo o que nos separa daquilo que pudemos ter sido e não fomos, é o que nos constrói na aceitação cotidiana do que afinal nos tornamos, e que eu devo às palavras que depositaste em mim, ainda que não me lembre nem saiba me repetir quais foram.


A J.A.L. (1925-1987)