21/11/2010

Do intraduzível

Traduzir tem variadas utilidades. Mesmo que às vezes seja possível ligar uma espécie de piloto automático, na maioria é indispensável parar, absorver, ler de novo, apoiar-se quem sabe no dicionário de sinônimos abandonado na prateleira lá de cima. Nem sempre é fácil encontrar a palavra certa, a tradução exata. Quando o texto é técnico, vá lá, mas quando tende ao literário, ao fazer-se arte através da palavra, fica difícil passar adiante.

Há textos em que se aprendem coisas novas. As descobertas por vezes ocupam tanto espaço que é fácil esquecer o que era mesmo que se fazia - tentar ganhar a vida traduzindo. Usa-se o tempo para divagações sem fim, técnica da qual este texto é um bom exemplo, indiferente aos arquivos que se acumulam na caixa de “a traduzir”.

Alguns (muitos) anos atrás, fiz algumas traduções para a revista Casa & Jardim. Alguns artigos sobre paisagismo, algo sobre reciclagem já naquela época, linguagem coloquial fluente, fácil de entender e de traduzir. Numa das matérias, sobre flores (estava a primavera por perto), apareceu-me um “pensée sauvage” pela frente, que eu demorei um tempo a desenvolver dentro de mim. Digo desenvolver, porque algumas palavras desenvolvem-se, desenovelam-se, criam algo parecido com uma raiz dentro de nós antes de se lançarem na língua para a qual se pretendem traduzidas. Essa foi uma delas – gostei da sonoridade, da ideia de “pensamento selvagem” que com certeza não seria a tradução correta para os futuros leitores jardineiros... Fui à procura de quem entendia. Cheguei ao nosso “amor perfeito”, que é a tal flor, nomeada na nossa língua. Essa descoberta tomou-me é claro ainda mais tempo - fiquei encantada com a possibilidade de que o que para nós é um amor perfeito para um francês seja um pensamento selvagem. Pensem um segundo – é de ficar muito tempo pensando!

Há ainda aqueles textos em que as palavras são completamente e de fato intraduzíveis. Quando isso acontece, há duas possibilidades: ou o autor não soube mesmo se expressar direito (e você que dê seus pulos para entender o que ele mesmo parece não ter entendido que queria dizer), ou soube expressar-se tão bem que chega a se materializar ao seu lado e você imobilizado pelo terrível que soa qualquer escolha – querendo ou não, sempre se perde.

No fundo, no fundo, não há grandes diferenças entre traduzir e sentir. Há os sentimentos que entram no automático: não se pensa muito neles, fazem parte, aí estão. Há os que nos dão um susto – e ainda ocupam tempo, espaço, energia, dão-nos voltas e voltas e demoram a sair de nós com autonomia. São pensamentos selvagens vestidos com as roupas dos amores perfeitos.

E há os intraduzíveis, divididos também naquelas duas possibilidades: aqueles que não se explicaram e aqueles que, por meios incomuns, se explicaram tão bem que nos imobilizam. Esses, palpitam ao nosso lado, às vezes com força, outras apenas insistentemente. Somente roçam a nossa pele e deslizam os olhos pelos contornos da nossa sombra. Ainda não encontrei outra solução a não ser respirar e entrar num outro estado. Metros acima deste nosso, caracterizado pela força da gravidade, vibram com a leveza de um arco, entram e saem de nós sem portas e sem travessas, fluem por entre as nossas células como vento que nos atravessasse sem criar cadáveres. A esses intraduzíveis sentimentos, como com as palavras, imagino um dia encontrar-lhes a tradução perfeita, o espaço exato, e por isso esforço-me em guardá-los onde nada em mim os atinja, para que, quando possam, me atravessem com a simplicidade de um pássaro liberto.

02/11/2010

Kwashiorkor

Ontem, em plena Amando, minha querida amiga que também é nutricionista olhou-me com a expressão mais natural do mundo (o que me leva a desconfiar que muitos farão o mesmo), mas mesmo assim passei o dia com a palavra kwashiorkor ressoando dentro da minha cabeça.  Gosto de palavras com esse som silenciante dentro da sua estrutura, parece que me remetem para a audição interna dos sentimentos que não são nomináveis. O desastre que kwashiorkor significa não é nominável. Como cheguei há anos à conclusão de que os males que afetam o corpo correspondem em muito aos que nos atingem a alma, kwashiorkor se converteu num assunto para muitas horas pensantes.

“Aquele que é deixado de lado”, em uma das línguas nacionais de Gana, dá nome a uma das doenças que mais matam na África rural e no sudeste da Ásia. Espécie de marasmo que incha em vez de secar de tão desnutrido, provoca barriga d’água, cabelos brancos em crianças de pouco mais de ano e outros desesperos. “Aquele que é deixado de lado” ataca mais primeiros filhos de mães em situação de miséria extrema e absoluta, que precisam amamentar com o músculo e o sangue não possuem o segundo filho que nasceu; passam a alimentar o primeiro, prematuramente, com o que têm: sopas de mandioca ou inhame ou arroz ou qualquer outra coisa carente da proteína e do ferro que fazem crescer e desenvolver. Enquanto os pequenos com marasmo (a outra forma de desnutrição por excelência) secam e desidratam, os que são deixados de lado incham, de tanto líquido retido.

Ao longo do dia, desloquei-me lentamente das dores atrozes do físico - também as almas podem sofrer de kwashiorkor, mesmo que não cheguem, com a obviedade que só o olho vê, às extremidades aflitivas da doença física. Algumas almas embrenham-se meses e meses pelos campos do marasmo, emagrecem na sua própria secura, até não conseguirmos lembrar se eram secas antes de secarem. Outras, num repente de algum processo não químico, são deixadas de lado, e começam a inchar, a reter todos os líquidos anímicos que se aproximam. Talvez seja a esperança (vã) de que revigorem e façam crescer, em fortalecimento e saúde. Formam-se barrigas d’água a partir do menor dos olhares, do esboço de um gesto, de qualquer intenção não concretizada nem prometida; de longe, tudo parece alimento, dilui-se qualquer raiz ressequida em água para que renda mais, mas a dureza das coisas, do caldo volátil feito de carboidrato sem ferro, evidencia-se na dificuldade de levantar a alma da cadeira em que desabou. Confunde-se uma alma cheia com uma alma inchada, e só de muito perto se percebe a diferença, às vezes.

Em tempos assim, a cicatrização é lenta e a imunidade baixa. As dores demoram a fechar-se dentro das feridas e qualquer desequilíbrio provoca febres e vermelhidões. Basta um desafio a mais, uma situação inesperada, para que o tônus se altere e o processo se acelere.

Por incrível que pareça, há vantagens do kwashiorkor sobre o marasmo: o segundo leva mais tempo a vencer-se, se é que se vence, porque almas (assim como corpos) que se entregam à lassidão e à indiferença sobrevivem com dificuldade e perdem-se dos outros; o kwashiorkor só precisa mesmo é de atenção, e como ataca os mais velhos em primeiro lugar, já encontra mais estrutura quando aparece. Já que há que sofrer, que se sofra com um horizonte de solução mais próximo, ainda que ilusório.