22/09/2010

Ócio ósseo


Talvez todas as minhas últimas questões ósseas sejam apenas um alerta da minha necessidade de ócio. Tendo a me divertir trabalhando, o que, vistas bem as coisas, não deve estar totalmente certo. Senão, não estariam estes ossos quebrados me alentando a sentar-me diante da televisão para, ociosamente, assistir algum dos excelentes filmes com que meu companheiro cinéfilo me inunda, embora ressentido de que raramente consiga eu assistir a algum deles muito além das primeiras vinhetas. Ou me levanto, ou adormeço.

O fato é que, de tanto procurarem encontrar-me razões de todos os tipos (sofismáticas inclusive) para os males que me afligem (como diria Josephine March), decidi-me eu mesma a procurá-las, por entre o conhecimento que tenho de mim mesma, que ainda errado é o que de mais longa data se conhece sobre a minha pessoa.

Pois não consigo encontrar motivo melhor que esse do ócio. Reviso com atenção cada um dos que me foram dados: ”deve ser que você precisa parar” é o de maior ibope, rivalizando com o “você faz coisas de mais, é isso” – mas fica-me um “parar o que?” pendurado na soleira dos dentes, e não consigo mesmo decidir sobre o que se acha que deva parar em mim afinal. Será essa propulsão louca de querer ser e estar o que sou? Essa dificuldade escorpiana que a cada ano mais se fortalece de não conseguir abstrair as coisas que chegaram ao fim, mas ainda é preciso carregar na mala? Será isso que querem que pare? Mas, como quem me avalia assim só levanta as sobrancelhas como se fosse pra lá de claro, como se só eu não percebesse o que tanto em mim deve parar, continuo como antes.

E assim sento-me aqui para dedicar-me ao melhor dos ócios: ler a esmo o que quer que seja, ouvir todas as conversas que queiram depositar-se em meus ouvidos, perceber alguém encantado com o poder do “hálito da música ou do sonho” de um Pessoa desassossegado, e incorporá-lo ao próprio discurso. Posso ter mil tarefas a cumprir, cartórios, contadores e receitas federais a visitar para resolver pendências antigas que se acumulam diante da minha porta, mas de repente meus ossos avisam, como se fossem encarnações de um stephen king dentro de mim, que “os monstros e os fantasmas vivem dentro de nós e de vez em quando eles ganham”.

Vive dentro de meus ossos uma voz que me alerta, e que apenas eu ouço. O que os outros pensem, o que os outros digam, é preciso que se saiba que são reflexos do movimento do coração. Doem, mas como me disseram ontem, o que mais dói são os ossos. Por isso, decidi dar-lhes ouvidos.

20/09/2010

Os sésseis

Séssil é um animal que não se movimenta por livre vontade, contrariando todas as leis que eu achei conhecer – no caso, que o que caracteriza um animal, entre outras coisas, é o movimento, que já as plantas não têm. Pois os sésseis são animais e não têm liberdade de movimentos, e assim que, na semana passada, descobri que isso existia, fiquei suspensa entre o prazer de mastigar essa palavra entre os dentes – experimente em voz alta! - e a intranquilidade que me gerou imaginar algo que, devendo caracterizar-se pelo movimento, é justamente reconhecido por não o fazer.

Repeti vezes sem conta essa palavra, e outras que foram surgindo, a partir de todos e cada um dos processos que temos para formar novas palavras: sessilmente, cor-de-séssil, sessilento, sessílimo, sessilítico, aséssil... e por aí vai. Gosto disso desde pequena, e até fui recriminada várias vezes, nos bancos escolares, por inventar respostas a partir de palavras também inventadas para perguntas que eu sinceramente poderia jurar terem sido inventadas também.

Séssil chega-nos diretamente do grego – e, efetivamente, quer dizer “movimento parado”, o que no mínimo é um paradoxo. Ou não – penso com os meus botões, depois de reparar em quem, em movimento (frenético até), permanece ainda assim parado. Talvez seja uma questão de perspectiva. Distância? Não envolvimento?

Eu não gostaria de reencarnar como um séssil. Esponjas são sésseis, e eu tinha uma tia que gostava imenso de me dar esponjas naturais no Natal – coisas estranhas e duras que à simples imersão em água quase se desmanchavam, absorvendo imensas quantidades de líquido e deixando a sua aparência dura e morta para trás. A sua absorvência, apesar disso, não me dava a impressão de vida, mas de abandono e de perda de si mesma, da sua estrutura, ainda que essa tivesse sido desagradavelmente dura. Não sei até hoje o que prefiro: se a esponja seca, dura e da cor da morte, se a esponja molhada, mole e da consistência da perda. Só tenho certeza de que não me sentiria feliz reencarnando como séssil, ou seja, como esponja.

De qualquer forma, tem sido interessante olhar para o mundo em volta em termos de sésseis e não-sésseis. Pessoas sésseis, situações sésseis, sentimentos sésseis, atitudes sésseis. Como tudo se movimenta, lá está a impressão do dinamismo da vida, das suas transformações; mas como tudo está parado, sobrevém a máscara da morte, aliás a máscara, que é sempre de morte, porque rouba a vida daquilo que é – e se movimenta em movimento.

Há um momento fugaz em que tudo o que é séssil se revela – tudo o que está parado enquanto poderia movimentar-se trai-se nos momentos em que descansa. Porque o que descansa do movimento verdadeiro, precisa descansar, e aquilo que descansa do movimento parado faz de conta que descansa, e é nesse momento que se trai, porque se perde em si mesmo à procura de um sentimento que não conhece, porque não se deu ao trabalho de sentir. Porque sentimentos são movimentos que não param, a não ser que os paremos, para que eles não se atrevam a entrar em nós e desestruturar esse movimento parado que, talvez por falta de vigilância, construímos em silêncio e solidão dentro de nós mesmos.

12/09/2010

Procura-se

Estou à procura de pessoas que respirem com o mundo. Pessoas que partam do princípio de que não há coisas estabelecidas que são por definição imutáveis, a reboque de regras inquestionáveis. Pessoas que abram os olhos e os ouvidos, e que permitam que os sons e as cores dos outros entrem sem as máscaras de todo dia, que se mesclem e se enriqueçam. Pessoas que não só se disponham a respeitar as diferenças, mas que saibam que nem sempre é fácil reconhecê-las, e se esforcem por isso em fazê-lo. Pessoas para as quais importe mais a extensão do mundo possível do que os muros e as cercas que o restrinjam e tornem a vida impossível.

Estou à procura de pessoas cujos tempos e espaços sejam mutáveis e flexíveis, que se queiram, essas pessoas, que se encontrem, movidas pela vontade de conhecer mais e melhor, e não de se segmentarem em lugares, e dias, e horas, e possibilidades pequenas, momentos do se deve e do não se deve aprender, ainda. Pessoas sem cartilha, nem dogmas, nem crenças às quais se aferrem, pessoas com vontade de questionar as próprias convicções quando chamadas a isso, e que me ajudem a lembrar-me disso, caso me esqueça, o que acontece quase sempre mais de uma vez por dia.

Pessoas que se posicionem com força e veemência quando é preciso, e que saibam exercer todas as suas funções – da pedagógica à política, que vem a ser a mesma, da culinária à astronômica, que também não anda uma longe da outra – sem serem ingênuas, mas plenas de boa vontade e de amor e respeito pelo outro, nada mais que o reflexo do espelho interno.

Pessoas que sejam o que dizem ser, e que queiram ser aquilo que dizem ser quando não estão sozinhas, que não se escondam atrás da regra, do imobilismo e de todas as desculpas que impedem que se avance, que se fale, que se aposte no presente como semente do futuro, e não como depositário do passado.

Também estou à procura de pessoas que tenham se afastado perigosamente de si mesmas, decidido aventurar-se pelos caminhos de agradar a todos, sem agradar mais a si próprias. Pessoas que tenham decidido entregar nas mãos de outros, sem se saberem irresponsáveis, os rumos de si próprias, acabando por apoiar-se naquilo que outros disseram para viver a própria vida, preocupando-se mais em julgar o outro do que em observá-lo. Pessoas que tenham decidido esterilizar-se e impermeabilizar-se à dor, à agonia e à salvação alheias e que de repente se incomodem com a própria pele e sintam dentro de cada poro a inquietação do que se quer melhor. Em momentos de vida assim, bastou-me um gesto, uma palavra, um primeiro passo que cumprisse o milagre de decidir diferente tudo ali, agora, hoje. Porque nada mais espera que abramos os olhos na lentidão do sonho do éden, porque o mundo inteiro muda porque nós mudamos, porque a mudança é a essência da vida, e urge. Ou mudamos, ou nos tornamos estátuas, e estátuas ficaremos, projeção da pessoa que fomos.

Estou impregnada dessa missão louca (e possível) de encontrar todas essas pessoas, principalmente nos dias em que o milagre da alteridade, do conhecer-me através, por causa e junto do outro, faz-me esquecer que poucas coisas valem tanto quanto buscar-me dentro e fora, que é no fundo a mesma coisa, uma sobrevivência à revelia do que os nossos olhos insistem em mascarar.