25/04/2011

O 25 de abril de Eric Blaich

Diz-me a minha tia Luisa que é sinal de velhice, isto de andar a contar histórias de quando se era pequeno, mas invariavelmente, assim que o calendário se aproxima do dia 25 de abril, acontece-me. Pior do que tudo, ganho neste dia uma capacidade de perceber ligações entre tudo e todos, e aquelas que não existiam, só porque hoje é 25 de abril, passam a existir. Entre tudo o que vivi, o que li, o que ouvi e o que senti, não tenho como separar fatos de desejos, estes de vontades, e ainda estas daquilo que podia ser mas talvez não tenha sido, sem que isso chegue realmente a importar alguma coisa. Portanto, assim que me deparo com este dia no rol dos de todos os anos, fico assim – nem um dia se passou, e todos os que vivem ao meu redor são catapultados para dentro de um enorme vaso de cravos.

Este ano em particular, decidi resgatar as fotografias das Caldas da Rainha, cidade que me acolheu no dia em que nasci. Nem preciso delas, mas é bom conferir. Fecho os olhos e vejo o prédio da biblioteca no Parque. O lago esverdeado e os cisnes nadando em suas águas tensamente paradas. Os meus dedos escorregando para dentro da água tépida e escura do começo do verão. Os imensos plátanos a abafar nas suas folhas o calor das horas quentes. O meu pai a jogar tênis. As minhas tias a prepararem uma festa na garagem da casa da minha avó, grandes flores de papel colorido e umas almofadas que ficaram no pensamento sem eu saber-lhe o porquê. Eu a tentar dar a volta por cima ao balanço enorme do pequeno parque que parecia tão grande, sem saber que existiria anos depois um Cirque Du Soleil que teria feito suspirar cada uma das minhas terminações nervosas. Algo disto as fotografias captaram, mas para o resto só tenho a minha memória de confiabilidade peculiar.

As Caldas são revolucionárias: a 16 de março do mesmo ano que marcaria a Revolução dos Cravos levantava-se o quartel da minha cidade. A Intentona das Caldas levou o Regimento de Infantaria que lá estava sediado em direção a Lisboa, disposto que estava a derrubar o Estado Novo já tão velho. Sem companhias, foi sustado às portas da capital portuguesa. Mas assim ficou: o primeiro movimento em direção à liberdade. Canhestro, talvez. Apressado e com uma noção péssima de timing – pode ser. Mas é dessa matéria que os sonhos são alimentados. Dos doidos que correm à frente para mostrarem aos outros que o caminho é possível.

Fui acordada na madrugada do dia 25 de abril de 1974, pouco depois das 4 da manhã, por uma mãe de olhos brilhantes e gravidez anunciada. “Somos livres”, dizia-me ela sabendo que eu a entendia. Não só o somos como o podemos dizer, e viver, e dar, e viver mais uma vez e assim seria até o mundo acabar. Podemos ir pelas estradas, já manhã clara, em direção ao mar e na companhia da Alice, que insistia em erguer um punho fora da janela e cantar e gritar às árvores que passavam que sim! somos livres! Indivizível, indiluível, intraduzível, inesquecível.

Com os nove anos de idade que tinha, descobri-me dois dias depois sentada no muro que rodeava a escola primária em que estudava, ocupada a ensinar aos meus colegas, cujas mães não faziam o que a minha fazia, a “Grândola Vila Morena” e o “No pasarán”, repreendida em pouco tempo pela minha professora, apavorada com o que o comunismo faria a todas aquelas apetecíveis criancinhas.

Ao longo dos meses que se seguiram, viagens ao Alentejo, a descoberta de um país na festa de encontrar-se com pernas, braços e sobretudo vozes, procurando aprender a andar e a saber como desfazer-se de anos de tristeza e devastação. Exatamente por isso, encantador, esse país. Um ano depois, na Espanha ainda franquista, meu pai seria (perigosamente) intimado a explicar o slogan que criara para oferecer o destino turístico ao país vizinho: “Portugal, tan nuevo y tan cerca”.

Devo a minha mãe, e a meu pai de outras formas, uma maneira de olhar as pessoas que se movimenta no espaço e no tempo, e lhes acolhe os erros, as fraquezas, os deslizes, as traições. Aceito-as com dificuldade, sim – mas os meus olhos olham a maneira como estão, certos de que aquilo que são muda - esconde-se, foge, amesquinha-se, endurece-se, cria limos e crostas e, de repente, descobre uma função auto-limpante e voilá: shinning as new! Inevitavelmente, olhando de longe, a vida é uma escada que sobe –tinha toda a razão a minha avó quando me dizia isso, mesmo nos momentos mais duros que lhe apresentei na ingenuidade tola da juventude. A vida é uma escada que sobe – e por isso, deduzi sozinha anos depois, mais vale aproveitar cada degrau, porque nada permite que desçamos.

Os que se vão, especialmente os que viveram muito, dizem-me a mesma coisa. Que a vida vale a pena, mas se, e apenas se, a nossa alma não ficar pequena. (Pessoa tinha razão, toda ela, só é preciso lê-lo nas duas direções e considerar também os momentos pequenos das almas, aqueles em que, por dedução, muito pouco vale a pena.)

Tudo vale a pena, se a nossa alma não se amesquinhar diante das possibilidades do mundo. Se a nossa alma permanecer inteira e íntegra e grande e sempre e a todo momento preenchida por ver o outro parte de si própria. Se a nossa alma puder ver em cada ser o pulsar da vida toda - até nas coisas mais duras, nas mais concretas e nas mais lentamente transformadas. Como as pedras que um senhor, nesta Demétria tão afastada daqueles tempos e daquele país, agrupou e espalhou ao seu redor antes de se despedir do mundo. Eric Blaich viaja nesta madrugada pelos espaços siderais, acompanhado por toda a silenciosa humanidade que conferiu ao âmago dos seres com os quais conviveu. Os seres-pedras e os seres-tintas voam a seu lado, sorriem à sua passagem, alcançam-lhe a visão do que semeou, plantou e colheu na sua longa vida. Assim como ecoa no espaço que me separa das Caldas uma revolução que me garante a certeza da liberdade do mundo, ecoam no espaço, brilhantes como límpidos cristais, as dádivas que Blaich espalhou pelos amplos caminhos da sua vida. Feliz viagem, Blaich.

Ana Vieira

(Em cima: Biblioteca do Parque D. Carlos I, nas Caldas da Rainha
Abaixo: "Rio Enz", de Eric Otto Blaich)

10/04/2011

Pannychia


Dentre os vários livros deixados por Calvino, Psychopannychia chamou a minha atenção há uns meses atrás. Essa porção de letras pareceu-me saborosa: os dois y destacando-se no todo, os dois n a meio, o crepitar dos ch alimentando o resto... Antes de pensar no que fosse, desenhei-lhe a forma manuscrita, pus-me a pensar em que pensaria ele ao decidir que esse desenho no papel seria o título de seu segundo livro. Mas logo a mente (que engana) mais a razão (que tudo quer explicar) me atrapalharam nesse devaneio. O “pânico da alma”, que talvez se insinue a uma primeira e desinformada vista, logo se desfaz ao localizar Calvino no tempo – avançam sobre nós as paisagens que seus sequazes trilharam divulgando a nova fé, enche-se de neblina o horizonte da paixão huguenote, perseguida, execrada e assassinada em noites das quais São Bartolomeu é apenas um exemplo. Almas em pânico, aquelas?!

Descubro entretanto um dicionário: inglês-latim online. Oferece tudo (ou quase), o bendito: a primeira derivação, a segunda, a grega, se a houver, e ainda a raiz primeva rastreada em direção ao indo-europeu. Não bastasse, localiza vocábulos derivados dessa raiz (e das outras, se eu quiser) em pelo menos 20 línguas com derivação semelhante; ao escolher uma delas, ganho de bandeja uma lista de tudo o que derivou da derivação inicial. É um assombro. Eu penso, clico e o mundo revela-se palavra.

Vejo que não, que psychopannychia nada tem de pânico, mas, ora vejam, de vigília – mais especificamente, “vigília da alma”. Gostei da ideia: nada de ter a alma em pânico, antes vigilante. Calvino ficou assim, cutucando-me com seu título, atiçando-me a curiosidade para saber o que achava ele mesmo dessa história. Muitos saberão bastante sobre protestantismo, mas eu católica apostólica romana a minha lusitana infância inteira (com direito a uma salve rainha incomodando meu ser infantil que não achava nada interessante aquela história dos filhos degredados de Eva suplicando neste vale de lágrimas...), não sei de nada mesmo. Apesar das aulas a preparar, dos livros que comprei a ler, do relatório a escrever, da última mania em forma de série seduzindo-me ali da caixa da 3ª temporada... vou ocupar-me com este assunto de última hora, que provavelmente há de ser importante daqui a algumas horas, ou dias, ou semanas, quando a minha alma se for deitar. Coisa que a mesma jamais fará, se for considerar o que diz Calvino, já que a alma não se deita, nem dorme, nem se apaga, nem se extingue. Nem hoje, nem no dia da morte de seu invólucro.

Calvino opôs-se aos aniquilacionistas: aqueles que creem, por bíblicos a + b, que as almas dos perdidos estariam não só perdidas, mas seriam extintas para todo o sempre. Não acreditam que um deus cristão misericordioso pudesse deixar almas ardendo no calor dos infernos, por isso antes a chamada “segunda morte” após a física, o aniquilamento sem volta. O inferno seria como a condição de pré-nascido, portanto inexistente, porque ainda não existiu, e por isso mesmo não existe (!). Lutero, antes dele (e, depois dele, dele discordando), garantiu o “estado inconsciente dos mortos”, todos eles aguardando no não-saber, no não-viver o dia do Julgamento Final – não em vigília, mas em sono total. Calvino não acreditava nisso – para ele, estaremos todos vigilantes esperando o fim dos tempos.

Canso-me rapidamente das leituras teológicas, tantas idas e vindas e voltas e tornas. Não tenho nada contra elas, é que o que eu quero é entender a palavra e não me sentir demasiado ignorante. Os primeiros parágrafos do livro de Calvino interessam-me – seria ele um Padre Vieira lá no seu tempo e espaço? Descubro que acredita-se que tenha proferido cerca de 4000 sermões (!), ainda que deles só se conservem 1500; aos 30 anos já tinha a cabeça grisalha, o corpo magro; comia pouco, dormia menos, mas nada disso lhe retirava o enorme esforço intelectual a que se dedicava (com o consequente gasto, imagino, de energia). Saúde? Frágil: artrite, cálculos renais, gota, hemorróidas, e profundas, frequentes e extensas enxaquecas, a que seu biógrafo atribui sua fama de irascível. Associava a prodigiosa memória que tinha a uma poderosa capacidade de observação. Morreu aos 55 anos, rodeado de seus discípulos. Interessante, este Jean Calvin.

O querido dicionário me encandeia (palavra bonita, em linha direta das candeias que alumiavam as noites esfomeadas do Alentejo): “pan-nychis”, do grego, significa “passar a noite sem dormir”. Logo imagino (achando que li isso em algum lugar, o que pode até ser verdade, mas mais provavelmente não o é) que talvez Pã sofresse de insônia, e que talvez por isso tivesse decidido inspirar medo e pânico aos outros, só para se divertir à custa alheia no meio dessas noites sem dormir. O certo é que nós todos, insônios de plantão, podemos, para não nos repetirmos, conversar logo mais sobre a nossa pannychia, e aposentar de vez a sempiterna insônia.

Enquanto isso, nossas almas vigilantes vagarão pelos tempos dos tempos, alertas quanto ao fim, às vezes em pânico ao descobrir o quão longe está o que até ontem parecia ao nosso lado. Talvez o pânico, se equilibrado e enquadrado, nos mantenha acesos, alertas, coesos conosco mesmo. Nada que nos paralise, mas que nos espete a agulha fina do incômodo e nos faça avançar e ficar mais perto do fim. A parte inevitável da vida.



Ainda Pannychia... coisas interessantes para ver, ou ideias que dão pano pra mangas...

Um ritual pannychidos – um réquiem para as almas mortas, Igreja Ortodoxa Grega

Mais coros bizantinos, para quem tiver gostado

E por fim o dicionário!

03/04/2011

É preciso ler os poetas debaixo d'água

Não é minha a frase do título, mas calhou-me ouvi-la ontem de manhã, e ficou assim, a bater-me no cérebro até agora, noite fechada e silêncio completo em tudo. Acordo com essas sete palavras à flor da pele, e de tão enrugada sei que estava de fato debaixo d’água, tentando decifrar tudo o que flutua embaçado à minha volta. Acordo num pulo, saio da água e o que escorre do meu corpo são palavras, as dos poetas que estavam no mar que me submergia. As palavras do dia de ontem sobressaem-se e escorrem com mais rapidez – o magma incandescente invadiu-me a noite, e são os relâmpagos que me acordam, o corpo de repente sem mãos sossegado pela batida das palavras. Procuro o lugar em que este pânico obtuso se implantou dentro de mim, mas o que resulta é uma desconstrução aflita do que ainda não foi. A culpa de tudo isto tem nome e sobrenome: Luis Serguilha.

Luis Serguilha não é um poeta comum, nem está perto de o ser. Com a bandeira da própria estética levantada, mantém-se fincado à proa, seja lá que ondas o atinjam pelos flancos. Fala de cavalos sonâmbulos como se os alimentasse diariamente, e os cavalgasse sem rédeas nem sela, sentado só na fissura de si mesmo. Não é fácil lê-lo, nem deveria sê-lo – não lhe é fácil o escrever-se.

Na rápida visita que fez a Botucatu, Luis desassossegou e acelerou – propôs leituras várias a partir dos textos nas mãos, invadiu sem decência e sem decoro os frutos alheios, deu-lhes cores, entranhas, posições no espaço diferentes das que se mostraram. Num jogo, sugeriu o texto por detrás do texto, dentro do texto, a comer-se pelo texto afora. Mastigou as próprias sílabas até chocar os ouvidos cansados e convidá-los com urgência ao desligar de todos os geradores de energia pensante.

É urgente agradecer a quem plantou o Luis esta manhã em nossa cidade, a brandir um livro cor de sangue nas mãos como se da sua própria âncora de salvação se tratasse. Uma âncora leve a fazer-se pesada, só para que não nos enganemos e pensemos que a cicatriz se fechará sem dor, antes que retiremos de dentro da ferida o punhal com que a abrimos a cada dia. É urgente agradecer-lhes, porque o desassossego é fértil, mas precisa ser provocado; é útil, mas precisa ser lembrado; está aí fora sempre, mas é preciso quem o convide a entrar. Ontem, houve quem o convidasse – assim aconteça mais vezes.

A propósito da oficina conduzida pelo poeta português Luis Serguilha, na manhã do dia 2 de abril de 2011, na Secretaria Municipal de Cultura, em promoção da ABEM. Agradecimentos especiais à Vera Ravagnani, à Carmem Lúcia da Silva e ao Osni Ribeiro.