17/02/2010

Da capa do livro

Neste Carnaval, além dos incríveis ensaios de bateria, do êxtase do desfile e dos encontros de almoços, jantares, cafezinhos e toda a sequência alimentícia que nos faz encontrar uns com os outros, tive a sorte de poder avançar na preparação do livro que reunirá (breve, breve!) as crônicas que há meses saem passeando por aí. Dizia eu à querida fotógrafa aqui de plantão que seria uma boa manobra mercadológica discorrer sobre o processo de formatação do tal do livro, uma crônica tentando não ser apelativa, criando assim aquela vontade de saber logo quando vai ser lançado, dar de presente quem sabe... Assim que ela se foi, recebi um email bacana de um leitor de uma crônica anterior, falando sobre o processo de coagulação para dentro do mundo físico, que lhe parecia estar ligado à intervenção no mundo que a escrita propicia – não posso discordar, quase que vejo os éteres que se coagulam entre aqui eu que escrevo e aí você que lê! Manda-me ainda uma ideia saborosa: abraços mandados virtualmente com esperança de coagulação em tempo breve. É como este livro, que vem se coagulando aos poucos, email a email.


Mesmo gostando do meio virtual, pela incrível rapidez na eliminação das distâncias e, se deixarmos, na derrubada das barreiras, é bom saber, dizem-me meus botões, que o papel vai ser impresso e a capa vai ser colorida, uma foto que cada vez que me olha diz coisas diferentes, porque estão sobrando ideias e sentimentos aqui dentro, e eu não resisto e quero dividi-los a todos - troco mil e uma mensagens, recebo palpites de além-mar na formatação, na fonte, no tamanho disto e daquilo, "porque não do outro lado", "você já pensou em inverter a ordem?". Diagramadora oficial de plantão via skype, rio eu daqui, ri-se ela de lá – não a ouço, mas sei pelos caracteres que digita o som que a sua voz faria. Gosto dessa linguagem cheia de rsrsrs, de haushausa, de hehehe, de kkkkk (ou KKKKK quando o entusiasmo é maior); gosto do sabor que ela tem, das coisas que diz e são diferentes das ditas, ouço as vozes dos meus interlocutores, seus ruídos internos, reveladores, doces, suaves; tenho saudades das que se calaram, porque lhes perdi o rumo, ou elas perderam-me a mim. E rio e sorrio e franzo o sobrolho e fico ensimesmada tudo isso ao mesmo tempo, porque as pessoas virtuais podem às vezes dizer muito mais do que as reais, e deixar-nos assim olhando pra tela, sorrindo abobadas para as frases recebidas.


Como se só isso já não bastasse, todos esses diálogos inaudíveis acontecendo, publicar demanda encontrar (de fato, carne e osso) muita gente; movimentação, discussão, encontros e desencontros, pessoas que têm ideias geniais e melhoram generosamente as dos demais. Dinheiro, claro, que a vida não é de graça e tem seu preço, e eu quero mais é pagá-lo à vista, como quer aquele poema do Ferreira Gullar. Todo um processo que faz com que o que era individual passe ao estatuto de coletivo – esta capa que me olha aqui na alternância de janelas do meu computador não é minha, não é dela que a fotografou, nem mais dela que a diagramou: passou ao estatuto de “nossa” e eu gosto bem mais que seja desta forma. É um tanto assim como esta crônica – agora que você a leu, deixou de ser minha, não passou a ser sua, mas é nossa. E o que é nosso, na imensa maioria das vezes, é mais e vale mais a pena.


10/02/2010

Cães

Ando com muita vontade de ter mais um cachorro, além do que ganhei há poucas semanas atrás. Com esse que já se desenha na minha imaginação, serão três, e eu considero que me sentirei bem melhor com esses três guardiões por perto. Sempre gostei de cachorros, não é nada demais, mas decidiram investigar-me, aqui em casa, porque a revelação de “estou com vontade de ter um pastor alemão”, a meio do almoço, fez todos pararem e me olharem espantados – “o que foi isso agora?” parecem dizer os olhos todos que aqui em casa ainda por cima via de regra se parecem.


Também não sabia, devolvi-lhes a pergunta como veio e prometi que me indagaria. Claro que começou a especulação, e logo quem o conheceu se lembrou do Argos, cachorro do meu pai, pastor alemão, que morria de medo de rojões, o que era um problema visto ser vizinho do estádio do Pacaembu. Mas não – não era do Argos, porque a lembrança nada tem a ver com o fiel companheiro do Ulisses que eu acho meu pai queria tornar-se. Poderia até ser (não meu pai Ulisses, mas o desejo do cachorro por esse motivo), considerando que já tive um cão chamado Camões e uma égua que atendia ao chamado de Florbela. Mas não.


Lembrei-me, na verdade, do pastor que acompanhou a minha infância e muitas das consultas a cavalo do meu avô, correndo infatigável ao seu lado. A partir de uma época, não sei por que razão, passou a viver acorrentado a um desses arames que ficam esticados e permitem que os cães vão e venham, a infelicidade traduzida numa linha reta inescapável. Eu gostava bastante dele, imagino que porque era grande e tinha olhos cor de amêndoa torrada. Ele não me tinha grandes simpatias, talvez porque eu gostasse de lhe ocupar a casinha enquanto me procuravam pela casa e eu não queria ir deitar-me. Rosnava quando tentava soltá-lo da corrente que as minhas mãos não conseguiam quebrar, e, apesar do medo, a vontade de soltá-lo fazia-me tentar uma e outra vez. E ele sempre rosnava. O cachorro era do meu avô, chamava-se Black, e quando nos mudamos de país eu senti-lhe tanto a falta quanto senti a da minha avó. Decidiram dar-me outro cão, um cocker preto a quem, no desespero, chamei de Blackie.


Anos depois, Black acolheu com imenso carinho o pequeno Blackie quando este último teve câncer, poucos meses antes de morrer. Deixava-o dormir em sua casinha enquanto ele dormitava fora, dividiam a mesma tigela de comida e passavam dia e noite um ao lado do outro, um acorrentado, o outro doente. Eu já não cabia dentro da casinha e angustiava-me ver aquele que tinha sido meu álibi para tantos passeios noturnos esvair-se em sangue ao lado de Black, que me olhava com os mesmos olhos amendoados da minha infância. Sem saber o que fazer com esse sentimento, deixei um aos cuidados do outro. Dormi melhor depois de decidir assim.


Talvez seja esse sentimento de poder entregar que me faça ter vontade de ter um pastor. Certamente terá um nome em nada parecido a todos esses que povoam o passado, porque isso de dar nomes aos bichos está se tornando uma epopeia aqui em casa, mas desconfio que deva ter olhos que olhem para meus filhos e os ajudem a aprender a entregar o que for para entregar, quando for para entregar.

01/02/2010

E o vento levou?

O processo de escrever crônicas, descobri estes dias, demanda um afastar-se consciente da questão sobre a qual se quer escrever, pois assim as coisas deixam de ser apenas e tão somente reflexões pontuais. A escrita, já se sabe, é uma forma de intervenção no mundo; pode ser que não o transforme, mas explicita posicionamento. O poeta Ivan Junqueira diz não acreditar que a poesia transforme o mundo, mas considera-a fundamental para o processo da vida humana. Enfim: sirvo-me da escrita, quantas e tantas vezes, justamente para isso – para entender melhor, e dividir meu entendimento com os outros em forma de letra.


Dividir-se com os outros reserva-nos surpresas. Às vezes somos ouvidos, outras (ó glória!) compreendidos. Os outros ouvem, compreendem e devolvem-nos pedaços que perdemos ao nos olharmos no espelho. Junto as duas coisas para chegar ao tema desta crônica: a necessidade de enviar para longe aquilo de que quero falar, e ao mesmo tempo dividir-me a ponto de ser ouvida, quem sabe ó céus compreendida.


Sendo assim, empreendo o movimento de afastamento do assunto que me ocupa hoje e, afastando-me, descubro em mim a possibilidade de que aquilo que pareceu, à primeira vista, a negação do direito de se dizer, tenha sido algo bem diferente: uma rajada forte, um esticão súbito, seguido de um vento alucinante que tenha arrancado para longe a faixa que constatava, em meio ao cenário lamentável em que se transformaram as nossas ruas demetrianas, que “asfalto faz falta”.


É claro, penso eu agora, que nunca algum dos meus vizinhos, pessoas que se prezam pelo respeito à manifestação do outro, pessoas que querem nortear-se por ideais elevados que permitam que cada um seja quem seja (em liberdade, como postula aquele que invocamos diuturnamente para nossa inspiração), arrancaria uma faixa que manifesta um desejo e uma opinião que, acrescentados, transcendem os limites do individual. Não deveria, penso ainda, ter imaginado que alguma destas pessoas, a quem quero bem e desejo felicidade, se ocuparia em podar não as árvores mas, prepotente e arrogante, o direito alheio à expressão de ideias. Seria lamentável se fosse diferente – todos sabemos o quanto as ideias não têm dono, e nem as pessoas.