31/12/2009

Solidus nescit ignavus metus

Uma das imensas vantagens de ir à manicure de vez em quando (ou ao dentista, ou ao pediatra, ou ao urologista, porque para o que me move aqui vai dar ao mesmo) é conseguir ler a revista Caras, tanto faz de qual ano ou mês. Basicamente graças à coluna de Deonísio da Silva, professor de não sei bem qual das universidades públicas do Rio de Janeiro, contemplado com o prêmio Casa de las Américas há alguns anos atrás. O resto da revista realmente faça-me o favor, mas a coluna de etimologia entretem-me, enquanto tento exemplarmente acabar com o terrível vício da onicofagia (aprendi com o Deonísio esse palavrão que impressiona bastante mais do que basicamente se saber que roem-se unhas...).

Diverti-me esta manhã tentando umas traduções para o latim de frases que me vieram à cabeça assim que acordei. Na verdade não foram frases, confesso, mas impressões fortes que quis transportar para este meio, e precisava de um motivo. Achei-o por entre divagações etimológicas: solidus nescit ignavus metus.

O latim é uma língua incrível, declinada no fundo de forma simples e lógica (bem no fundo, mas é o que consta...), conjugações e declinações que ajudam depois a estudar outras línguas, como o alemão. Tive um colega na faculdade que me dizia que o latim só sobrevivia porque era uma língua morta o que, convenhamos, é um bom paradoxo (ou contrasenso, dependendo da interpretação), exemplarmente latino. Meu primeiro professor de latim ensinou-me (e outros depois contestaram, mas ficou-me teimoso este ensinamento) que é melhor traduzir do e para o latim palavra por palavra. Ainda que demore mais tempo, porque depois é preciso voltar e ver se de fato confere e faz sentido, para quem lembra muito pouco das aulas de latim, com certeza é a melhor maneira.

Exemplifico, com a frase que dá título à crônica: solidus nescit ignavus metus.

Solidus é uma palavra forte e sonora, que tanto nos legou a solidez robusta de qualquer coisa que o seja (sólido), quanto os sentimentos que nos unem uns aos outros dessa mesma maneira (sólida e robusta), sentimento ao qual demos, ao longo dos anos, o nome de “solidariedade”. Portanto, nesse caso que nos ocupa, a tradução seria : “a solidariedade...”.

Nescit - boa palavra também, verbo que nada tem a ver com o adjetivo nescius, com o qual eu sempre me confundo e que constrói a expressão que meu avô usava para arrematar qualquer discussão que o irritasse e o levasse a marchar rumo à porta, levando-me consigo: “minha filha (isso era comigo): a palavras néscias, ouvidos surdos”. Nescit, portanto um verbo, significa basicamente “desconhecer”. Assim sendo: “a solidariedade desconhece...”.

Ignavus é a próxima palavra – tanto pode ser entendida como preguiçoso, quanto como indolente, ou fraco, ou covarde. Fácil constatar que sinônimos perfeitos são coisas inexistentes – qual dentre nós em dia de preguiça se sente covarde?!Ser ignavo fez parte da maldição que caiu sobre o tupi de Gonçalves Dias: Sempre o céu, como um teto incendido, /Creste e punja teus membros malditos /E oceano de pó denegrido /Seja a terra ao ignavo tupi!, e, como para o poeta romântico, a última opção parece a mais apropriada para este caso: “a solidariedade desconhece o covarde...”.

Metus, última palavra e motivo de toda esta arenga, entra na tal frase de maneira especial: “a solidariedade desconhece o medo covarde”. Foi nela, na solidariedade, que pensei hoje ao acordar, por ter testemunhado o poder que tem em si de espantar o medo (covarde ou não, julgue quem achar que pode), entre sólidas comidas, robustas bebidas e solidárias risadas. O medo evaporou-se ontem à noite, por entre o lume da dupla beberaxe galega que se preparou para esse fim, e por entre cada um dos passos que nos levaram a alguns esta noite pelas ruas do nosso bairro, que se ressente nos últimos meses do aparecimento desse espectro.

Paradoxalmente como a língua morta que sobrevive, esse espectro torna-nos companheiros e irmãos daqueles que o vivem dia trás dia, sem poderem escapar à fome , à guerra, ao desemprego, à discriminação, à insegurança de viver em um mundo que não se reconhece porque escapa o olhar em volta, aquele que retoma o espaço que pertence às boas energias da amizade e do companheirismo. Alerta, creio que não hesitaremos em, assim que a primeira flor for arrancada e antes que não possamos dizer mais nada, dizer não. Um não feito do replantar a mesma flor todos os dias, incansavelmente, um ao lado do outro compartilhando a terra, a enxada e a confiança em cada um dos dias do ano que começa amanhã.

Que todas as nossas e as alheias flores desabrochem e encham os caminhos das cores alegres de um feliz 2010.

27/12/2009

A propósito de um verso de um poema

Termino o ano lendo Ana Cristina César - daqueles poetas que, por incomodarem, se relem. Ana Cristina transborda desespero e angústia por tantos lados, é impossível ser-lhe indiferente. Dependendo do dia, parece que se nos cola, um grude que não desiste e se infiltra até não conseguirmos mais - e precisarmos ler. Gosto dessa impressão, mesmo podendo chamá-la de desagradável. É tão poderosa e potente que nos abalroa e subleva, e eu gosto de me sentir abalroada às vezes, sem perceber de onde mesmo foi que veio isso que me atingiu. Muita coisa provoca esse sentimento - poemas fazem-no com frequência, mas também sorrisos, especialmente aqueles que não sei se são exatamente sorrisos, se são olhares materializados em forma de lábios. Levo horas e por vezes dias para processá-los, mas aprendi ao menos a fazer tudo isso em silêncio e sozinha, dando tempo ao tempo, e duvido que alguém me perceba nesse movimento.

Enfim: amanheci lembrando-me de um trecho de um poema de Ana Cristina (sentir separado dentre os dentes/um filete de sangue/nas gengivas) e fui à procura do início, porque esse é apenas seu fim. Não tenho nenhum de seus livros, mas tenho uma profusão de cópias de muitos de seus poemas, de curso aqui, curso acolá. Deu-me certo trabalho encontrar essa poesia em mente, e quando a encontro na verdade já a relembrei inteira. Descubro que essa procura fez com que achasse o que realmente preciso: outro poema, exatamente a pista que me conduz ao que quero fazer antes que chegue o novo ano. É um de seus raros sonetos (vou transcrevê-lo ali embaixo, é claro), e fala não de um ano novo, mas do sono e daquilo que devemos se o queremos. É preciso que nos dispamos, diz ela, ali, logo no primeiro verso, e eu só preciso mesmo é disso, o resto é pra me devolver a poeta, a quem amo e agradeço, mas peço licença. Do que eu preciso é só desse verbo, despir, na sua forma reflexiva: um poderoso despir-se que nos inverte o sentido natural do movimento, levando-o para dentro quando é originalmente para fora.

Descubro o que eu quero (e luto com um “preciso” que queria desajeitadamente infiltrar-se por entre estas linhas): quero despir-me do cansaço deste ano. Das suas sombras. Das suas luzes. Do que conquistei. Do que não fui capaz. De quem esteve. De quem partiu. Abrir-me em duas ou três ou quantas forem de mim necessárias para deixar sair tudo o que entrou durante este ano, e me construiu e desconstruiu por 12 meses. Talvez devesse despir-me das minhas letras. Quero esquecê-las. Meu bom amigo Llardent, editor de profissão, dizia que esquecer é publicar, e por isso aposento-as no papel, tarefa que não dói. A escrita cauteriza dores, faz escorrer destiladas, por entre os meus dedos, as letras que passearam por todos os meus órgãos, coração ao fim da lista, muitos mais ventrículos e átrios do que a anatomia física acusa. Vou preparar-me, neste tempo que resta, para as letras e as dores que virão, e para aqueles que as hão de inspirar.

Com o ato de despir-me, encontro camadas que são do começo do ano, camadas que ficaram até do ano anterior a este que se acaba, quem sabe se do outro ainda mais longe, e se amalgamaram à minha forma que quase pensei original. Retiro-as uma a uma, e antes de guardá-las, dobradas e bem seguras, nas caixas que arrumei para esse fim, olho-as por todos os lados, porque algo afinal devo aprender com cada uma delas que se fez tão frequente, para que não precise vestir-me de novo com nuvens do passado. Há algumas muito tênues. Se não estivesse tão focada nessa atividade no dia de hoje, provavelmente atravessariam o dia 31 despercebidas. Digo-lhes adeus.

Há algumas que me dizem baixinho que espere, que ainda não é hora, que nem tudo é regido por esse calendário gregoriano que nos ordena o tempo. Muda o ano, sim, mas nem tudo depende só do meu movimento, então haja calma. Há o que não posso despir, porque não posso ser deixada sem pele, em carne viva; não quero as dores do meu sangue do lado de fora do meu corpo. Mantenho essas camadas e esperarei que amadureçam, esperarei que me ajudem a retirá-las, porque sozinha é provável que doa demais.

E eu não devo, neste ano que está à porta, fazer-me doer a vida. Não devo dificultar as entradas e as saídas; enquanto me permaneça ao lado dos outros, não devo fazer doer as peles que não tenham sido retiradas. Há carne viva por baixo de nós todos, e nós todos somos feitos da mesma carne. Todos precisamos de descanso, e de sono, como Ana Cristina precisou, antes de se atirar do alto do seu prédio, porque todas as suas camadas foram-se-lhe arrancadas, ela própria repuxando uma a uma as suas dores, até não aguentar mais que tanta dor fosse só sua.


Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e

também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)

que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, e os ventos altos

que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.